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2 ENTRE A LITERATURA E A HISTÓRIA

2.3 A LITERATURA PÓS-INDEPENDÊNCIA

Diferentemente de Matusse, Borges Coelho (apud GALVES et al, 2009, p.

63) vê como segundo momento da literatura moçambicana o período a partir da tomada do poder pela FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique). Movimento pró-independência fundado em 1962 e autodenominado marxista-leninista, buscava a formação de um único bloco que pudesse expulsar os portugueses do território. De acordo com o autor,

É o contexto que muda, e de forma dramática, afectando drasticamente o referido cosmopolitismo, com a diáspora branca, o desaparecimento de editoras e livrarias, enfim, com o fechamento acentuado do país ao modernismo que existia no espaço colonial, por razões de bloqueio econômico, mas também ideológico. (ibid, p. 63)

O bloqueio ideológico ao qual Borges Coelho se refere afetou também, segundo ele, a relação da FRELIMO com a intelectualidade urbana moçambicana e

a celebração literária da ancestralidade africana praticada como resposta à imposição de valores europeus: a perspectiva da FRELIMO “procurou uma construção alternativa aos valores coloniais”, de ideias próprias, cujos valores também diferiam dos tradicionais, tidos como obscuros. O projeto da FRELIMO era construir um novo estado com um novo ideário, cujo alicerce era a ideia de “uma só”

nação, a despeito da realidade multiétnica e multicultural existente no território.

Souza destaca o papel exercido por Samora Machel, líder da FRELIMO e sucessor de Eduardo Mondlane, fundador do movimento, assassinado pela polícia portuguesa em atentado ocorrido na Tanzânia. É com a ascendência política de Samora que ganha força a ideia de que apenas com a morte dos tribalismos é que se poderia construir o “homem novo”. De acordo com Lorenzo Macagno (2009),

Como depositário desse desafio, Machel é erigido o novo porta-voz da nação, mostrando-se um entusiástico formulador de uma espécie de

“marxismo caseiro”, adaptado às singularidades da experiência moçambicana. Nessa formulação, uma das preocupações dos novos porta-vozes da nação seria a de educar, produzir e criar o novo homem moçambicano.

A expressão “do Rovuma a Maputo” é utilizada quando se quer fazer referência à unidade geográfica do país, o equivalente ao brasileiro “do Oiapoque ao Chuí”. A expressão cunhada por Samora Machel enfatiza a ideia de que todos os que habitam o território constituem a nação moçambicana. A unificação em torno da ideia da coletividade identitariamente homogênea, contudo, partiria de um falso entendimento de uma identidade portuguesa sem cisão, homogênea. Como afirma Lorenzo Macagno (2009), a fundamentação da construção do “novo homem moçambicano” estava baseada “sob a lógica do enfrentamento a uma outra entidade que se apresentava igualmente homogênea: a nação portuguesa e suas pretendidas províncias de ultramar.” Ou seja, é no desejo extremo de se afastar do modelo português (e europeu) que a ideologia da FRELIMO se torna também, nas palavras de Macagno, “assimilacionista e intolerante”.

A propagação do ideário da FRELIMO subalternizou e empobreceu, segundo Borges Coelho (apud GALVES et al, 2009), o movimento literário que, por um lado, afasta-se da história e, por outro, desafia a ideia de “um só passado”;

Ualálapi, romance de Ungulani ba ka Khosa, é fruto desse questionamento. Mas é a partir do início da década de 1990, com o fim da guerra civil, que surge uma nova

geração de escritores que novamente buscam no passado a partir do “mosaico de fragmentos que é a atualidade”, firmando “novo contrato entre a literatura e a história” no qual “a literatura africana surge como acto político fundado num critério ético.” (BORGES COELHO apud GALVES et al, 2009, p. 66). Retomamos, portanto, a classificação de Gilberto Matusse (1998) que vê a contemporaneidade literária moçambicana a partir de uma relação não apenas com a história da construção da nação, mas com a própria história literária moçambicana:

O quarto domínio é o que, numa perspectiva de comparativismo interno, se prende com a reprodução de formas que a recepção crítica consagrou como traços característicos da moçambicanidade. Assim, por exemplo, ao recuperarem certas formas de escrita peculiares a escritores considerados precursores da afirmação de uma identidade literária moçambicana, os autores mais recentes não só contribuem para as consagrar como elementos distintivos da moçambicanidade, como também as usam para construir na sua obra a imagem dessa moçambicanidade. É um domínio onde funciona a dialética da intertextualidade, em que a interacção semiótica entre um texto e o seu intertexto produz efeitos mútuos, ou seja, o texto projecta-se sobre o intertexto ao mesmo tempo que este sobre aquele, reforçando-se com esta solidariedade o carácter de elementos

“construtores” da imagem de moçambicanidade nas formas em causa.

(MATUSSE, 1998, p. 76)

Retorna, portanto, a moçambicanidade enquanto valor a ser discutido pela literatura contemporânea em Moçambique. Subjacente a ela, o entendimento de que a sociedade moçambicana é essencialmente plural e, portanto, dotada de muitas vozes. O desafio que se impõe na contemporaneidade é, nas palavras de Ngoenha (apud SERRA, 1998, p. 18) inspirado em Booker T. Washington, “saber se o espaço identitário moçambicano pode garantir a preservação das liberdades conquistadas e a continuação do caminho da liberdade que resta ainda percorrer, sobretudo em termos de responsabilidade.”

Em junho de 1984 era publicado o primeiro exemplar da revista Charrua, pela Associação de Escritores Moçambicanos, a primeira revista literária publicada em Moçambique pós-independência. É a partir da década de 1980 que a ficção moçambicana reaparece, depois de um período de adormecimento em virtude da instabilidade política que se seguiu à independência nacional. Sobre o período, Nelson Saúte (2000, p. 13) afirma:

A experiência da geração que se revelaria, nos anos 80, à sombra tutelar do projecto “Charrua”, nas páginas literárias que abundavam no espaço midiático nacional, traria à literatura moçambicana não só uma multívoca

pluralidade de posturas estilísticas e de linguagens na ficção como haveria de contribuir com a diversidade, o arrojo e a experimentação que estão na base de alguma da melhor literatura nascente, entre nós. Uma hesitação permanente entre a tradição e a modernidade, algo que ocorrera na poesia, irá balizar a acção criativa destes contistas e romancistas que, em plena década de 90, confirmam-se, paulatinamente, perante o crivo dos leitores e da crítica.

Ainda de acordo com Saúte (ibid, p. 17), a geração dos anos 80 “se afirma numa época dominada por uma forte inquietação produzida num contexto histórico, político, social e cultural moçambicano novo”, no qual a problemática da identidade surge como “questão central na nossa literatura.” (ibid, p. 18) A emergência da literatura pós-independência em Moçambique significou o surgimento de “um espaço de catarse que a sociedade provavelmente ainda não cumpriu nestes últimos anos.”

A produção literária contemporânea moçambicana ainda se vê marcada pela história e a política, alicerçada pelo testemunho, “embrenhada no imaginário profundo da condição do ser moçambicano. A querela tradição versus modernidade que baliza o espaço da conflitualidade identitária, individual e nacional” (ibid, p. 19).

A criação da Associação dos Escritores Moçambicanos, na qual envolviam-se diretamente Luís Bernardo Honwana, Rui Nogar, Orlando Mendes, José Craveirinha e Albino Magaia, em agosto de 1982, institucionaliza a literatura ao mesmo tempo em que as primeiras manifestações identitárias se fazem mais intensas:

(...) a associação compõe um espaço heterogéneo de modelos e práticas.

De uma forma sintética, cruzam-se, por vezes nas mesmas pessoas, a convicção de que a literatura é uma arma ao serviço da revolução moçambicana, a obediência a uma função didática da arte, a filiação no neo-realismo que “varria as concepções caducas” e a concepção dos escritores como “produtores de literatura” que “se projectam como voz coletiva” (AEMO, s.d.:4) com propostas mais cosmopolitas, práticas literárias que não respondem a esses modelos e uma ideia de literatura como trabalho experimental de linguagem. (BASTO apud RIBEIRO;

MENESES, 2008, p. 92)

A teórica Maria-Benedita Basto chama atenção para o fato de haver duas versões do discurso de abertura da Associação, escrito pelo poeta Marcelino dos Santos. Na versão impressa, notam-se diferenças:

(...) e não se utilizam de conceitos como “superestrutura”, “carácter colectivo”, os escritores como um dos braços armados da revolução, nem se realça a função pedagógica da literatura, a dependência das orientações do

partido, etc. É mais abrangente, e é sobretudo um apelo a um canto patriótico” (ibid, p. 93)

Basto destaca, no fim dos anos 80, polêmica envolvendo Mia Couto, confrontado sobre sua legitimidade para “escrever sobre os camponeses e sobre as tradições africanas porque delas não tem a experiência.” (ibid, p. 93). Grande debate acontece durante vários meses e intelectuais se unem para confirmar Calane da Silva na afirmativa da literatura enquanto representação: “subjacente à polémica em torno da obra de Mia estão, por um lado, critérios que concernem o que se entende por escrita literária” (ibid, p. 94) e a língua portuguesa em processo de descolonização. Junte-se a isso a polêmica sobre a utilização das línguas nacionais com publicações de Bento Sitoe e Almiro Lobo. O debate sobre identidade vai ganhando força, ao mesmo tempo em que o campo intelectual reflete, cada vez com mais intensidade, a questão identitária. Seguem-se debates sobre “a questão de se saber quem deve ser considerado escritor moçambicano.” (ibid, p. 98)

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