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A LGUMAS PALAVRAS SOBRE A OBRA LITERÁRIA E SEU AUTOR

118 JONSHON, Randal. Macunaíma: do Modernismo na literatura ao Cinema Novo. In: ______. Literatura e

Cinema. São Paulo: T. A. Queiroz, 1982, p. 43.

119 Sobre a dependência cultural no campo literário e cinematográfico, consultar:

XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro moderno. São Paulo: Paz e terra, 2001.

CANDIDO, Antônio. Literatura e subdesenvolvimento. São Paulo. Revista Argumento, n.1, p. 7-24, out. 1973.

PARA UMA REFLEXÃO sobre o impacto de Macunaíma e o debate proporcionado pela sua encenação nos anos 70, é preciso o enfrentamento de temas há muito debatidos pela intelectualidade brasileira. Antunes Filho encontrou nesse texto, de cinco décadas atrás, um terreno fértil para discutir as ressonâncias da imposição de valores eurocêntricos na cultura brasileira, os entraves para a construção da nacionalidade, a indefinição do nosso caráter – como afirmava Mário de Andrade120. Macunaíma foi escrito por Mário de Andrade entre o final de 1926 e o início de 1927. Depois de algumas revisões realizadas pelo autor, foi publicada, por sua iniciativa pessoal, em 1928 – período conturbado da história brasileira: mudanças econômicas, políticas, sociais e culturais; momento de gestação da Revolução de 1930.121 No final da década de 30, uma segunda edição foi publicada, pela Livraria José Olympio Editora. É uma obra literária que apresenta o protesto individual do artista contra a mentalidade subserviente; contra o sentimento de inferioridade presente na sociedade brasileira diante de outros povos; contra a dominação estrangeira cultural e política característica da nossa história. É a visão de Mário de Andrade sobre o brasileiro, o trabalho, a preguiça, a inteligência nacional.

120 “Mário Raul de Morais Andrade nasceu em São Paulo, no ano de 1893. Foi poeta, contista, romancista,

crítico literário, folclorista e crítico musical. Passou a maior parte de sua vida em São Paulo, cidade com a qual mantinha forte ligação. Formou-se bacharel em Ciências e Letras, em 1909. Estudou no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo em 1911. Em 1917, passou a colaborar com críticas de arte na Folha da Manhã e no O Estado de S. Paulo, entre outros periódicos. Já com o pseudônimo de Mário Sobral, lançou, nesse mesmo ano, seu primeiro livro: Há uma gota de sangue em cada poema. Foi um dos responsáveis pela criação da Revista Klaxon e pela organização da Semana de Arte Moderna, em 1922. Publicou nessa data Pauliceia desvairada, considerado o primeiro livro de poemas do Modernismo, no qual se encontram princípios de colagem típicos da pintura da época. Nas escadarias do Teatro Municipal, onde ocorreu a Semana de 22, leu, de seu recém-lançado livro, o Prefácio Interessantíssimo, apontando pressupostos e caminhos a serem seguidos pela poesia modernista e a fundação do ‘desvairismo’, revelando afinidades com a chamada ‘escrita automática’, pregada pelo escritor francês André Breton (1896-1966), fundador do Surrealismo. Ainda na década de 1920, publica obras importantes, que marcaram o movimento modernista em verso e prosa: a poesia experimental de Losango Cáqui, o uso do folclore nos poemas de Clã do Jabuti, os contos de Primeiro andar, o ensaio A escrava que não é Isaura (em que aprofunda os pressupostos do Prefácio Interessantíssimo) e o romance Amar, verbo intransitivo. Em 1927, realizou sua primeira viagem etnográfica à Amazônia, pesquisando e recolhendo manifestações de cultura popular. Do conhecimento adquirido sobre o folclore nacional conjugado ao tratamento literário requintado e abordagens psicanalíticas dos mitos resultou o romance Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, lançado em 1928. Nos anos 1930, dirigiu o Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, fundou a Discoteca Pública e promoveu o 1º Congresso de Língua Nacional Cantada, além de dar grande impulso à Revista do Arquivo Municipal. Entre 1938 e 1940, residiu no Rio de Janeiro e lecionou Estética na Universidade do Distrito Federal, atual Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Uerj. Morreu em 1945”. (MARIO DE ANDRADE.

Enciclopédia Itaú Cultural (Biografia), atualizada em 17 Jul. 2009. Disponível em:

<http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_lit/index.cfm?fuseaction=biografias_texto&cd_ve rbete=5243>. Acesso em: 26 Nov. 2011.

121 Para maiores informações sobre o período e o impacto da Revolução de 1930, consultar:

Todavia, é fato que as ideias andradinas não tiveram repercussão significativa no período, apesar do teor crítico presente no projeto artístico modernista, que contestava os padrões convencionais e os códigos estéticos vigentes. Por outro lado, a Semana de Arte Moderna, de 1922, marcou uma mudança significativa da produção artística brasileira. O alcance das ideias debatidas no palco do Teatro Municipal fecundou várias gerações de artistas. Especificamente, remetemo-nos às ideias antropofágicas, propostas por Oswald de Andrade e partilhadas pelos modernistas, inclusive Mário de Andrade.

Os anos 1950 despertaram na intelectualidade o interesse pelo movimento modernista. Antes dessa época, a obra permanecera incompreendida. Desde a publicação, em 1956,122 do Roteiro de Macunaíma – exercício para sua interpretação –, a obra passou a ser

bem aceita; em parte, por causa da conjuntura de então, que se preocupava em discutir a realidade nacional e os problemas relativos a ela. No campo literário, a tradição modernista foi objeto de estudo dos concretistas. Nos anos 60, foi retomada pelos denominados tropicalistas. Nos anos 70, Macunaíma já era vista como clássico da literatura nacional – em uma década, houve nove edições. Estudiosos se interessaram pela obra, que foi adaptada para o cinema em 69, pelo cineasta Joaquim Pedro de Andrade. Em seu conjunto, esses fatos contribuíram para a recepção e o alcance da montagem de Antunes Filho, que retornava aos palcos após um período de afastamento.

O enredo da obra trata da história de Macunaíma: de sua saga com seus dois irmãos – Jiguê e Maanape – em busca de um talismã perdido – o muiraquitã. O protagonista é filho de uma índia tapanhumas; nasceu numa tribo que vivia às margens do rio Uraricoera, no meio da floresta amazônica, “preto retinto”. O narrador avisa que nasceu de mãe virgem. (Não há referências ao pai.) É um personagem mítico e lendário – seu nome significa grande mal. Desde pequeno, nosso herói ia mostrando seu caráter. Não falava; mas, quando o obrigavam, pronunciava a frase “Ai! Que preguiça!”. Bolinava desde pequeno as mulheres da tribo. Maanape, o irmão mais velho, é feiticeiro e socorrerá Macunaíma com magia em diferentes momentos em que ele se mostrou inconsequente e irresponsável. Macunaíma trai seu irmão Jiguê, com cada uma de suas mulheres. . Contudo, mesmo sabendo que o herói é mentiroso, traiçoeiro, preguiçoso, egoísta, que fazia qualquer coisa para ganhar dinheiro, os irmãos não o abandonam.

Após matar a mãe, metamorfoseada numa veada parida, Macunaíma e seus irmãos partem para o mundo. Mas antes o herói deixa sua consciência na Ilha de Marapatá. Durante a viagem, deparam-se com seres míticos e imaginários; no caminho, ele encontra Ci, a mãe do mato, e casa-se com ela, tornando-se o Imperador do Mato Virgem. Depois de muito brincar, eles têm um filho, que é morto. Desconsolada, Ci morre, vai para o céu e deixa com Macunaíma um amuleto mágico. Numa luta com a boiúna Capei, também conhecida como senhora das águas ou cobra grande, no imaginário popular, os personagens derrotam o monstro, cuja cabeça se transforma em lua. Nesse confronto, Macunaíma perde seu amuleto e é avisado por um pássaro que ele está com Venceslau Pietro Pietra. Os três irmãos resolvem ir para São Paulo atrás da pedra; ao chegarem à cidade, descobrem que Venceslau é o gigante Piaimã, comedor de gente.

Em sua busca incansável pelo Muiraquitã, Macunaíma enfrenta dificuldades e, em vários momentos da sua saga, é morto e renasce, graças à magia do irmão feiticeiro. Vinga-se do gigante Piamã, em um ritual de macumba realizado na cidade do Rio de Janeiro. Depois de passar maus bocados, conhecer a civilização – seus valores e seus males –, derrota Venceslau Pietro Pietra e recupera seu precioso amuleto. De posse do Muiraquitã, os irmãos retornam à Amazônia. Vei, então, prepara uma armadilha para Macunaíma – leva o herói até um lago para se vingar dele. Seduzido pela Uiara, Macunaíma tem seus membros comidos pelos peixes. Consegue recuperá-los, salvo uma perna e seu amuleto. Sozinho, cansado de viver, sem o amuleto e seus irmãos, pede ao feiticeiro Pauí Pódole para transformá-lo em uma constelação para ficar perto de Ci, único amor de sua vida. Transforma-se na Constelação de Ursa Maior.123

Em meio a aventuras contadas como se fossem lendas, surgem várias tradições e vários costumes do povo brasileiro, dentre os quais, o futebol, o jogo de truco, a banana como gesto, o carro, a festa do bumba meu boi e a constelação do Cruzeiro. A história é contada em tom coloquial, revestindo a obra de brasilidade sem que perca sua erudição e se torne incomunicável; a narrativa em terceira pessoa se assemelha a uma grande conversa. Para dar voz aos diferentes personagens, o autor utilizou a técnica cinematográfica, de modo que

123 O livro de Mário de Andrade divide-se em 17 capítulos: I – Macunaíma; II – Maioridade; III – Ci, mãe do

mato; IV – Boiuna Luna; V- Piaimã; VI – A Francesa e o Gigante; VII – Macumba; VIII – Vei, a Sol; IX – Carta pras Icamiabas; X – Piauí-Pódole; XI – A Velha Ceiuci; XII – Tequetete, Chupinzão e a Injustiça dos Homens; XIII – A Piolhenta do Jiguê; XIV – Muiraquitã; XV – A Pacueira de Oibê; XVI – Uraricoera; XVII – Ursa Maior e Epílogo. (ANDRADE, Mário. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. 31. ed. Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Livraria Guarnier, 2000.)

houvesse cortes bruscos no discurso do narrador sem que isso implicasse descontinuidade da narrativa sobre os feitos do anti-herói.