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O RETORNO ÀS ORIGENS

No documento ILHO: O OLHAR ANTROPOLÓGICO PARA A CENA E A (páginas 137-139)

NO QUARTO ATO,212 Macunaíma volta com seus irmãos para o Uraricoera. Praticamente, não há alterações em relação ao original. Poucos acréscimos foram feitos pelo diretor. Alguns deles foram as canções o e o adeus à dona da pensão: “(Os três manos entram

cantando). Viva eu, viva tudo, viva o Chico Barrigudo! (Entra Rosa)”; (p. 69TT) as frases ditas por Macunaíma, ao olhar pela ultima vez a cidade e ao encontrar Iriqui: “São Paulo macota, por fora bela viola, por dentro pão bolorento” (p. 69TT), “Iriqui – Você mudou! Que roupa é essa? / Macunaíma – Você também tá mudada...”. (p. 70TT) O canto de princesa: na peça “(Uma princesa sai da árvore)” e oferece uma carambola para Macunaíma, ele pega a fruta e a convida para ir ao Uraricoera com ele. Os dois brincam ao som de uma música estrangeira:

Princesa – (Canta) Belle qui tiens ma vie / Captive dans tes mains qui m'a l'âme ravie / D'unnsourire gracieux viens tôt me secourir / Ou me faudra mourir / Approche-toi mon bien / Ne me sois plus drebelle / Puisque mon ceur est tien / Pou mon mal apaiser / Donne moi un baiser! [sic]. (p. 72TT) O ditado popular incorporado à fala de Jiguê, que o aconselha a brincar um pouco com Iriqui: “briga de marido e mulher não mete colher” (p. 73TT) e outro na resposta de Macunaíma ao irmão “Ói que sol de inverno, chuva de verão, choro de mulher e palavra de ladrão, eieieiei não caia não. Vam’bora, gente?” (p. 73TT) foram acrescidos pelo diretor e mostram que, depois de iniciar um processo de autodestruição na cidade, tudo lhe parecia diferente no retorno para casa. Aos olhos do herói, Iriqui agora era “muito relambória” em relação à princesa que era “chic”. A associação Iriqui/arcaico, Princesa/moderno mostra uma visão superficial da realidade, um modo de ver que não ultrapassa as aparências.

Em verdade, quem estava mudado era o herói. Esquecera completamente os valores da tribo e até mesmo que havia abandonado a sua consciência. Depois de chegar ao

212 Esse último ato corresponde aos capítulos (XV, XVI, XVII e Epílogo). Há a seguinte sequência de cenas: os

irmãos despedem-se de São Paulo e sobem pelo Norte pelo Rio Tietê e a seguir pelo Araguaia. No percurso surpreendem-se com as mudanças na floresta, que está cheia de monstros, e se deparam com dois deles: Pondê e Oibê. Encontram princesa, transformada em árvore caramboleira por Oibê, Macunaíma a desencanta e ela segue viagem com os irmãos. Chegam à terra natal, não encontram a indiada brasileira, os irmãos vão procurar uma alguma coisa para comer e Macunaíma vai buscar a sua consciência de brasileiro. Na volta surpreende Jiguê com a princesa, jura vingança, envenena o irmão com um anzol, ele fica leproso. Jiguê e Maanape viram sombra, levam princesa embora com eles, Macunaíma fica só, é abandonado pelo seu séquito. Atacado pelo calor de Vei, ele resolve refrescar-se num lago, a Uiara come a sua perna e rouba seu Muiraquitã. Só e melancólico, ele deixa tudo estéril a sua volta, envenena o lago e resolve virar estrela. (MACUNAÍMA (Cena por cena). A sequência de cenas do espetáculo Macunaíma foi conferida no material disponibilizado pelo Arquivo Lasar Segall.)

Uraricoera e pedir passagem, há no texto teatral uma menção à marchinha carnavalesca “O abre alas”. Ao estabelecer-se na antiga morada, Macunaíma encontra João Ramalho que lhe pergunta: “Quem és tu, nobre estrangeiro”, então lembra de buscar a sua consciência. A crítica aqui é clara: ao mostrar um nativo, visto por um forasteiro como estranho em sua própria terra, Antunes Filho reforçou a mensagem de que o país estava hipotecado aos americanos, que o administravam como se fosse a casa deles, e nós éramos os intrusos em nosso próprio território, o que dificultava cada vez mais o desenvolvimento de uma civilização própria. De volta à maloca, Macunaíma nega-se a cooperar com os trabalhos coletivos em busca de comida.

Duas adições foram feitas a esse episódio. O diretor acrescentou uma pergunta e uma música latino-americana:

Macunaíma – Vou buscar minha consciência na Ilha de Marapatá (Entra o

pano com a rumba e as consciências)

Rumbeiros – (Cantam) Yo voy a volver a Marapatá / Yo me confundo penando acá / Yo estoy contento voy a bailar / Que maña vuelvo a Marapatá / Santa Barbara le dijo por la boca de Santa Peta / Que todos los negros tienen tremenda vara de jeta.

Macunaíma – Quanta consciência! Cadê a minha? Perdi minha consciência! Vou pegar essa aqui mesmo. Essa é de um hispano-americano, serve direitinho na minha cabeça. Agora eu tenho de novo uma consciência, que é que eu vou fazer? (Aparece a vara) Ah! Boa ideia! Vou pescar. (Pano vai

saindo e Macunaíma vem à frente do barco)

Rumbeiros – (Cantam) Yo voy a volver a Marapatá / Yo me confundo penando acá / Esta noche me voy a emborrachar / Mañana negrita te voy a dejar. [p. 74-75TT]

Ao voltar à maloca, Macunaíma surpreende Jiguê – antes descrito como “muito bobo” e agora “muito valente” – com a Princesa, vinga-se dele colocando um dente de sucuri num anzol, ele morre de lepra e fica apenas a sua sombra. Princesa pede para ele matar Macunaíma. Ela consegue passar lepra para o herói, que promete: “não vou morrer sozinho, eu passar lepra pra todo mundo!”. (p. 78TT) Abandonado, até mesmo pelo seu séquito de papagaios, restou apenas um para escutar as estórias do herói, que conta seus feitos e adormece. No outro dia acordou, com vontade de brincar, era Vei a Sol fazendo cosquinhas em seu corpo e vingando-se dele por não ter casado com uma de suas filhas. Resolveu refrescar-se num lago:

Macunaíma – (Atraído pela Uiara vai até a lagoa) Ai que água gelada! Mani... mani... mani... (Entra no lago e grita) Você é a Uiara. (Pausa. Ele

pula fora do lago). A Uiara me enganou. Ela me traiu como todo mundo. Comeu até a minha perna, minha muiraquitã. Lembrança da minha marvada, não tenho nem você nem ela nem nada. (Chora. Entram as índias. Saem

depois de preparar Macunaíma agora amputado duma perna). [...] Essa é a justiça dos homens. (Pega os venenos). [...] eu vou envenenar pra sempre esse lagoão. [...] Vai ficar tudo estéril que nem eu... Tô vingado. [...] Pra viver aqui carece de ter um sentido. Este mundo não tem mais graça. Eu também vou ser brilho inútil de estrela, o mesmo de todos esses parentes, mães, pais, cunhãs, cunhatãs, conhecidos... Vou plantar esse cipó de mata matá. Vou subir por ele pro céu. Eu não vim no mundo pra ser pedra. Adeus meu povo! Eu também vou pro céu! (Entra a escada com as seis pessoas da

Ursa Maior. Macunaíma sobe a escada) [...]

Narrador – Acabou-se a história, morre a vitória [...]. (p. 79; 81TT)

O mundo de aparências pelo qual ele ficou fascinado enquanto buscava reaver o seu Muiraquitã – o que metaforicamente pode ser lido como reaver um ideal – levou-o à autodestruição. Em troca de pequenas concessões, manteve a sua consciência individual, não construiu um caráter, renunciou à capacidade de mudança. Preferiu deixar tudo estéril e virar estrela a contribuir para a construção de uma conjecturada civilização própria. A metáfora da busca da consciência e a pergunta adicionada pelo diretor “que é que eu vou fazer?” é muito significativa em relação ao regime de exceção instaurado no país desde o golpe militar de 1964. Precisávamos tomar as rédeas de nossa história, lutar pelo retorno ao estado de direito. A questão que se colocava nesses tempos de incertezas era a urgência da construção de um projeto de sociedade democrática, mais humana, com justiça social, menos desigualdade e liberdade de expressão. Era preciso enfrentar o mundo estabelecendo novas formas de relacionamento numa ação individual de retomada de uma consciência coletiva.

No documento ILHO: O OLHAR ANTROPOLÓGICO PARA A CENA E A (páginas 137-139)