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4 AS DUAS SOMBRAS DO RIO

4.3 DOIS EIXOS NARRATIVOS

4.3.1 O EIXO DA HISTÓRIA

Conforme explicitamos anteriormente, a análise se desenvolverá a partir da identificação de dois eixos narrativos, que desenham a estrutura da narrativa a partir de sua interação. O primeiro eixo, em As duas sombras do rio, é o do narrador. É o eixo da História: o narrador tem uma visão macro, da totalidade da história. Neste eixo está a representação da sociedade e cultura moçambicana, em toda sua complexidade, de modo que se constrói um panorama daquele tempo e daquele lugar. Este lugar de observação privilegiado lhe permite acesso total à onisciência das personagens, à memória, que conduz o leitor para outros tempos e lugares de Moçambique, possibilitando a representação do tecido social moçambicano por esse viés mais totalizante, macro, em um nível acima da matéria. É por meio do narrador que memória e conhecimento histórico se compilam, compondo um painel da sociedade da fronteira. O narrador é, portanto, um coletor de memórias, transitando entre os diferentes tempos do passado.

A expressão da referencialidade está toda situada no eixo do narrador. É o seu discurso que detém o conhecimento histórico; é ele quem informa o leitor sobre

nomes e datas. Nesse sentido, consideramos que as referências históricas parecem ter como função a composição da identidade do narrador como alguém que fala de um lugar de fora, de um lugar de erudição e conhecimento histórico, mais do que remeter a lugares reais, propriamente. Ao esvaziar o conteúdo de realidade das referências, ressaltamos, assim, o aspecto literário de sua obra.

Essa é uma discussão recorrente para o autor. Em entrevista concedida a Carmem Tindó Secco (2011), Borges Coelho diz que a verdade da literatura é um

“sentimento de verdade”, e que ele próprio não aspira a confundir as duas verdades (a histórica e a ficcional). Ressalta o pacto ficcional, explicando que optou, inclusive, por usar personagens “reais” de modo inverossímil, de modo a explicitar para o leitor o caráter ficcional do texto: “Recorro, até, à introdução de personagens historicamente muito conhecidas para criar uma certa inverosimilhança, e, assim, ir lembrando ao leitor de que nada do que conto é verdadeiro.” (ibid)

Na mesma entrevista, Borges Coelho destaca o papel fundante de As duas sombras do rio: fazer ficção a partir de lugares. O rio serviu-lhe como imagem física da separação de mundos que é Moçambique. Em geral, portanto, (como no caso de As visitas do Dr. Valdez, e Crónica da rua 513.2) afirma que sua literatura parte de uma base real, biográfica, geográfica, histórica. Perguntado sobre sua diferença com os autores moçambicanos, que também fariam uso da história, responde que, diferentemente deles, e por ser historiador, tenta libertar-se da história, enquanto eles vão ao encontro dela. Mas diz também que não conseguiu ainda se livrar da história. E também da geografia. Reclama mesmo de um “excesso” de história, a esmagar os autores africanos, o que os impede de fazer uma literatura mais do cotidiano. Consideramos, deste modo, a referencialidade como uma maneira de vincular a narrativa a Moçambique sem, contudo, afirmar que é o Moçambique real.

Estruturalmente, o romance forma um complexo tecido de tramas a partir das muitas personagens que vão aparecendo para o leitor. Os primeiros dez capítulos, de maneira geral, mantêm atenção na família de Leónidas, o curandeiro e na descrição da região da vila do Zumbo: o narrador predominantemente descritivo mostra ao leitor vários aspectos sociais, políticos e econômicos do lugar, construindo um quadro bastante rico do local.

A partir dos capítulos oito e nove, outras personagens vão sendo apresentadas, tendo, em geral, um capítulo completo para cada uma: o superintendente Million, “o responsável pelo Parque Nacional do Baixo Zambeze, o

verdadeiro dono da natureza neste extremo sul da Zâmbia” (BORGES COELHO, 2006, p. 50); Mama Mère, amante de Million, congolesa, comerciante que controla o tráfico de marfim na região. O caçador Suzé Mantia, responsável por abater os animais; o guerrilheiro Meia-Chuva, moçambicano que se torna um líder na floresta;

“Dionísio Sigaúke, o administrador do distrito do Zumbo” (ibid, p. 77); “Desditosa Inês, enfermeira do Zumbo” (ibid, p. 93), entre outras. Enquanto apresenta as personagens e narra suas histórias, somos apresentados à própria história dos lugares da região. Tome-se como exemplo o momento em que o narrador nos apresenta a história de Amoda Xavier, morador da região:

Amoda Xavier, por exemplo, que saiu há muito tempo de Tete no barco da carreira para vir ver a maior maravilha da terra, para vir ver como o grande e majestoso Zambeze entra em Moçambique. Chegou, viu e abriu muito a boca e os olhos de espanto – era magnífico o Zambeze, e mais magnífico era ainda quando se tornava moçambicano (ibid, p. 117).

À medida em que vai apresentando várias outras personagens, o narrador vai mostrando o funcionamento da sociedade da região: a estrutura do Estado e seus agentes, o poder paralelo, o exército, as milícias, os guerrilheiros, os caçadores, os negociantes, os trabalhadores letrados, personagens que detêm algum tipo de poder por causa da guerra (e não apesar dela). Assim, as várias personagens vão sendo apresentadas e o narrador nos conta suas histórias, a história do lugar e das pessoas que o construíram, em trechos de memória que, por sua vez, contam, com várias digressões.

Nos capítulos finais do romance, a ação se intensifica com o caos provocado pela guerra, por vezes narrado a partir do ponto de vista das personagens, que são incapazes de percebê-los em sua totalidade. A população local, em pânico, foge até encontrar refúgio, provisório, na mesma ilha de Cacessemo onde Leónidas é encontrado no início do romance, evidenciando o caráter cíclico da narrativa. As personagens economicamente mais vulneráveis são as que irão sofrer os efeitos da guerra de maneira mais intensa, obrigadas a circular pela região até que, sem ter para onde ir, permanecem ilhados.

O romance termina apenas parcialmente com a morte de Leónidas, já que uma das linhas de sustentação da narrativa acaba. A outra linha, a da história, não termina, sendo apenas interrompida pelo narrador que, em tom lírico, faz uma ode

ao rio Zambeze e sua história, ligada ao intenso tráfico de pessoas na região; um outro deslocamento, também forçado e provocado por forças externas à região:

O Zambeze é uma larga e majestosa fita de prata que separa a terra do céu. Uma grande cobra que vem de Angola e corre para o mar, para o fim do mundo. Da boca dessa cobra gerações e gerações de antepassados se despediram desta vida e penetraram nas brumas do além amarrados uns aos outros, e ainda bem, porque desta forma, muito juntos nos porões escuros dos barcos, ficava pouco espaço para os seus medos e terrores. E era muito mal feito esse sistema de levar as pessoas para a morte, para o espaço branco além das brumas, quando elas ainda estavam vivas e na força da idade. Melhor seria se as tivessem logo enterrado ali, convenientemente, seguindo os costumes que os deuses prezam. Ainda, desta maneira, quantos ficaram órfãos à partida por não terem espíritos protectores dispostos a acompanha-los naquela grande viagem sem regresso. (...) (BORGES COELHO, 2006, p. 258)

A narrativa segue uma cronologia fragmentada, alternando o desenvolvimento do conflito de Leónidas ao mesmo tempo em que vai apresentando as personagens da região: os membros da família do pescador, alguns moradores e seus núcleos familiares, a estrutura do estado, os militares e paramilitares, os agentes religiosos. Cabe ao narrador do romance, onisciente, organizar as “histórias entretecidas”, conforme a orelha da segunda edição. São, de fato, muitas, em tempos distintos, apresentadas de maneira não linear, que vão se cruzando, formando espesso tecido narrativo da representação daquele tempo e espaço.

O que se apresenta diante do leitor é um tecido narrativo que se constrói a partir dos vários ângulos de visão dos habitantes da região, visões mediadas pela presença de um narrador observador, que surge como organizador das vozes que emergem daquele tempo, naquele lugar: Moçambique em vários momentos de sua história a partir da chegada dos europeus no continente.

As duas sombras do rio inicia com um índice, que apresenta quarenta e três capítulos, numerados e nomeados. O índice também nos informa a existência de um glossário na página 261, onde o leitor poderá consultar o significado de palavras como “chigubo: Pequeno pote com água para o cerimonial do M’phondoro”

(BORGES COELHO, p. 261). Logo após o índice, o leitor se depara com um mapa.

Sua presença, precedendo a narrativa, é significativa. Instrumento de localização quando não conhecemos um lugar, o mapa está ali para indicar o lugar geográfico da narrativa, o lugar por onde as personagens irão transitar. Uma indicação paratextual que anuncia ao leitor a base real na qual a matéria ficcional se insere,

vinculando aquela narrativa ao território moçambicano atual. Anuncia-se, deste modo, a indissociabilidade entre espaço e ficção. O mapa é ferramenta para o viajante tanto quanto para o etnógrafo. Mas também é para o leitor que se posiciona de fora, servindo tanto ao efeito que o ficcionista deseja alcançar quanto a propósitos editoriais, “explicando” a geografia moçambicana para o leitor que a desconhece.

O mapa é, portanto, objeto indispensável “nesse Moçambique” de Borges Coelho porque é desconhecido não apenas para o público leitor, mas também para o próprio leitor moçambicano.12 O recurso do mapa já havia sido anteriormente utilizado em bandas desenhadas (histórias em quadrinhos), publicadas no início da década de 80.13 O mapa que abre As duas sombras do rio mostra, em um plano maior, a região da fronteira tríplice entre Moçambique, Zâmbia e Zimbábue. Na Zâmbia, o mapa mostra a localização da vila de Feira, cercada de aldeias. No Zimbábue, o mapa mostra a vila de Kanyemba e aldeias. Em Moçambique, o grande destaque que se dá é à Região do Zumbo, localizada a noroeste da cidade de Tete, capital da província de mesmo nome. O mapa então indica vilas, aldeias, ruínas de missão; indica também a ilha fluvial de Cacessemo, local de início e término da narrativa (sugerindo a história cíclica, e não linear).

Em um segundo plano, a região do Zumbo está destacada em relação ao moderno mapa de Moçambique. Nota-se o isolamento geográfico daquela região fronteiriça, em que há mais pontos de contato com Zâmbia e Zimbábue e do que com outras regiões de Moçambique. As duas sombras do rio é um romance de fronteira, do ambiente selvagem distante dos centros urbanos e especialmente distante da capital Maputo. Ali é o local do mito, ali é uma espécie de sertão, de

“wilderness”.

12 Refira-se a entrevista recente de Paulina Chiziane, a primeira mulher a escrever ficção em Moçambique, na qual a autora fala da relação entre literatura e identidade. Disponível em http://goo.gl/FnBkyM. Acesso em 10/07/2016.

13 Possuo apenas uma edição original de Akapwitchi Akaporo Armas e Escravos, datada de 1981. Ali há também um mapa desenhado, que reproduz a região costeira próxima à Ilha de Moçambique, na província de Nampula. O mapa é reproduzido logo após um texto introdutório à história em quadrinhos propriamente dita. “Nos finais do século passado, toda a região costeira do norte de Moçambique foi palco de confrontos violentos que opunham portugueses, cheicados suahíli e chefaturas macua.” (BORGES COELHO, 1981, p. 7) A história da banda desenhada é sobre o tráfico de escravos naquela região, a partir de uma questão ética: em que medida os próprios africanos contribuíram para a escravização de outros africanos?

Em “As duas sombras do rio ou as muitas margens do romance” (apud NOA, 2008, p. 125), o crítico Francisco Noa afirma que a presença do mapa no início do romance condicionou sua leitura: “à partida, pareceu-me apenas um pequeno sinal de que o historiador João Paulo Borges Coelho se estava a intrometer na vida do recém-nascido romancista João Paulo Borges Coelho.” Segundo Noa (ibid, p. 125),

A quantidade de vezes a que regressei a esse mapa durante a minha leitura, levou-me a concluir que mais do que o diálogo entre o historiador e o romancista, mais do que compreender a narrativa em função de um determinismo histórico e geográfico, o traço marcante deste romance é ele remeter-nos à própria ideia de romance.

A partir de Milan Kundera, Noa afirma que “o mérito do romance reside não em narrar factos surpreendentes, mas em fazer o leitor descobrir as potencialidades do mundo em que se encontra e do mundo do próprio romance.” (ibid, p. 125) O paradoxo estaria no romance que, enquanto triunfo da racionalidade, expõe a irracionalidade que acaba por “ditar os destinos de nossas vidas”. Noa afirma que As duas sombras do rio é um romance “inquietadoramente real: a loucura de Leónidas Ntsato, o rio que separa e une destinos, a insanidade e a violência de guerra, as mulheres que carregam o fardo das tragédias pessoas e colectivas” (ibid, p. 125).

Cita o fato (também referido por Nazir Can) da narrativa apresentar, por um lado, características indubitavelmente ficcionais e, por outro, fazer uso de referências a pessoas, lugares e tempos históricos. Tal “jogo”, ao invés de conduzir para um fechamento da interpretação, torna o romance “um mundo de possibilidades ilimitadas, ao mesmo tempo uno e múltiplo, e que permanentemente desequilibra as nossas convicções em relação à própria ficção e em relação à própria realidade.”

(ibid, p. 126) Por fim, Noa afirma:

O que a obra As duas sombras do rio nos oferece não é propriamente a representação ficcionada de um facto histórico, mas sim a dimensão humana, ou desumana, de uma situação histórica. E o tempo, afinal como em qualquer romance, joga aqui um papel fundamental. Trata-se do tempo físico, cronológico, que tem a ver com a ordem dos acontecimentos, trate-se do tempo discursivo (a dinâmica deste romance deve muito aos recuos que são feitos para explicar um facto determinado, isto é para melhor compreendermos o presente da história, através do olhar lançado para trás), trate-se do tempo psicológico interiormente vivido pelas personagens, mais concretamente as mulheres. (ibid, p. 127)

De fato, o romance marca a categoria espaço desde seu título: faz referência a um rio, o Zambeze, rio que tem “duas sombras”. O início do romance, conforme dissemos, marca a apresentação do dilema essencial da narrativa. O mito também nega a conciliação, assim como a história o faz. No mito, a cisão é que permitiria o equilíbrio, a manutenção das margens/identidades enquanto diferenças.

Nazir Can (2014, p. 16) afirma que o romance “é marcado por viagens que, enquanto historiador, o autor fez pelo Zumbo (...) Aprofundado nas suas pesquisas universitárias, o conhecimento do rio Zambeze marca todo o processo de escrita de JPBC”; justifica-o por meio de entrevistas dadas pelo autor. Para Can,

O Zambeze configura-se, em ADSR, como o espaço nuclear e circular da História. (...) O autor, já na sua primeira obra, atualiza uma série de saberes que cumprem uma função fundamentalmente literária, ainda que se situem, neste caso, na promíscua fronteira entre o realismo e um universo outro, de difícil apreensão, como é o caso do universo dos espíritos do Zambeze.

(ibid, p. 16)

O crítico vê a literatura como desestabilização do conhecimento sobre o real, conhecimento esse do qual Borges Coelho parte. Não só porque ela se relaciona com o real, mas pelo aspecto de racionalização do mundo espiritual e entrelaçamento de personalidades históricas, datas reais e nomes da região. Can cita também Rita Chaves, quando esta afirma que as referências ao mundo real dão verossimilhança e densidade à narrativa.

As estratégias da duplicação e da fragmentação do material textual (que informam sobre a ambivalência e os bastidores da guerra) confrontam o traçado desta narrativa. Desde o primeiro romance, portanto, o autor opta pela via de diferenciação da já existente no campo literário moçambicano:

orientando a reflexão para os tipos de violência realizados sobretudo, ainda que não exclusivamente, no período colonial, a sua escrita visa dizer pela forma os espaços físicos do poder. (2014, p. 18)

Assim, o mapa, no romance, anuncia um olhar que vem de fora, no qual tanto narrador como leitores enxergam a matéria ficcional de uma perspectiva distinta daquela da cultura representada. Guarda-se distanciamento da matéria porque o narrador tem um entendimento da situação que não é o entendimento das personagens, mas é um entendimento geográfico, histórico e etnográfico.

Falamos, na seção anterior, sobre a mobilidade presente nas narrativas de Borges Coelho e em especial em As duas sombras do rio. Contudo, toda a

mobilidade encobre a imobilidade do ponto de vista do narrador, que prefere falar a partir de um ponto que acompanha as personagens de perto, mas que ao mesmo tempo mantém o distanciamento de observador. Passa a apresentar os sujeitos que vivem na região; uma complexa estrutura narrativa que vai apresentando linhas narrativas que criarão pontos de contato entre as personagens. As histórias, assim, vão se unindo e afastando à medida em que a ação e a memória se alternam, criando o efeito de movimento contínuo.

Os indivíduos são apresentados em sua relação com o tempo e o espaço;

não há, em As duas sombras do rio, dilemas psicológicos que transcendam aquele cotidiano de desordem e caos. O tempo é de guerra, ela está em todo lugar, e é em função dela ou apesar dela que as personagens se movimentam. A exceção é justamente Leónidas, que compreende o motivo da cisão. Tampouco há qualquer discussão sobre a coletividade do povo moçambicano, sobre classe ou questões econômicas. O ponto de vista é sempre individual – o sujeito frente à história.

Em seu primeiro romance, a originalidade de Borges Coelho diante dos demais ficcionistas moçambicanos está na forma como o narrador focaliza, articula e organiza a vasta matéria que tem à sua disposição. A especificidade do romance está no olhar do narrador, por vezes distanciado, por vezes próximo, mas sempre de uma perspectiva erudita, enciclopédica. Nesse sentido, é possível pensar nesse primeiro romance de Borges Coelho a partir de uma articulação com o olhar do etnógrafo, da experiência adquirida pela observação e que, em momento posterior, articula e descreve o contexto observado.

Pöysä (2014) chama atenção para o fato de que a distância do narrador em relação às personagens se mostra também nos poucos diálogos, o que aumentaria, na visão da crítica, a dependência do leitor da versão do narrador. Porém, não apenas isso, mas o fato também sugeriria uma analogia ao tipo de efeito, de fechamento de sentido ou interpretação única, que um texto acadêmico busca ter.

Pöysä também ressalta o uso de expressões de línguas locais, mesmo na presença de termo equivalente em português. Apesar de pouco usado ao longo do romance, a autora afirma que o recurso chama atenção para a linguagem no romance, “which is written throughout in Portuguese in a manner that doesn’t reveal any contradictions, while the kind of expressions referred to above could be seen as adding a local

colour and tying the novel to the specific context of the location.”14 Essa técnica, segundo a autora, reforçaria a dependência entre leitor e narrador, na medida em que fica evidente seu conhecimento a respeito da cultura local.

Pöysä cita como exemplo desse recurso o trecho que inicia o capítulo três,

“a longa noite de Amina” (BORGES COELHO, 2006, p. 20). Ressalta-se o tom etnográfico dado pelo narrador, quase documental, à cena:

Dispersados os vizinhos, recolhidas as galinhas, as patas e o porco, tudo pareceu aquietar-se. Amina correra apressadamente até a margem do rio, ao buraco onde costumava tirar a água. Afastara a lama, introduzira repetidas vezes a lata menor para com ela encher até o meio a lata grande, e regressara com menos água do que o habitual, correndo sempre, com o pensamento na casa. Nem se quer se dera ao cuidado de colocar uma mão-cheia de folhas a boiar na água da lata para impedir que ela vertesse com o movimento do andar, de modo que metade da já pouca água se ficou pelo caminho. Fizera pouca coisa para comer que a disposição não ajudava. Voltara a aquecer o chá que Leónidas não tomara e estava frio.

Avivara a fogueira e sentara-se perto dela, aconchegando a capulana para enfrentar o frio e a espera da noite. Era um quadro de resignação e de sobre a qual reclama Lourenço do Rosário. Assim, o olhar etnográfico do narrador é usado como ferramenta para apresentar o norte do país, ainda desconhecido, para um público leitor que se encontra prioritariamente no sul, na capital, e no exterior.

Segundo Can (2014, p. 126),

com a sua mirada de louco potencia-se a união das margens sendo que o

com a sua mirada de louco potencia-se a união das margens sendo que o

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