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2 FIRMANDO O CAMINHO: APONTAMENTOS GERAIS SOBRE A MULHER E A LITERATURA DE CORDEL

2.3 A literatura de cordel e a questão do cânone

Ao apresentarmos as características da literatura de cordel, suas temáticas e importância, não estamos nos isentando de uma discussão bastante pertinente a seu universo, e, por consequência, a esta tese, que é a de sua inserção no cânone, ou mesmo de seu reconhecimento como “literatura” — o próprio fato de ser colocado um complemento “de cordel” ao nome “literatura”, de certo modo, já demonstra como as características do “ser literário” parecem não lhes serem inerentes a partir da visão de muitos que a observam de forma distante ou mesmo de quem a estuda tomando-a apenas como parte de estudos de “folclóricos” ou de “cultura popular”.

Ria Lemaire ([201-?]) analisa bem essa dificuldade metodológica por parte dos estudos a respeito da produção cordelística ao afirmar que

No caso do cordel, o termo literatura traz um complemento de definição, sendo ela classificada como popular, quer dizer: para, infra, ou sub- literatura. O que parece reabilitação, na verdade, torna-se uma estratégia de exclusão do folheto de cordel do campo da Literatura do cânone, ao sublinhar explicitamente a inferioridade daquele, a superioridade desta. (LEMAIRE, [2010-?], p. 34).

Desse modo, observa-se a grande dificuldade de encaixá-la em um cânone, que tem sido formado por um pensamento elitista durante muito tempo e que ainda hoje mostra sua intenção de realizar a defesa de uma tradição claramente voltada aos interesses de grupos detentores do poder, ressaltando-se aí características claramente excludentes de uma produção literária efetuada por autores e autoras que ousem fugir aos padrões impostos.

É comum que seja apresentada a literatura como algo distante, hierarquizado, em um conceito que vai de encontro a uma concepção mais agregadora do que seria essa arte, que Antonio Candido (1995) considera, “da

maneira mais ampla possível, todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura” (CANDIDO, 1995, p. 174). Essa visão nos é cara, pois permite que consideremos a literatura de cordel como parte integrante desse processo, e não como algo estrangeiro, alienígena a um sistema pré-estabelecido, assim como foi visto, e muitas vezes ainda o é a própria literatura de autoria feminina, esteja ela inserida em qualquer contexto.

Desse modo, estamos de acordo com a visão de uma literatura (assim como de seu estudo) que não pode e não deve isolar-se em uma ilha onde o rigor formal e estético seja apenas o único tópico a ser apontado e valorizado — mesmo porque esse critério varia de sociedade para sociedade, com cada grupo agregando a importância que lhe convém. Não há como, então, valorizar apenas uma vertente, já que

Os valores que a sociedade preconiza, ou os que considera prejudiciais, estão presentes nas diversas manifestações da ficção, da poesia e da ação dramática. A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas. Por isso é indispensável tanto a literatura sancionada como a literatura proscrita; a que os poderes sugerem e a que nasce dos movimentos de negação do estado de coisas predominante. (CANDIDO, 1995, p. 175).

A literatura e, por consequência, as escolhas nela contidas não são objeto em que apenas repouse inocência, assim como também não o são os critérios para que algo seja considerado “boa literatura”, sendo, portanto, digno de figurar no cânone — por si só, alvo de inúmeras controvérsias, tendo em vista que uma escolha sempre partirá de valores inerentes a certas concepções do que deve ser não apenas a arte, como a própria vida em sociedade. Assim é que se percebe como essa discussão mostra-se pertinente ao tratarmos sobre literatura dentro desse universo e também sobre textos de autoria feminina.

Como já foi aqui exposto, os textos de cordel costumam ser apresentados como algo à parte do que seria uma “alta literatura”, e, nessa miríade de exclusão, não é raro que as mulheres cordelistas costumem ser também colocadas à parte quando são organizadas coleções/coletâneas que se pretendem tentativas para a formação de um cânone para a literatura de cordel.

Costuma-se atribuir aos estudos desenvolvidos a partir da década de 1960 pela Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB)9 — instituição ligada ao

Ministério da Cultura, criada em 1928 com o propósito de promover a preservação da memória e da produção literária e humanística — o início da construção do cânone relacionado à literatura de folhetos, assim como também podem ser destacadas, nesse mesmo sentido, as pesquisas desenvolvidas por Raymond Cantel, José Alves Sobrinho e Átila de Almeida.

Francisca Pereira dos Santos (2009), ao tratar sobre mulheres cordelistas, relata que, ao indagar o pesquisador Joseph M. Luyten sobre a ausência de cordelistas mulheres em uma coletânea que ele organizava para a editora Hedra, recebeu a resposta de que nem mesmo uma escritora como Bastinha Job — que, à época, já possuía mais de vinte títulos publicados — teria feito jus à inserção no rol de autores selecionados por conta de uma suposta “pouca quantidade” de folhetos publicados por ela.

O uso desse argumento, um critério quantitativo para valorar a significância de uma expressão artística, costuma ser bastante utilizado quando se refere à literatura de autoria feminina, estando bastante presente quando se pretende justificar a ausência de mulheres no cânone antes do século XX. É preciso destacar, entretanto, que, mesmo sob a luz de uma análise rápida, essa forma de argumentação se mostra inconsistente, basta para isso escolher um dentre os vários autores homens — do universo cordelístico ou não — com poucas obras e que são apresentados dentro de uma concepção canônica (por exemplo, o autor Augusto dos Anjos, que tem apenas um único livro publicado).

Ainda rebatendo esse argumento, é possível observar, dentro da própria coleção, a presença do poeta Severino José, que produziu, em toda sua vida, um total de apenas quinze títulos. Depreende-se, portanto, da apresentação desses fatos, que existe um claro caso de duplo padrão para estabelecer quais os critérios

9 É importante ressaltar o trabalho que hoje a FCRB desenvolve no sentido de manter o objetivo de

preservar viva a memória especificamente da produção literária cordelística. A instituição conta, através do link http://www.casaruibarbosa.gov.br/cordel/acervo.html, com acervo de cerca de nove mil folhetos de cordel, disponível para consulta on-line na base de dados da biblioteca. Desse quantitativo, mais de dois mil títulos podem ser encontrados em versão digital, com arquivos completamente digitalizados, o que é de ajuda mais que valiosa para os pesquisadores, que, hoje, de qualquer lugar do mundo, podem acessar textos, na maioria das vezes, muito raros e de difícil acesso, levando em consideração que, diferente da publicação de livros, os folhetos normalmente contavam com a edição de tiragens não tão grandes, em tipografias já hoje desaparecidas.

que devem ser adotados para a inclusão de escritores no cânone, ou mesmo para a simples publicação dessas autoras.

Tratando sobre a questão do cânone — e também levantando bastante polêmica sobre o tema — Leyla Perrone-Moisés o define da seguinte forma:

A palavra cânone vem do grego kanón, através do latim canon, e significava “regra”. Com o passar do tempo, a palavra adquiriu o sentido específico de textos autorizados, exatos, modelares. [...] No âmbito do catolicismo, também tomou o sentido de lista de santos reconhecidos pela autoridade papal. Por extensão, passou a significar o conjunto de autores literários reconhecidos como mestres da tradição. (PERRONE-MOISÉS, 1998, p. 61).

O problema reside justamente no que deve ser considerado “tradição”, em quais seriam os autores e os textos dignos de figurarem como modelos para as futuras gerações. Quem define os critérios? A partir de que pontos valorativos? Os defensores da permanência de um cânone tradicionalista costumeiramente justificam sua postura a partir do que seria um critério puramente estético, nessa argumentação omitindo, muitas vezes, a constatação óbvia de que todo juízo de valor estético também não deixa de estar sujeito às vivências e realidades dos diversos grupos sociais/regionais.

Assim é que críticos como Bloom (1995) sustentam uma postura fortemente calcada na crítica aos Estudos Culturais e a todas as vertentes de pesquisa que ousem considerar a literatura sob um enfoque que vá além do texto e leve em consideração os modos de produção literária e todos os impactos que a literatura produz sobre a sociedade (e vice-versa). O autor chega mesmo a destacar o perigo que correm os estudos de crítica literária, que estariam sendo subjugados por estudos “feministas, afrocentristas, marxistas, neo-historicistas foucaultistas ou desconstrutores — de todos que descrevi como membros da Escola do Ressentimento.” (BLOOM, 1995, p. 28).

Sendo assim, o autor leva a preocupação quanto ao desaparecimento das considerações dos valores estéticos das obras literárias à máxima potência, afirmando, sobre essas correntes, que elas reduziriam

o estético a ideologia, ou na melhor das hipóteses a metafísica. Um poema não pode ser lido como um poema, porque é basicamente um documento social ou, rara mas possivelmente, uma tentativa de superar a filosofia. Contra essa visão, exorto uma obstinada resistência, cuja única meta é preservar a poesia tão plena e puramente quanto possível. Nossas legiões que desertaram representam uma corrente em nossas tradições que

sempre esteve em fuga do estético: moralismo platônico e ciência social aristotélica. O ataque à poesia ou a exila por ser destrutiva do bem-estar social ou lhe concede tolerância se ela assumir o trabalho de catarse social sob as bandeiras do novo multiculturalismo. Por baixo da superfície de marxismo, feminismo e neo-historicismo acadêmicos, continua a correr a antiga polêmica do platonismo e a igualmente arcaica medicina social aristotélica. Suponho que o conflito entre essas tensões e os sempre sitiados defensores do estético não pode acabar nunca. Estamos perdendo agora, e sem dúvida continuaremos perdendo, o que é uma pena, porque muitos dos melhores estudantes vão nos abandonar por outras disciplinas e profissões, um abandono já bastante em andamento. Têm razão para fazer isso, porque não podemos protegê-los contra a perda de padrões intelectuais e estéticos de realização e valor de nossa profissão. Tudo que podemos fazer agora é manter uma certa continuidade com o estético e não ceder à mentira de que nossa oposição é à aventura e a novas interpretações. (BLOOM, 1995, p. 26).

Percebe-se, nas palavras de Harold Bloom, um interessante deslocamento no sentido de colocar aqueles que detêm o poder como vítimas do que seria uma espécie de perseguição capaz de roubar os melhores cérebros em direção a um caminho que seria marcado pela “perda de padrões intelectuais e estéticos”, como se analisar textos levando em consideração outras vertentes fosse um caminho menos importante e digno.

Concordando com essa postura, Leyla Perrone-Moisés (1998) também tende a uma exacerbação dessa preocupação, que nos parece inócua, tendo em vista que o modo de estudar a literatura levado a cabo por essas correntes citadas pelos autores mencionados não invalida o trabalho que eles mesmos fazem, não sendo, portanto, adequada à criação e à continuação de uma rivalidade em que não há vencedores dentro do mesmo campo de estudo. Diz a autora que

Supreendentemente, o maior reforço dado a esse estrangulamento dos estudos literários não foi obra de tecnocratas, mas de professores de literatura “politicamente corretos”, que submeteram as análises e a própria escolha de textos a critérios de “raça”, “gênero” e “classe”. Nas universidades norte-americanas, a literatura tende atualmente a desaparecer como disciplina autônoma, integrando-se nos “estudos culturais”, ou particularizando-se em razão das abordagens ideológicas de grupos militantes: estudos “de gênero” (feministas, gays e queers); estudos “pós-coloniais” (a literatura produzida por ex-colonizados, nas línguas das ex-metrópoles); estudos “multiculturais” [...]. A fundamentação e os objetivos políticos desses enfoques da literatura não estão apenas implícitos; são declarados por seus defensores. Os limites entre a conscientização e a doutrinação dos alunos desapareceram. (PERRONE-MOISÉS, 1998, p. 191).

Este trabalho, obviamente, segue linha completamente diversa da apresentada nas citações dos autores trazidas aqui, mesmo porque pretende

examinar as relações de gênero dentro da literatura de cordel, dentro de uma perspectiva proposta por Eduardo Coutinho (2006) de que abordar a literatura através de um viés apolítico é algo impossível, e essa atitude, em realidade, serve, muitas vezes, para “camuflar uma atitude prepotente de reafirmação da supremacia de um sistema sobre os demais” (COUTINHO, 2006, p. 68). Além disso, e segundo o mesmo autor, os estudos muito mais voltados para questões contextualizadas serviram para ampliar o cunho interdisciplinar da Literatura Comparada, que passou, então, a abranger uma rede mais complexa de relações culturais, desse modo, levando em consideração que as obras literárias são produtos culturais e, como tais, devem ser levadas em consideração suas relações com as demais áreas do saber.

Para o autor, a questão do cânone

constitui uma das instâncias mais vitais da luta contra o eurocentrismo que vem sendo travada nos meios acadêmicos, pois discutir o cânone nada mais é que pôr em xeque um sistema de valores instituído por grupos detentores de poder, que legitimaram decisões particulares com um discurso globalizante. (COUTINHO, 2006, p. 70).

Indo ainda mais de encontro às ideias apresentadas por Bloom e Perrone- Moisés, Coutinho reforça a importância da inclusão de registros diversos que até então foram marginalizados pelo discurso oficial dentro do(s) cânone(s) das diversas literaturas latino-americanas. A este trabalho, essa ideia se mostra como particularmente cara, especialmente ao referir-se à necessidade da aceitação do cordel brasileiro dentro desse universo canônico, assim como também de outras manifestações, como o da produção em créole do Caribe francês. Segundo o autor,

vem sendo argumentado que não podem ficar à margem produções como a das minorias hispânicas radicadas nos Estados Unidos [...], nem muito menos as vozes das “minorias de poder” dentro do próprio continente, como as dos grupos feministas, que têm desempenhado papel de relevo no processo de releitura crítica da cultura latino-americana. (COUTINHO, 2006, p. 72).

Através das ideias apresentadas neste tópico, foram apresentadas visões diversas sobre a relação entre a literatura de cordel e o cânone. No entanto, devido esta tese contemplar uma visão de literatura que pressupõe a inclusão do que tradicionalmente foi posto à margem, daremos continuidade à discussão em torno das questões de gênero e, mais especificamente, sobre como se caracteriza a Crítica Literária Feminista.

2.4 A Crítica Literária Feminista e as questões de gênero

É partindo da premissa exposta no excerto de Coutinho (2006) — de que existem “minorias de poder”, em especial, os grupos feministas, os quais desempenham papel importante para a releitura da cultura latino-americana — que desenvolvemos esta tese, acreditando, portanto, que os estudos da Crítica Literária Feminista contribuem, de modo significativo, para a correção de várias injustiças no reconhecimento do trabalho que as mulheres fizeram no âmbito não só da literatura de cordel, mas dela como um todo, em suas muitas vertentes. Dessa forma, a inserção dessas mulheres no cânone não deve ser algo feito como um favor, assim como insinua Leyla Perrone-Moisés: “Excluir do cânone um Dante, para colocar em seu lugar alguma mulher medieval que porventura tenha conseguido escrever alguns versos, não seria ato de justiça; seria, no máximo, uma vingança extemporânea”. (PERRONE-MOISÉS, 1998, p. 198-1999). Como se, de fato, as pessoas que seguissem o trabalho de acordo com a Crítica Feminista procurassem fazer a exclusão de autores consagrados para a inclusão de mulheres escritoras — que, segundo o que defende a autora, no máximo, teriam conseguido escrever “alguns versos”: mais uma vez percebe-se a atribuição de um critério quantitativo para conferir o que seria o grau de qualidade/importância dos textos de autoria feminina.

De acordo com o exposto, convém ressaltar aqui que a Crítica Literária Feminista, linha teórica que orienta esta tese, e a partir de onde as análises dos textos de literatura de cordel que abordam a figura da mulher (de autoria feminina ou não) foram estruturadas, surgiu em decorrência do avanço do próprio movimento feminista, que esteve sempre, desde os seus primórdios, em estreita ligação com a literatura, tendo em vista que a vontade/necessidade de escrever aparece como uma das características básicas do próprio ser humano, independente do gênero a que pertença. Nem sempre, entretanto, foi tão simples chegar a essa constatação.

Telles (2013) indica que o estado de sujeição feminina ao poder do homem — também na esfera cultural — era algo difícil de ser superado no século XIX: “Excluídas do processo de criação cultural, as mulheres estavam sujeitas à autoridade/autoria masculina.” (TELLES, 2013, p. 402). Em decorrência disso, muitas mulheres que poderiam destacar-se como escritoras acabavam tolhidas em