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D ESCOBRINDO A CIVILIZAÇÃO

No documento ILHO: O OLHAR ANTROPOLÓGICO PARA A CENA E A (páginas 117-120)

O SEGUNDO ATO se passa em Mato Virgem, São Paulo e Rio de Janeiro.205 Não há, praticamente, muitas alterações em relação à rapsódia de Mário de Andrade. Entretanto, Antunes Filho vai mostrando Macunaíma sempre a partir da relação com o outro – prostituta, D. Rosa e pensionistas, Venceslau Pietro Petra – e destacando os olhares sobre o protagonista. Após despedir-se do Mato Virgem, Macunaíma vai de barco pelo Rio Araguaia e pelo Igarapé Tiête em direção a São Paulo atrás do Muiraquitã. Nesse ambiente o herói vai aos poucos aprendendo uma porção de coisas, introjetando os valores capitalistas e e abandonando valores de sua cultura. A primeira referência ao processo de aculturação dá-se, antes mesmo da chegada a São Paulo, com o banho dos irmãos. “Então Macunaíma enxergou

204 JACOBY, Russell. O fim das utopias: política e cultura na era da apatia. Rio de Janeiro: Record, 2001. 205 As cenas correspondem aos capítulos (V ao VIII) e obedecem à seguinte sequência: O herói despede-se do

Mato Virgem, os irmãos tomam banho numa poça encantada – o pezão do Sumé, ao chegar a São Paulo encontram duas prostitutas, trocam cacau por dinheiro na Bolsa de Valores, mudam para a pensão de D. Rosa, Macunaíma marca um encontro com Venceslau Pietro Pietra, é morto em uma armadilha do gigante e ressuscitado por um feitiço do irmão Maanape, encontra-se com ele pela segunda vez disfarçado de francesa, recorre à macumba da Tia Ciata para dar uma surra nele, rouba frutas da árvore Volomã e é chutado por ela para uma ilha no Rio de Janeiro, lá encosta numa árvore e adormece, um urubu “caga” na cabeça dele, o herói pede ajuda à estrela da manhã, que nega e o manda tomar banho, passam Vei a Sol e suas filhas, tratam do herói, em troca ele promete casamento e fidelidade a uma de suas filhas, porém não cumpre o acordo, arruma uma portuguesa que ao final do ato rouba todo o seu dinheiro e o barco, e depois disso Macunaíma resolve voltar para São Paulo. (MACUNAÍMA (Cena por cena). A sequência de cenas do espetáculo Macunaíma foi conferida no material disponibilizado pelo Arquivo Lasar Segall.)

uma lapa bem no meio do rio uma cova cheia d’água. E a cova era que nem a marca de um pé gigante. [...] pezão do Sumé, do tempo em que andava pregando o evangelho de Jesus pra indiada brasileira”. (p. 39-40R) Nessa cena Macunaíma fica branco, de cabelo loiro e olho azul, Jiguê fica da cor de bronze novo e Maanape continua negro. Foram retomadas as três matrizes constituintes de nossa formação: a ameríndia, a africana e a branca. Há nessa cena uma releitura do mito das três etnias formadoras da nação. De forma metafórica, o herói de nossa gente, um preto retinto, vira branco, um de seus irmãos vira índio e o outro, negro. Tanto na rapsódia quanto na peça teatral, por meio do estudo da cultura brasileira, a miscigenação que deu origem a nossa cultura não foi negada no processo de construção de nossa nacionalidade e identidade.

Aqui a temática que norteia o diálogo é, justamente, a construção do que se supõe ser o nosso caráter, dificultada pela introdução de valores externos a cultura brasileira. Fomos submetidos a uma transplantação cultural que resultou na incorporação de referências206 culturais de diversas origens. No diálogo transparece a ideia de superioridade do colonizador, do homem branco sobre o indígena, a imposição de valores por meio da catequização da indiada, o encontro, aliás, o desencontro de culturas:

Macunaíma – (Acordando) Que calor... Maanape, eu queria tomar um banho...

Maanape – Ô herói, aqui nessas bandas não! Tá tudo cheio de piranha. [...]

Maanape – É a marca do pezão do Sumé, do tempo em que andava pregando o evangelho pra indiada brasileira.

Macunaíma – Que água fria, hein? (Se lava)

206 “[...] a partir dos anos 1930, no discurso oficial “o mestiço vira nacional”, ao lado de um processo de

desafricanização de vários elementos culturais, simbolicamente clareados. Esse é o caso da feijoada, naquele contexto destacada como um “prato típico da culinária brasileira”. A princípio conhecida como “comida de escravos”, a feijoada se converte, em “prato nacional”, carregando consigo a representação simbólica da mestiçagem. O feijão (preto ou marrom) e o arroz (branco) remetem metaforicamente aos dois grandes segmentos formadores da população. A eles se juntam os acompanhamentos – a couve (o verde das nossas matas), a laranja (a cor de nossas riquezas). Temos aí um exemplo de como elementos étnicos ou costumes particulares viram matéria de nacionalidade. Era, portanto, numa determinada cultura popular e mestiça que se selecionavam os ícones desse país: da cozinha à oficialidade, a feijoada saía dos porões e transformava-se num prato tradicional. Mas esse não é, por certo, um exemplo isolado. A capoeira – reprimida pela polícia do final do século passado e incluída como crime no Código Penal de 1890 – é oficializada como modalidade esportiva nacional em 1937. [...] Da mesma maneira, a partir de 1938 os atabaques do candomblé passam a ser todos tocados sem interferência policial. Até o futebol, esporte de origem inglesa, foi progressivamente associado a negros, sobretudo a partir de 1923, quando o Vasco da Gama passou a ser o primeiro clube brasileiro a aceitar negros em sua equipe”. (SCHWARZ, Lilian Moritz. Nem preto nem branco, muito pelo contrário: cor e raça na intimidade. In: NOVAIS, Fernando A. (Coord.); SCHWARCZ, Lilia Moritz. (Org.).

História da Vida Privada no Brasil: Contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Cia. das Letras,

2000, p. 196-197. V 4.) Todos esses aspectos destacados pela autora Lilian Moritz Schwarz, denominados oficialmente pelo Estado Varguista como elementos constituintes nossa nacionalidade, foram matéria-prima para a rapsódia de Mário de Andrade e para a montagem do espetáculo Macunaíma, de Antunes Filho. Na peça houve a retomada dos costumes particulares africanos, de lutas como a capoeira, rituais como a macumba, o futebol.

Maanape – Ô mano, cê não parece mais um negro da tribo Tapanhumas. Nem bem chegou em São Paulo, cê tá ficando branco de cabelo loiro e olho azul.

Macunaíma – Olho azul!... Jiguê, sua vez. (Jiguê se lava com o resto da água)

Maanape – Cuidado, Jiguê, a água santa tá toda suja de negrura do herói que ficou aí. Cê tá ficando da cor do bronze novo.

Macunaíma – Jiguê, branco você não ficou não, porém pretume foi-se, e antes fanhoso do que sem nariz. Vai Maanape...

Maanape – Cês esborrifaram a água toda, só deu pra molhar a palma da mão e a sola do pé... Eu só vou acompanhar vocês com as mãos e com os pés.

Macunaíma – (Mostrando a mão de Maanape) Tá encarnado!

Maanape – Ainda continuo negro da tribo dos Tapanhumas.

Macunaíma – Não se avexa não, mano Maanape. Mais sofreu nosso tio Judas! (Os três manos cantam e dançam). (p. 19-20TT)

Ao chegar a São Paulo, representado por um bloco de atores, os irmãos avistam duas prostitutas e Venceslau Pietro Pietra, que é reverenciado por todos. No livro de Mário de Andrade esse encontro não acontece logo que os irmãos chegam a São Paulo, mas só depois de estabelecidos na pensão de D. Rosa, quando Macunaíma resolve ir até a casa dele com o mano Maanape. As rubricas e o diálogo mostram que o diretor antecipa o encontro justamente para associar São Paulo (símbolo do capitalismo) à figura de Venceslau Pietro Petra (grande capitalista e explorador), ao comércio (sexo realizado pelas prostitutas) e ao povo (expropriado). Opta pela construção de uma cena que mostra os antagonismos superior/inferior, exploradores/explorados, civilizado/primitivo, pobreza/riqueza:

(Entra música. Os três manos assustados recuam até o fundo do palco.

Passa um bloco de atores representando São Paulo)

Macunaíma – Mani, mani... Filhinhas da mandioca...

(Passa o Piaimã. Todos reverenciam. Menos os três manos assustados)

Macunaíma – Quem era aquele povo?

Povo – Era o Venceslau Pietro Petra (Bloco sai. Ficam apenas as duas

prostitutas)

Macunaíma – Era ele, manos! Era o regatão Venceslau Pietro Petra. Vamos atrás dele!

Maanape – Calma, coração.

Prost. 1 – Olha aqueles índios!

Prost. 2 – Que divertido! (p. 20TT)

Macunaíma, Maanape e Jiguê são convidados para ir até o apartamento delas. O herói, em resposta à pergunta se está gostando de São Paulo, refere-se à cidade como uma selva diferente, já mostrando a percepção de que a sobrevivência nesse meio não seria fácil. Com as prostitutas, os irmãos descobrem o significado da mercadoria, do valor e a realidade da máquina: máquina-relógio, máquina-elevador, máquina-cama, máquina automóvel e máquina dinheiro.

Prost 1 – Vamos?

Macunaíma – Apartamento?

No documento ILHO: O OLHAR ANTROPOLÓGICO PARA A CENA E A (páginas 117-120)