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A CRÍTICA TEATRAL E M ACUNAÍMA

No documento ILHO: O OLHAR ANTROPOLÓGICO PARA A CENA E A (páginas 150-156)

A CENA DE Macunaíma foi amplamente discutida pela crítica teatral. O debate proporcionado pela sua encenação produziu um conjunto de interpretações onde encontramos os vestígios para recuperar a sua historicidade. É inadmissível furtar-se do diálogo com essas memórias, mas ao se apropriar desse material é preciso alguns cuidados. O primeiro deles diz respeito ao seu uso como fonte/documento, a crítica especializada não é neutra e nem imparcial, sabemos que os críticos foram agentes que partilharam de um projeto de modernização das artes cênicas, que estiveram ligados a luta política de seu tempo, que estabeleceram marcos, periodizações, descartaram e indicaram as experiências estéticas que deveriam ser estudadas a posteriori conforme seus interesses.

229 Recuperar o caráter polissêmico de Macunaíma foi possível por meio da documentação disponível no Centro

Cultural São Paulo e no Arquivo Lasar Segall, das críticas publicadas pela série “Depoimentos” e disponíveis no acervo on-line da Folha de São Paulo. Alguns registros fotográficos podem ser visualizados no site oficial do Centro de Pesquisas Teatrais, em outros trabalhos realizados sobre o espetáculo e no livro publicado recentemente com imagens dos espetáculos dirigidos por Antunes Filho.

Além de acompanhar sistematicamente as montagens ao longo da história brasileira, “[...] o trabalho do crítico indica os temas e os lugares em que a História do Teatro deve ser pensada. Ele realiza, além disso, uma seleção estabelecendo o que deve figurar para a posteridade ou não”.230 Muitos críticos atuaram como atores e diretores em companhias

teatrais, outros, como professores. Nesse sentido, libertar-se dessas perspectivas e quebrar o horizonte de expectativas proposto pelo crítico talvez seja o maior desafio para o historiador.

O crítico é aquele que assiste ao espetáculo, vai para casa e escreve sobre o que viu. Logo, ele não apresentará uma discussão densa e aprofundada em poucas páginas, é preciso lembrar os limites da crítica jornalística. Encontraremos nelas comentários do texto, da direção, da interpretação dos atores, dos cenários, figurinos. No entanto, o crítico não é um espectador primário, não emite apenas uma opinião, e aqui reside uma das suas principais diferenças em relação ao leitor/espectador comum. O olhar de quem interpreta não é algo inocente, e quem busca a compreensão de uma determinada obra está sujeito a erros de opiniões prévias. Isto é válido tanto para o estudo das impressões do espectador comum como da crítica especializada.

Quando se ouve alguém ou quando se empreende uma leitura, não é necessário que se esqueçam todas as opiniões prévias sobre seu conteúdo e todas as opiniões próprias. O que se exige é simplesmente a abertura para a opinião do outro em alguma relação com o conjunto das opiniões próprias, ou que a gente se ponha em certa relação com elas. Claro que as opiniões representam uma infinidade de possibilidades mutáveis [...], mas dentro dessa multiplicidade do “opinável”, isto é, daquilo em que o leitor pode encontrar sentido ou pode esperar encontrar, nem tudo é possível, e quem não ouve direito o que o outro realmente está dizendo acabará por não conseguir integrar o mal entendido em suas próprias e variadas expectativas de sentido.231

Ao lidar com a recepção de um espetáculo estamos lidando com a visão de alguém que, além de realizar a experiência estética e trazer em seu olhar uma perspectiva orientadora, também está investido de uma voz de autoridade diretamente relacionada ao lugar social que ocupa e a suas inclinações pessoais. Em se tratando da crítica especializada, deparamos com juízos de valores, com opiniões prévias do que deve ou não ser considerado arte, com julgamentos formados antes do exame definitivo de determinados objetos artísticos. Por essa

230 PATRIOTA, Rosangela. Críticos, crítica e dramaturgo. In: ______. Vianinha: um dramaturgo no coração de

seu tempo. São Paulo: Hucitec, 1999, p. 89.

231 GADAMER, Hans-Georg. Os traços fundamentais de uma teoria da experiência hermenêutica. In: ______.

Verdade e Método. Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 8. ed. Petrópolis / Bragança

razão, é preciso enfrentar a autoridade atribuída ao crítico, circunstanciar quem são esses profissionais, como se apresentam suas impressões pessoais sobre o espetáculo Macunaíma, ainda que em algumas críticas permaneçam análises realizadas no calor dos acontecimentos.232

Essa autoridade, segundo Gadamer significa “[...] um ato de reconhecimento e de conhecimento: reconhece-se que o outro está acima de nós em juízo e visão e que, por consequência, seu juízo precede [...] tem primazia em relação ao nosso próprio juízo”.233 Essa

questão está diretamente associada à tradição, que é vista como uma autoridade cuja validade não precisa de fundamentação. Seria uma espécie de autoridade anônima transmitida de geração em geração, algo cultural e historicamente condicionado e que não é um registro neutro na interpretação da obra de arte, pois realiza uma seleção e avaliação do que deve permanecer para a posteridade, além de exercer um poder sobre nossa ação e comportamento. Por isso, a tradição precisa ser constantemente afirmada, assumida e cultivada.

Dessa maneira, é possível perceber que a capacidade de atualização e de recepção de uma obra artística está em sintonia tanto com a tradição cultural e estética, constituídas histórica e socialmente, quanto com as circunstâncias do momento em que o trabalho é veiculado. Estas constatações revelam que

232 Para citar apenas alguns nomes, críticos como Sábato Magaldi, Yan Michalski, Clóvis Garcia, Jefferson Del

Rios, Décio de Almeida Prado, Macksen Luiz e Mariângela Alves de Lima foram, ao lado de cenógrafos, diretores, figurinistas e atores, portadores de projetos para o teatro brasileiro, contribuindo efetivamente para a historiografia da área e para a consolidação de uma memória do teatro. Sábato Magaldi lecionou história do teatro na Escola de Arte Dramática de Alfredo Mesquita. Em 1958 participou dos Seminários de Pesquisa do Teatro de Arena e nos anos 1960 fundou a Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA). Concomitante a essas atividades, a publicação de seus trabalhos orientou análises posteriores sobre o Teatro Brasileiro. Jefferson Del Rios exerceu sua militância na imprensa e participou como jurado de concursos de dramaturgia, seminários e mesas. Cursou a Escola de Arte Dramática de São Paulo, porém não concluiu o curso. Entre os anos de 1969 e 1984, denunciou a falta de liberdade de expressão e o arbítrio da censura como crítico da Folha de São Paulo. Clóvis Garcia, crítico, cenógrafo, figurinista, ator e professor, entre os anos de 1972 e 1986, assinava uma coluna de teatro no jornal O Estado de São Paulo e, por meio dela, fazia-se presente no debate teatral. Em 1969 tornou-se professor do curso de Artes Cênicas da ECA. Mariângela Alves de Lima, após frequentar o curso de teoria da ECA, iniciou-se na crítica jornalística em 1971, no jornal O Estado de São Paulo. Marcou presença analisando espetáculos, realizando balanços sobre a produção teatral do período. Décio de Almeida Prado participou de grupos amadores de São Paulo, esteve ligado à criação do Teatro Brasileiro de Comédia e da Escola de Arte Dramática, na década de 1950, tendo, posteriormente, ministrado aulas no Departamento de Letras da FFLCH-USP e orientado vários trabalhos sobre o Teatro Brasileiro. Yan Michalski foi teórico, crítico e ensaísta, responsável pela coluna de teatro do Jornal do Brasil de 1963 a 1982. Macksen Luiz, especialista em teatro e crítico carioca que atuou por mais de duas décadas no Jornal do Brasil.

Cf. NOSSOS autores através da crítica. Teatro Brasileiro 2, São Paulo: Museu Lasar Segall, 1981. p. 72- 203. Coletânea que traz críticas publicadas à época do espetáculo. Todos os autores tem um link na enciclopédia Itau Cultural. Http://www.itaucultural.org.br/. Acesso em 06 nov. 2011.

233 GADAMER, Hans-Georg. Os traços fundamentais de uma teoria da experiência hermenêutica. In: ______.

Verdade e Método. Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 8. ed. Petrópolis / Bragança

a atualidade do objeto artístico não é, por si só, garantia de um diálogo imediato.234

Nesse sentido, o papel desempenhado pela crítica teatral235 é fundamental para esse estudo, uma vez que tal produção está carregada de sentidos diretamente relacionados a lutas políticas, processos de resistência e contradições de uma época, além de conter toda a carga de subjetividade dos agentes que as produziram cujos interesses e olhares são bem diferenciados. Assim, a recepção do espetáculo Macunaíma será discutida à luz da estética da

recepção.236

No final dos anos 1960, na Alemanha, dois teóricos, Wolfgang Iser e Hans Robert Jauss, desenvolveram no campo da crítica literária duas teorias distintas: a teoria do efeito

estético e a teoria da recepção. A primeira investigava a relação dialética entre texto, leitor e sua interação. A segunda avançava em alguns aspectos, na medida em que propunha um programa de estudos fundados na efetiva recepção histórico-literária das obras, baseado na recepção e assimilação documentada de textos. Teoria extremamente dependente de testemunhos, nos quais as atitudes e reações se manifestavam como fatores que condicionam a apreensão dos textos.

Essas duas orientações distintas se complementam no estudo da obra de arte, pois, quando tratamos de uma encenação teatral, a teoria do efeito estético nos auxilia apenas num primeiro momento, que é o da leitura dramática da peça pelo elenco – no caso de Macunaíma temos primeiramente a leitura da obra literária e, posteriormente, a adaptação da rapsódia para literatura dramática – na qual se buscam as primeiras impressões acerca do texto, do autor, da

234 PATRIOTA, Rosangela. O texto e a cena – aspectos da história da recepção: O Rei da Vela (Oswald de

Andrade) em 1967 e no ano de 2000. Cultura Vozes, São Paulo, n. 4, p. 23, jul/ago. 2001.

235 Para um aprofundamento da discussão, consultar:

CERTEAU, Michel de. A escrita da história. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. GUINSBURG, Jacó. Da cena em cena. São Paulo: Perspectiva, 2001.

PATRIOTA, Rosangela. Críticos, crítica e dramaturgo. In:______. Vianinha: um dramaturgo no coração de seu tempo. São Paulo: Hucitec, 1999.

______. A crítica de um teatro crítico. São Paulo: Hucitec, 2007.

FERNANDES, Renan. Cena teatral e recepção estética – o olhar dos críticos para os espetáculos Trono de Sangue (1992) e Macbeth (1992). 2011. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2011.

236 Para uma discussão aprofundada sobre teoria do efeito estético e estética da recepção, consultar:

ISER, Wolfgang. O ato da leitura. Uma teoria do efeito estético. São Paulo: Ed. 34, 1996. V. 1. JAUSS, Hans-Robert. Pequeña apología de la experiencia estética. Barcelona: Paidós, 2002. _______. A história da literatura como provocação à crítica literária. São Paulo: Ática, 1994.

construção dos personagens, priorizando a forma e o conteúdo da obra. Se o objetivo é também a análise da encenação, faz-se necessário circunstanciá-la nos embates forjados pela conjuntura e aprofundar a discussão levando em consideração os elementos históricos que perpassam o objeto artístico. Não basta uma análise das opções estéticas, do autor e do diretor teatral, mas, tendo como objeto um espetáculo teatral, só a teoria da recepção é capaz de abarcar a complexidade de tal obra artística. O espetáculo aqui será pensado não só como produto de um indivíduo, e sim como resultado de produção e apropriação por homens determinados historicamente, haja vista que, para a ocorrência da fruição estética, o espectador deve se permitir as diferentes leituras propostas pelo espetáculo, para adentrar no jogo:

[...] sabemos que o espectador real não é uma página em branco. Chega à representação com uma série de expectativas criadas por informações provenientes dos meios de comunicação, de comentários, de leituras [...]. Além disso, talvez saiba algo do autor, ou conheça o trabalho do diretor, ou conheça os atores, ou tenha interesse na programação de tal ou tal local. Em suma, vem ao teatro com uma série de expectativas, não chega desarmado: tem na cabeça uma “pré-representação”, um “pré-espetáculo” mais ou menos vago e uniforme. E possivelmente nós vamos propor-lhe outra coisa. Esse espectador empírico vai entrar em uma espécie de jogo, de diálogo, de interação; vai entrar no sistema efêmero que havíamos desenhado a partir do texto e/ou do espetáculo [...], porém ele pode despertar a qualquer momento e abandonar esse sistema efêmero, esse diálogo que lhe propomos.237

Participar desse jogo é pressuposto para a ocorrência da função comunicativa da obra de arte. A relação estabelecida entre palco e plateia é fundamental para colocar a obra em movimento, estabelecer mediações possíveis, construir diferentes percepções, uma vez que o seu sentido está diretamente relacionado ao horizonte que ela constrói e as possibilidades que abre e fecha diante do espectador. Toda obra de arte nos possibilita a experiência estética, principalmente porque a arte é uma forma de conhecimento, o que por si só a torna libertadora, e também porque proporciona ao público aprender algo sobre si mesmo e acerca do mundo ao renovar sua percepção da realidade.

O conceito de jogo presente em Gadamer é um ponto de partida para a análise da recepção de uma peça, pois um espetáculo teatral é, por excelência, sempre um jogo. Ao ser representado no palco ele requer dos espectadores (jogadores) a decisão de participar ou não de tal experiência. Para que haja a fruição estética está é a condição básica, é preciso entrar no

237 SINISTERRA, José Sanchis. Dramaturgia da recepção. Folhetim – Teatro do pequeno gesto, Rio de Janeiro,

jogo, correr riscos, pois o espectador (jogador) é aquele que a cada momento abre novas possibilidades. Como chama a atenção Gadamer:

[...] todo representar é um representar para alguém. É a referência a essa possibilidade como tal que produz a peculiaridade do caráter lúdico da arte. O espaço fechado no mundo do jogo deixa aqui cair uma parede. O jogo cultural e o jogo teatral não representam evidentemente do mesmo modo e no mesmo sentido que representa a criança que joga. Não se esgotam naquilo que representam, mas aludem para além de si mesmos, para aqueles que participam como espectadores. Aqui, o jogo já não é mais um mero representar, onde se perde a criança que brinca, mas é ‘representar para...’. Essa remissão própria a todo representar encontra aqui a sua realização, tornando-se construtiva para o ser da arte.238

Desse ponto de vista, Macunaíma era um convite irrecusável à participação, principalmente pelo seu caráter lúdico. Mariângela Alves de Lima ressaltou o poder sugestivo do espetáculo. Num primeiro plano há a história do protagonista sendo narrada, mas há outros planos que pretendem induzir o espectador a uma caminhada própria e a construir a sua narrativa:

Então a gente tem, por exemplo, um Macunaíma, um protagonista, um ator central que é um ator que faz um trabalho interiorizado, que cria uma personagem com subjetividade. As outras personagens ou representam grupos étnicos ou representam imagens coletivas míticas. Quer dizer, elas nunca são sujeitos e nunca são particularizadas, elas são quase que esfumaçadas. Têm um ritmo lento, uma maneira de entrar, de se colocar em cena, que não é uma postura convencional do entrei e cheguei, mas é do estar passando. [...] Toda a construção cenográfica do espetáculo é organizada no sentido de não conseguir nem uma finitude, de ser sempre ampla, de ser sempre sugestiva. É como se procurasse romper os rompimentos [...].239

Vários críticos destacaram o fato de as cenas apresentadas em quadros terem tal dinâmica e fluência orgânica que, antes do término, o espectador conseguia visualizar a gestação da próxima cena, e antecipar a sua leitura. Uma prévia encenação era rascunhada e, desse modo, o espectador era chamado a participar de forma ativa durante todo o espetáculo. Segundo Lima, a encenação provocava no espectador, a partir dos signos teatrais, a criação

de uma sequencia imaginaria própria. Essa atitude ativa proposta pelo espetáculo requeria do

238 GADAMER, Hans-George. A ontologia da obra de arte e seu significado hermenêutico. In:______. Verdade

e Método. Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 8. Ed. Petrópolis / Bragança Paulista: Vozes

/ Editora Universitária São Francisco, 2007, p. 162-163.

239 CRÍTICOS DISCUTEM as muitas faces de Macunaíma. O Estado de São Paulo, São Paulo, p.38-39, 06

público sensações antes não experimentadas, levava-o ao descongelamento das percepções, o que foi um dos seus grandes méritos.

No documento ILHO: O OLHAR ANTROPOLÓGICO PARA A CENA E A (páginas 150-156)