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A mulher e o casamento em Um casamento infeliz, de João Martins de Athayde

3 UM PASSO À FRENTE: O UNIVERSO FEMININO NO TEXTO CORDELÍSTICO TRADICIONAL

3.4 A mulher e o casamento em Um casamento infeliz, de João Martins de Athayde

O folheto Um casamento infeliz (1952), de João Martins de Athayde, merece destaque aqui por aparecer como um contraponto aos textos de Leandro Gomes de Barros apresentados anteriormente. Ele começa, nas onze primeiras estrofes, com uma descrição genérica do que seria a mulher na concepção do poeta, e isso serve como preâmbulo para o resto da narrativa que, na verdade, enfoca a situação de uma “menina de doze anos” que se enamora de um rapaz. A partir de então, começa sua sina de esperar o casamento.

Sobre a primeira ideia de apresentação do ente feminino, destacam-se os versos:

É um ente singular sua imagem é peregrina seu corpo esbelto e faceiro almeja uma alma divina tem por dote a eloquencia é o simbolo da inocencia e da candura feminina. [...] A mulher é um mistério deriva da piedade, seu coração bemfazejo só reina amabilidade. sua imagem é sedutora é ela a mãe criadora

É claro, nessa exposição, que à mulher é reservado o papel clássico atribuído à sua imagem: “imagem peregrina”, “alma divina”, “símbolo de inocência”, “candura feminina”, “mistério”, “deriva da piedade”, “coração bemfazejo”, “reina amabilidade”, “mãe criadora”. Entre a imagem da bendita e da maldita já apresentada nos cordéis de Leandro Gomes de Barros, fica evidente que João Martins de Athayde escolhe a primeira opção. Isso ocorre com um diferencial bastante relevante em relação aos textos que comumente encontramos naquilo que optamos por chamar de fase tradicional do cordel: a visão da instituição do casamento como um martírio para a mulher e todas as consequências que ele carrega em seu bojo. Destaca-se que a situação mais recorrente quanto a essa questão é de vê-lo como uma fonte de sofrimento para os homens e, especialmente nos textos de Leandro Gomes de Barros, o discurso costuma ser perpassado pela galhofa.

Não é difícil entender esse raciocínio predominante nos textos de cordel, levando em consideração que, até hoje, grassam, em nossa sociedade, muitos exemplos de que os prejudicados pelas uniões matrimoniais seriam, em realidade, os homens. Como exemplo, nas celebrações de casamento, muitas vezes, observa- se a representação do casal no topo do bolo com a figura masculina sendo carregada, algemada e arrastada para o altar; proliferam imagens com textos de “game over” (fim de jogo) para o noivo, como se ele estivesse diante de uma severa penitência e um exponencial aumento de responsabilidade ao casar-se, contradizendo uma realidade apontada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), segundo pesquisa de 2016. Sobre a questão, assim declaram Cássia Almeida e Daiane Costa em reportagem para o jornal O Globo:

A mulher trabalha cada vez mais que o homem. Não se trata de opinião ou sentimento, é dado estatisticamente comprovado pelo IBGE. Em uma década, a diferença aumentou em mais uma hora. Em 2004, as mulheres trabalhavam quatro horas a mais que os homens por semana, quando se soma a ocupação remunerada e o que é feito dentro de casa. Em 2014, a dupla jornada feminina passou a ter cinco horas a mais, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), que reúne informações de mais de 150 mil lares. (ALMEIDA; COSTA, 2016, on-line).

O imaginário popular encontra-se, no entanto, recheado dessas representações e, no texto cordelístico tradicional, isso dificilmente seria diferente,

tendo em vista o contexto que o cerca, de uma realidade fortemente estratificada e marcada pelas relações bastante desiguais quanto às questões de gênero.

São dignos de nota, portanto, versos como estes, da última estrofe do folheto, que se apresentam escritos por um homem, embora representando cruamente a dura realidade da mulher:

È este o melhor futuro que o casamento oferece eu não posso dizer tudo quanto uma moça padece quem pensar que não é nada pergunte a uma casada,

que disto melhor conhece. (ATHAYDE, 1952, p. 8).

A estrofe nos apresenta alguns pontos importantes: dada a singularidade do formato de publicação dos folhetos de cordel, a questão do problema quanto à autoria era algo relevante. Conforme já apresentado na seção anterior, muitas vezes, os direitos autorais eram comprados/vendidos entre os envolvidos no mercado editorial cordelístico, e isso nos leva à reflexão que nada impediria que um texto com uma reflexão tão sui generis sobre a condição feminina pudesse ter sido escrito por uma mulher — algo que, como já foi aqui apresentado, era costumeiramente escondido e repudiado não só no universo do cordel, mas das letras em geral, cabendo aos homens o bônus da autoria dos textos. Sabe-se hoje, inclusive, que a filha de João Martins de Athayde, Maria José de Athayde, escreveu cordéis, como informa Lucena:

Por trás da afirmação de que as mulheres auxiliaram maridos e pais a escrever e a rever histórias está, muitas vezes, o fato de elas terem escrito cordéis e de não terem os assinado, como foi o caso de Maria José de Athayde, filha de João Martins de Athayde. (LUCENA, 2010, p. 60).

A pesquisadora Francisca Pereira dos Santos, ao analisar um acervo de entrevistas do Fonds Cantel, da Universidade de Poitiers, deparou-se com a fala de um dos filhos de João Martins de Athayde, Marcus Vinícius Athayde, que declarava ser Maria a autora de boa parte das capas dos folhetos do pai. Esse depoimento viria a ser confirmado por outra entrevista, dessa vez realizada por Roberto Benjamim, com a segunda esposa de João, chamada Sofia Cavalcanti de Athayde. Segundo sua fala, a filha (do primeiro casamento) Maria desenhava e também fazia

versos, tendo sido responsável pela autoria do folheto intitulado O balão do destino, embora este seja creditado ao pai dela.

Figura 12 – Capa do folheto O balão do destino, de autoria atribuída a Maria José de Athayde

Fonte: Athayde (1977).

Apesar dos elementos apontados anteriormente, não há nenhum indício material, porém, que nos leve à certeza da confirmação da hipótese de ter sido ela a autora do folheto em análise, a não ser o próprio conteúdo dos versos.

Além de haver versos mostrando o casamento sob uma ótima negativa (uma obrigação não desejada, mas imposta como uma premissa social) perpassando todo o texto, isso ocorre também em relação ao parto, algo visto normalmente como uma bênção, uma alegria, mas aqui observado como fonte de mais dor e sofrimento em prol não de uma realização pessoal, mas de um bem coletivo:

Não tem rica, nem tem pobre opulenta, ou soberana, casando tem de passar pela dor cruel tirana é necessário casar só assim pode aumentar, o mapa da raça humana Lhe aparece a gravidez são frutos do seu amor

então diz ela a si mesma: já perdi todo valor! como eu era tão corada! vejo-me assim desbotada,

pálida, amarela, sem côr!(ATHAYDE, 1952, p. 6-7).

As consequências do parto para o corpo da mulher, por sua vez, também são retratadas como algo extremamente triste e doloroso, reforçando-se que o julgamento da sociedade sobre a figura feminina dá-se especialmente por sua aparência e, por isso mesmo, é bastante cruel que seu destino seja obrigatoriamente se casar, procriar para “aumentar o mapa da raça humana” e, por fim, ver-se descartada como uma figura repulsiva aos olhos de pessoas que almejam padrões estéticos duros para a mulher (algo que não mudou mesmo tantos anos depois). “Já perdi todo valor!”, diz a moça do texto, e quantas ainda hoje se veem presas nesse mesmo embate?

Quem foi esta criatura gorda faceira e mimosa?... hoje se vê rabugenta magra doente leprosa por falta de vigilancia perdeu a primeira infancia, de uma existencia de rosa. Olhando em torno de si fica até desanimada. parece uma aleijona quem foi esbelta e delgada oh! sorte cruel tirana! é da criatura humana

que nasceu p’ra ser casada. (ATHAYDE, 1952, p. 7).

O texto acompanha desde o início da saga da menina até o fim de sua vida, descrevendo-o de modo trágico:

Já nos últimos momentos n’aquelas horas fataes, quando se vê sem remedio deseja a casa dos pais seu juízo não descança daquela louca lembrança,

dos tempos que não vem mais. (ATHAYDE, 1952, p. 8).

Diante do exposto, percebe-se um claro desvio do que é o comumente apresentado sobre a temática e já foi antevisto aqui na apresentação de alguns textos. Esse folheto demonstra uma humanização da problemática raramente

percebida dentro da esfera clássica, que trata o assunto em uma perspectiva pautada em valores nitidamente machistas na tentativa de provocar o humor.