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A linguística cognitiva no contexto das ciências cognitivas

6. Rediscutindo a linguística cognitiva

6.1. A linguística cognitiva no contexto das ciências cognitivas

Varela (1994) traça uma história das ciências cognitivas e opõe a tradição a que Lakoff e Johnson pertencem, o conexionismo, à tradição antecedente, o cognitivismo. A abordagem do cognitivismo é caracterizada, segundo Varela, pela proposição de modelos simbólicos lineares inspirados na linguagem lógico-matemática usada na programação de computadores. Nesses modelos, os processos cognitivos são concebidos como a aplicação sequencial de regras a símbolos, símbolos estes que dão uma natureza física a elementos que pertencem a um nível conceitual – o nível das representações conceituais. Assim, é possível lidar com o sentido – a semântica – dos símbolos manipulando somente a sua forma física, de modo que se torna irrelevante a questão de como os símbolos adquirem o significado, questão que é respondida somente pela afirmação de que eles correspondem a uma realidade independente. O conexionismo, levando em conta o caráter corporeado e experiencial da cognição, afasta a ideia de correspondência e sugere que o sentido é interno às representações, emergindo de um sistema auto-organizado em interação com o ambiente, um sistema que tem uma história de experiência e aprendizado. Dessa maneira, o conexionismo ajuda a dar conta do que é conhecido como symbol grounding problem, ou seja, como os símbolos adquirem sentido, ao dotá-los de uma estrutura que tem uma história.

Varela indica ainda uma tendência mais recente das ciências cognitivas, que constitui uma etapa posterior ao conexionismo, e que não é considerada por Lakoff e Johnson. Autores como Robbins e Aydede (2009), Clancey (2009), Gallagher (2009) e Nöe (2009) defendem uma noção de cognição que, mais do que corporeada, é situada em um ambiente ou, pode-se dizer, estendida para além dos limites do corpo. Nas etapas

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traçadas por Varela, a última geração das ciências cognitivas é chamada de enação, um nome derivado da expressão castelhana en acción, para destacar a sua preocupação em abordar a cognição mais como ação do que como representação. Embora esses autores reconheçam a importância da concepção corporeada de mente, especialmente por dar um fundamento causal para os processamentos cognitivos, que agora contam com processos biológicos e neurológicos subjacentes que os fazem emergir, eles observam que o conexionismo pode ser facilmente harmonizado a uma visão como a sustentada pelo cognitivismo. Essas críticas serão abordadas na próxima seção. O importante agora é notar que as novas propostas de abordagem da cognição se orientam para processos que ocorrem no ambiente intersubjetivo, observando a cognição onde ela está em ação, em situações reais em que o corpo participa diretamente, em interação com o ambiente e com outros indivíduos. Assim, quando Robbins e Aydede descrevem a ideia de mente situada, eles destacam:

In this view, the mind leaks out into the world, and cognitive activity is distributed across individuals and situations (Robbins e Aydede, 2009, p.8).

Para esclarecer como pretende abordar a cognição, Nöe (2009), faz uma comparação da cognição com o dinheiro, no sentido de que o valor de uma nota não está em nada intrínseco à sua natureza física e material, mas reside em convenções e instituições. Paralelamente:

Maybe consciousness is like money. Here's a possibility: my consciousness now – with all its particular quality for me now – depends not only on what is happening in my brain but also on my history and my current position and interaction with the wider world (Nöe, 2009, p.4).

Essa proposta “surpreendente”, como ele sugere, responde à predominante tendência, nas ciências cognitivas, de supor que a consciência deva ocorrer em algum lugar no cérebro, assim como a digestão ocorre no estômago. Segundo Nöe, para entendermos a consciência, não devemos olhar para nenhum processo que ocorra dentro de nós, mas para como nós, como animais completos, lidamos com o mundo à nossa volta. Assim, propõe- se que a cognição seja entendida não através de modelos estáticos que subjazem e orientam as ações concretas dos indivíduos, mas através de uma abordagem que leve em conta o momento dinâmico e interacional, a situação de vida, em que a cognição está ativa. Se é possível traçar uma linha evolutiva entre o cognitivismo e a concepção de mente situada, passando pela concepção de mente corporeada do conexionismo, pode-se dizer que a

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noção de mente deixou de ser concebida como estando na caixa craniana para passar para o corpo e, então, para além do corpo.

Varela apresenta essa concepção da seguinte maneira:

Trata-se de uma interpretação contínua que não pode ser adequadamente fechada num conjunto de regras e de pressupostos, porque depende da ação e da história; um mundo de significados de que nos apoderamos por imitação e que se torna parte integrante do nosso mundo preexistente. Mais ainda, não podemos excluirmo-nos do mundo para comparar seu conteúdo com as suas representações: estamos sempre imersos nesse mundo. Estabelecendo regras para exprimir a actividade mental e símbolos para exprimir as representações, afastamo-nos precisamente do eixo sobre o qual assenta a cognição na sua dimensão verdadeiramente viva. Isto só é possível num contexto limitado onde quase tudo é estático (os filósofos falam da condição cetens panibus). O contexto e o senso comum não são artefatos residuais que possam ser progressivamente eliminados graças a regras mais sofisticadas. São, na verdade a própria essência da cognição

criadora (Varela, 1994, p.78).

Assim, a geração das ciências cognitivas que sucede o conexionismo, sustentando a concepção de mente situada, é caracterizada pela tendência de abandonar modelos estáticos, trazendo para o seio da reflexão a ideia de que o conhecimento é um processo dinâmico que toma forma somente no fluxo das ações e das interações. Nesse contexto, são abandonadas as tentativas de explicar as ações humanas a partir de estruturas conceituais que pretensamente representam o mundo exterior. Para os autores que se alinham a essa nova vertente das ciências cognitivas, a cognição deve ser entendida como ocorrendo num contexto real da ação de e entre indivíduos humanos corpóreos, e não no domínio incerto das representações mentais. Não é de espantar, portanto, que a filosofia de Wittgenstein seja uma influência declarada desses autores, tendo em vista que ela elabora uma ideia de significado plenamente fundada no uso público e compartilhado que fazemos da linguagem (ver Gallagher, 2009, p. 15-18).

Deve-se destacar que não há, ainda, no âmbito da linguística cognitiva, uma proposta delineada nos termos da etapa mais recente das ciências cognitivas. Na realidade, os estudos elaborados no contexto das disciplinas linguísticas acadêmicas têm relevância limitada para as elaborações da mente situada, ao contrário do que ocorre no conexionismo, em que a linguística assume uma posição privilegiada. As evidentes semelhanças entre as posições defendidas pelos autores que se consideram pertencentes à enação e as ideias de Wittgenstein, tal como apresentadas nesta dissertação, sugerem que sua concepção de uso linguístico pode contribuir para um concepção de linguagem que supera os limites do corpo.

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