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3 UM PASSO À FRENTE: O UNIVERSO FEMININO NO TEXTO CORDELÍSTICO TRADICIONAL

5 PONTO DE CHEGADA: A LITERATURA DE CORDEL E A DIMENSÃO INTERSECCIONAL

5.1 Caminhando em direção a um feminismo plural

Na segunda seção desta tese, foram abordadas questões relativas à memória e de como seus mecanismos se estabelecem a partir de um plano pessoal e coletivo. A literatura, conforme já se afigurou aqui, é um importante espaço para a preservação e (por que não dizer?) para o estabelecimento da memória. Levando-se em consideração que o espaço literário sempre esteve predominantemente entregue nas mãos dos grupos hegemônicos, o texto do cordel demonstra ser um espaço importante para que o oprimido possa também construir e/ou guardar suas narrativas. Partindo dessa premissa, chegamos ao momento em que o movimento dessa corda bamba se completa. As relações entre a literatura de cordel e o feminino/feminismo atingem um novo patamar.

Já mencionamos aqui, na primeira seção deste trabalho, que o feminismo passou por fases, denominadas comumente como “ondas”. As diversas questões políticas, econômicas e sociais brasileiras levaram ao acontecimento desses períodos — assim estabelecidos para uma finalidade mais didática do que propriamente de marcação cronológica — de modo, em grande medida, simultâneo. Assim, especialmente aquilo que chamamos de terceira onda feminista ainda se desenrola no nosso cotidiano, com a apresentação de demandas provenientes de questionamentos referentes a postulações diversas, como questões referentes à sexualidade e a concepções pós-estruturalistas na concepção do conceito de gênero, as quais levaram Judith Butler a escrever seu Problemas de gênero (publicado originalmente em 1990) e a florescerem posicionamentos sobre a Teoria Queer. Além disso, destacam-se as chamadas políticas transversais, quando se observam as diversas condições possíveis de serem enfrentadas por mulheres no mundo, considerando não apenas a noção de raça/etnia, mas conceitos como classe, sexualidade, nacionalidade, idade e religião, por exemplo.

Alguns teóricos, entretanto, defendem a existência de uma quarta onda feminista, que seria caracterizada especialmente pelo uso das mídias digitais para que suas reivindicações sejam divulgadas, especialmente no que concerne a questões relativas à violência contra a mulher. Segundo Bogado (2018),

Embora só em 2015 a quarta onda feminista tenha alcançado maior amplitude, capaz de atingir diferentes setores da sociedade, desde o início da década de 2010 ela já vinha mostrando sua força em manifestações públicas. Um exemplo é a Marcha das Vadias, criada em 2011, no Canadá, que se tornou marco desse processo. Quando, após uma série de estupros ocorridos na Universidade de York, um policial afirmou que as mulheres haviam sido agredidas por se vestirem como “vadias”, uma onda de protestos correu o mundo. [...] A mensagem é clara: a mulher tem autonomia sobre o seu próprio corpo. (BOGADO, 2018, p. 33).

Costa (2018) defende ainda que a web tem sido um fator central e estratégico para as marchas feministas. Segundo a autora, “nunca as táticas e a militância das mulheres foram tão potencializadas e produziram reações a alianças na escala que se vê hoje.” (COSTA, 2018, p. 43). Assim é que se destaca o poder mobilizador das hashtags, o qual foi demonstrado a partir de uma série de movimentos guiados por essa premissa em que não importa se há uma liderança, mas o que se diz na rede, e que é capaz de gerar uma pressão social. Campanhas como #PrimeiroAssédio, #NãoMereçoSerEstuprada e #CarnavalSemAssédio demonstram iniciativas grandemente espontâneas que servem para informar e prevenir. Alguns, entretanto, ainda criticam essa forma de ativismo:

As campanhas com hashtags foram o grande momento e a maior novidade do ativismo feminista jovem. A quarta onda chegou mesmo a ser batizada ironicamente como ativismo de sofá, minimizando a importância que a rede teve nessa mobilização insurgente. (COSTA, 2018, p. 53).

Como mencionamos previamente, as chamadas “ondas” feministas não são lugares estanques. Sendo assim, podemos perceber claramente muitas das reivindicações e dos métodos coexistindo na contemporaneidade, e no contexto que nos é mais relevante, na realidade brasileira. O que se destaca especialmente no espaço desta tese é observar a inteseccionalidade do movimento, que leva à reflexão sobre questões identitárias diversas e proporciona a publicação de textos cordelísticos engajados nesse debate.

Segundo Ribeiro (2018, p. 123), “Apesar de várias feministas negras já se utilizarem de uma análise interseccional antes disso, o conceito só foi cunhado em 1989 por Kimberlé Crenshaw, em sua tese de doutorado”. A interseccionalidade pressupõe considerar que as mulheres não são iguais, não são uma categoria única e, por isso mesmo, as opressões que sofrem são diferentes e é preciso nomeá-las e

entendê-las para combatê-las de modo efetivo. Para pensar nessa perspectiva, portanto, deve-se “perceber que não pode haver primazia de uma opressão sobre as outras e que é preciso romper com a estrutura. É pensar que raça, classe e gênero não podem ser categorias pensadas de forma isolada, porque são indissociáveis.” (RIBEIRO, 2018, p. 123).

Nós concebemos a “interseccionalidade” como um conceito que denota os efeitos complexos, irredutíveis, variados e variáveis que advêm quando eixos de diferenciação múltiplos — econômico, político, cultural, físico, subjetivo e experiencial — se interseccionam em contextos historicamente específicos. O conceito ressalta que as diferentes dimensões da vida social não podem ser separadas em vertentes discretas e puras. (BRAH; PHOENIX, 2017, p. 662-663).

Assim se pode perceber que

O reconhecimento de que “raça”, classe social e sexualidade diferenciavam as experiências das mulheres provocou rupturas nas noções de uma categoria homogênea de mulher — com suas suposições de universalidade que mantinham o status quo em relação à “raça”, classe social e sexualidade —, ao mesmo tempo em que questionou as suposições de gênero. Assim sendo, a interseccionalidade está em sintonia com o rompimento do pensamento modernista a partir das ideias teóricas do pós-colonialismo e pós-estruturalismo. (BRAH; PHOENIX, 2017, p. 675).

Para Schmidt, após o reconhecimento das diferenças, houve a necessidade de se fazer uma ponte, de se lidar com essas questões, pois, depois

das dificuldades iniciais em lidar com as diferenças entre as mulheres, teoria e prática feministas passam a se ver diante da tarefa de lidar com tais diferenças, criando estratégias de negociação e políticas de coalizão, iniciativas que acabam por redefinir a própria noção de identidade. (SCHMIDT, 2017, p. 687).

Nessa perspectiva é que se destacam as iniciativas do feminismo negro, um movimento que deu origem aos debates sobre a perspectiva da interseccionalidade, e que, segundo Ribeiro (2018), ganhou força a partir da segunda onda do feminismo, com a fundação da National Black Feminist, em 1973, e a subsequente prática crescente de feministas negras escrevendo sobre o tema, realizando a criação de uma literatura feminista negra. No Brasil, nomes como Sueli Carneiro e, mais recentemente, Djamila Ribeiro, destacam-se na reflexão sobre o tema. E é no campo da literatura de cordel que aparece a figura de Jarid Arraes como grande expoente das discussões inerentes à interseccionalidade, especialmente,

quanto às trajetórias da mulher negra na sociedade brasileira transcrita em versos, em uma experiência poética libertadora. Seu trabalho será analisado mais aprofundadamente em tópico a seguir.

Chama a atenção que o debate racial tenha explodido nos Estados Unidos na década de 1960: o país ainda mantinha negros e brancos em lugares bem delimitados e distintos, com proibições diversas para as pessoas de pele negra. Como exemplo disso, o grande boxeador Muhammad Ali, ao voltar como campeão das Olimpíadas de Roma, em 1960, foi alvo de preconceito ao ser impedido de entrar em determinados estabelecimentos proibidos para negros. Num cenário como esse, faz bastante sentido a eclosão furiosa de movimentos no sentido de quebrar amarras tão apertadas, que, com certeza, eram ainda mais cruéis para mulheres negras.

No Brasil, entretanto, esses debates demoraram a aparecer de forma mais intensa. Pode-se dizer que eles vêm se intensificando especialmente nos últimos anos, situação amplificada também pelo advento das redes sociais, que deram voz e vez mesmo àquelas pessoas distantes dos círculos acadêmicos. Nesse espaço, destaca-se a horizontalidade, que tem sido uma característica marcante do movimento feminista contemporâneo. Chama a atenção que essas discussões tomem vulto de forma alargada somente agora, num país com mais mulheres que homens e onde parcela significativa da população é negra ou parda.

Essa realidade encontra respaldo no mito da democracia racial brasileira, conceito baseado nas ideias de Gilberto Freyre, o qual pressupõe uma suposta igualdade social entre pessoas com diversas cores de pele, amparada na noção de que somos um país essencialmente mestiço, de uma formação que teria sido, portanto, pacífica. Essa ideia de que viveríamos em uma “democracia racial” supõe que o Brasil teria escapado dos efeitos do racismo, e que a mobilidade social dos habitantes não seria influenciada pela discriminação racial, mas por outros fatores, como classe e gênero.

Percebe-se, entretanto, o quão danoso foi esse pensamento para a população negra de nosso país, pois o racismo sempre esteve presente em meio à nossa população de forma perigosamente velada e, de forma paradoxal, sempre exposta. Para notar isso, basta observar a quantidade reduzida de pessoas negras com acesso a cargos políticos mais importantes, ou mesmo nas artes, especialmente na Literatura. As histórias envolvendo personagens negros são

dificilmente encontradas, e mais difícil ainda é encontrar aquelas que são relatadas através da perspectiva do próprio negro, que também ainda pouco se vê na tela da tevê ou do cinema.

Mesmo assim, a ideia de democracia racial ainda permeia o imaginário brasileiro, como se a pouca representatividade não fosse uma prova forte o suficiente de que essa ideia, na verdade, impediu por muito tempo que fossem implementadas políticas públicas efetivas para estabelecer um equilíbrio de forças entre a população negra brasileira e aqueles que não assim se caracterizam.

Se já é difícil a situação para o homem negro em termos de assertividade/representatividade, pode-se dizer que, para a mulher negra, o contexto se afigura como bem pior, tendo em vista que temos dois conceitos que se entrecruzam de modo a dificultar-lhe seu caminho: a sua raça e seu gênero.

Direcionando-se, portanto, à ideia de um feminismo negro, Djamila Ribeiro discorre, no seu livro O que é lugar de fala? (2017), sobre a importância de assumirmos que essa diversidade existe, e que, como é real, não pode ser escondida, devendo ser explorada como modo de fazer com que seus efeitos danosos sejam superados. Para a pesquisadora,

Pensar em feminismo negro é justamente romper com a cisão numa sociedade desigual, logo é pensar projetos, novos marcos civilizatórios para que pensemos em um novo modelo de sociedade. Fora isso, é também divulgar a produção intelectual de mulheres negras, colocando-as na condição de sujeitos ativos que, historicamente, vêm pensando em resistências e reexistências. (RIBEIRO, 2017, p. 14).

A filósofa apresenta o conceito de lugar de fala, algo caro aos posicionamentos do feminismo negro, reforçando que

todas as pessoas possuem lugares de fala, pois estamos falando de localização social. E, partir disso, é possível debater e refletir criticamente sobre os mais variados temas da sociedade. O fundamental é que indivíduos pertencentes ao grupo social privilegiado em termos do locus social, consigam enxergar as hierarquias produzidas a partir desse lugar e como esse lugar impacta diretamente na constituição dos lugares de grupos subalternizados.

Numa sociedade como a brasileira, de herança escravocrata, pessoas negras vão experenciar racismo do lugar de quem é objeto dessa opressão. Pessoas brancas vão experenciar do lugar de quem se beneficia dessa mesma opressão. Logo, ambos os grupos podem e devem discutir essas questões, mas falarão de lugares distintos. (RIBEIRO, 2017, p. 86).

Marcia Tiburi (2018) reforça a necessidade do diálogo quando se pensa no conceito de lugar de fala, acrescentando que este constrói um contexto que deve ser propício a essa prática: “Se luta é um conceito que implica oposição, implica necessariamente o diálogo. A conquista, a defesa de direitos e a ocupação dos lugares de fala não se sustenta fora disso”. (TIBURI, 2018, p. 55).

Desse modo, entende-se que pensar um feminismo negro vai de encontro ao mito da democracia racial aqui já apresentado. No momento em que admitimos a existência de uma sociedade desigual, é possível criar estratégias para romper essa desigualdade. É exatamente isso que vislumbramos ao registrarmos a publicação de textos de cordéis que tratam dessa temática. Jarid Arraes, cujo trabalho será analisado no próximo tópico desta seção, realiza essa prática ao descrever, em cordel intitulado Feminismo negro, como se caracteriza esse movimento:

Lá pras bandas de 70 Já bastante pro final Se ergueu um movimento No seu tempo germinal Foi o Feminismo Negro Para a luta social [...] Só que tinha um problema Complicado de enfrentar Pois o tal do Feminismo Teimava em representar Só as brancas estudadas Sem do racismo lembrar [...] Digo isso pois a pauta Para a mulher trabalhar Para conquistar direito E aos homens se igualar Acabava é se omitindo E findava a segregar.

Pois enquanto a mulher branca Por emprego trabalhava A mulher que era negra Há muito labutava Desde a vil escravidão

Ou limpando chão de casa [...] Isso foi bem complicado Porque muitas feministas Não quiseram compreender Que podiam ser racistas Se falavam de mulheres De forma generalista. Pois nem todas as mulheres São completamente iguais

Cada grupo tem suas demandas Como classe coisas tais

Mas ainda relevantes São as questões raciais. Outro ponto sem conforto Era a droga do machismo Pois no movimento negro Na luta contra o racismo A mulher negra penava Enfrentando o sexismo. [...] É possível enxergar Na intersecionalidade Uma prática que presa Por bem mais diversidade Atentando pros recortes

Para as peculiaridades. (ARRAES, [201-]i, p. 1-6).

Como se pode ver, o texto em versos torna muito mais atraente a leitura de temas extremamente sérios. Por isso mesmo, o alcance da mensagem atinge patamares muito mais amplos. A interseccionalidade antes aqui apontada ganha o recorte de duas outras questões: a divisão interna dentro do próprio âmbito feminista, no qual muitas mulheres se recusam a perceber a necessidade de recortes, e a situação do sexismo enfrentada pelas mulheres negras, que é ainda maior que a que mulheres brancas experimentam. É assim, portanto, que passaremos à apresentação da análise do trabalho de Jarid Arraes na dimensão da escrita de cordéis que focam em uma experiência interseccional pautada em seu lugar de falar muito particular.