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4 AS DUAS SOMBRAS DO RIO

4.1 LITERATURA E ETNOGRAFIA

Em “Discurso etnográfico e representação na ficção africana de língua portuguesa: notas sobre a recepção crítica de Mia Couto e o projeto literário de Ruy Duarte de Carvalho” (2009), Anita Martins de Moraes discute entre o uso de materiais etnográficos e a representação nas literaturas africanas de língua portuguesa. Segundo ela, a aproximação dessas literaturas com a antropologia acontece desde as primeiras manifestações literárias, “o projeto literário consistindo na elaboração de um retrato dos costumes e das cosmovisões das sociedades africanas para recepção estrangeira.” (ibid, p. 178). A autora inicia seu artigo citando Vargas Llosa, em Cartas a um jovem escritor, na qual Llosa menciona a técnica do

“dado escondido” como estratégia de construção ficcional:

(...) dizer tudo é da ordem da impossibilidade, o leitor deve lidar com os não ditos para continuar sua leitura. Podemos pensar que muitos dos dados implícitos do texto são informações desnecessárias porque óbvias dentro de certas “coordenadas culturais” partilhadas entre autor e leitor.

Por outro ângulo, devemos da mesma forma considerar o que afirma Vincent Jouve (2002, p. 22): “toda leitura interage com a cultura e os esquemas dominantes de um meio e de uma época”. Ainda,

(...) o texto apresenta-se para o leitor fora de sua situação de origem. Autor e leitor não têm espaço comum de referência. Portanto, é fundamentando-se na estrutura do texto, isto é, no jogo de suas relações internas, que o leitor vai reconstruir o contexto necessário à compreensão da obra. (ibid, p.

23)

No caso das literaturas africanas, tais questões adquirem outra dimensão, na medida em que nos confrontamos com a heterogeneidade do público leitor que a consome, que é principalmente um público não africano. Tome-se o caso moçambicano e o perfil linguístico descrito pelo linguista Armando Jorge Lopes, já anteriormente citado. Em um contexto social em que a língua portuguesa é falada e acessada por uma minoria, a pobreza estrutural limita e inibe não somente o acesso, mas a produção e circulação da palavra escrita em um ambiente doméstico. Assim,

(...) o texto apresenta-se para o leitor fora de sua situação de origem. Autor e leitor não têm espaço comum de referência. Portanto, é fundamentando-se na estrutura do texto, isto é, no jogo de suas relações internas, que o leitor vai reconstruir o contexto necessário à compreensão da obra.

(JOUVE, 2002, p. 23)

Retornando ao texto de Anita Moraes, a autora evoca ainda Antonio Candido, em “A literatura e a vida social”, no qual o autor reflete sobre como fatores externos ao texto podem ser relevantes para sua compreensão: chama-se atenção para a situação concreta de produção e recepção, entendendo a literatura como forma de comunicação, cujo sentido dependeria de seu “uso”. Ou seja, seu contexto pragmático. Segundo Jouve (2002, p. 24), “recebido fora de seu contexto de origem, o livro se abre para uma pluralidade de interpretações: cada leitor novo traz consigo sua experiência, sua cultura e os valores de sua época.”

Moraes (2009, p. 176), por conseguinte, assinala aquilo que chama de

“caráter lacunar de todo texto ficcional” e o que esta questão representaria especificamente no caso das literaturas africanas:

Podemos, de início, perguntar se o recurso a materiais etnográficos não seria uma maneira de se recolherem informações úteis para que o leitor estrangeiro possa dar conta de algumas das “coordenadas culturais”

subentendidas no texto. Ao estudioso de literaturas africanas caberia, assim, a tarefa de obter e fornecer informações relevantes para a compreensão de certas práticas culturais e concepções de mundo subentendidas na ficção, auxiliando o leitor estrangeiro a se localizar num mundo que lhe é estranho.

Moraes menciona abordagens que tentam compreender a ficção de Mia Couto pelas alusões presentes na obra do autor a práticas culturais tradicionais africanas. O objetivo do pesquisador seria “esclarecer” quais costumes e formas de pensamento tradicionais estão representados na ficção de Mia Couto e que

passariam despercebidos para o leitor estrangeiro. A autora afirma que esse objetivo teria “pretensões utópicas”: a antropologia teria como papel uma “expectativa de referencialidade estabilizadora dos sentidos do texto”, ou seja, a expectativa de se encontrar uma realidade concreta revelada pelo texto. A expectativa do leitor em relação à obra africana empurraria a literatura para um lugar próximo da etnografia (nas palavras da autora, “deslizar essa ficção para a etnografia”), já no âmbito da produção literária. Pensamos, nesse sentido, na constante presença de obras que se querem painéis ou que retratam costumes, dependendo do ponto onde se encontra o leitor.

Por um lado, há o problema da identidade nacional e suas representações na literatura, cumprindo um propósito de reconhecimento da história, da geografia e das “estórias” de um país que é desconhecido para sua própria população. A questão da unidade nacional em Moçambique é problematizada por Lourenço do Rosário (2007, p. 188), intelectual moçambicano:

Ao longo da minha vida activa e intelectual, enquanto cidadão e académico, sempre tive grandes dificuldades em situar-me sobre esta questão de assimetrias Sul e Norte, relativamente ao nosso País. Há uma espécie de caixa russa (aquelas caixas de onde sai sempre uma outra caixa mais pequena, num nunca acabar) que nos convida, fatalmente, a adiar o aprofundamento da questão ou a desviar-nos para os níveis mais superficiais do problema, às vezes com abordagens bem equivocadas.

Em “Assimetrias – mito e realidade”, Rosário discorre sobre as múltiplas assimetrias que se configuram na sua cultura. O desequilíbrio começaria pelas fronteiras:

(...) somos um País de fronteiras difíceis, para além de artificiais, como aliás o são as dos restantes países do continente. A particularidade das nossas fronteiras reside na sua falta de lógica, em termos geográficos. O que por si só lança as premissas de uma “natural” dificuldade de gestão administrativa, política, econômica e social. (ibid, p. 188)

A assimetria territorial seria o ponto de partida de uma série de outras que

“são visíveis, podem ser determinadas, quer do ponto de vista das estruturas, quer do ponto de vista das condições de vida, quer mesmo do ponto de vista dos recursos humanos.” (ibid, p. 188) A localização da capital, no extremo sul de um país cujo território se estende longitudinalmente, também dificultaria o estabelecimento de relações entre um sul mais moderno e um norte arcaico. Ainda, há de se

considerar as “assimetrias provenientes das vizinhanças” e, por fim, a consciência da territorialidade, “multiétnica, multicultural e multilinguística”:

A nossa moçambicanidade vale o que vale a consciência da territorialidade.

E o nosso território teve, geográfica e historicamente, factores diversos, de natureza desagregadora, que não estão sendo devidamente equacionados na discussão do problema. É por isso que, partindo de uma real e evidente situação de assimetria, se criaram diversos mitos, uns sonoramente mais proclamados e outros sussurrados em condições de cumplicidade quase que clandestina e conspirativa. (ibid, p. 189)

Rosário chama as assimetrias de mitos. Acredita-se, no sul, que o norte não é capaz de equacionar quaisquer problemas relativos à desigualdade enquanto que no norte acredita-se que o sul usurpou ilegitimamente os instrumentos que permitiriam a correcção das assimetrias herdadas da administração colonial” (ibid, p.

188). Os dois mitos, juntos, impedem quaisquer possibilidades de pensar a nação como identidade enquanto “o elemento agregador da consciência nacionalista, cidadania e moçambicanidade, resumido no sintagma “do Rovuma ao Maputo”. (ibid, p. 188) O autor finaliza o texto afirmando que superar as assimetrias é uma questão de patriotismo: “até quando é que a realidade continuará a alimentar o mito, neste caso das assimetrias?” (ibid, p. 190) O problema é a fratura interna em Moçambique que impede o desenvolvimento de uma consciência de nacionalidade: papel que a literatura poderia vir a desempenhar.

A questão interna, portanto, representa um primeiro problema. Entretanto, há também a relação que a produção literária africana estabelece com seu público externo, a partir da abertura de um mercado consumidor de cultura periférica que se abre a partir dos anos 80 no ocidente. Conforme o já mencionado “Crítica na zona de contato: nação e comunidade fora de foco”, de Mary Louise Pratt (1999, p. 9),

A palavra "world" sinalizava uma tentativa de curar as feridas do euro-imperialismo, dentro de um esforço frequentemente ingênuo para dissolver o etnocentrismo branco e quebrar a hegemonia das normas culturais do primeiro mundo (euro-americanas). O rótulo traz um sabor pan-humanista utópico no domínio da cultura; conota uma integração para além do movimento das forças geopolíticas. Tais forças continuaram a receber o rótulo “internacional”, como nos programas de estudos internacionais que começaram a pipocar nas universidades americanas nos anos 80 (que excluem as artes). De fato parece ter surgido, pelo menos nos Estados Unidos, uma divisão do trabalho entre as esferas "internacionais" (leia-se conflituosas) de interação política e econômica e as esferas artística e entendimento intercultural reunidas sob o rótulo de “world”.

Nesse sentido, e indo novamente de encontro ao texto de Anita Moraes (2009, p. 178), torna-se importante questionar em que medida o romance aparece como forma literária que tenha como objetivo

(...) a função de dar a conhecer o “indígena” (seus costumes, sua visão de mundo)? Haveria uma associação mais imediata com a antropologia e a etnografia na medida em que a estas disciplinas se atribuiu, durante bastante tempo, a tarefa de dar a conhecer ao mundo ocidental (urbano) sociedades tidas como “primitivas” porque “iletradas”, categorias em que as sociedades tradicionais africanas se viram incluídas? Poderíamos ampliar esta hipótese para outras literaturas africanas, como a moçambicana?

Havendo estas possibilidades, importa ainda indagar: se tanto no âmbito das expectativas de certos escritores africanos como da crítica especializada pode ser notada uma disposição a aproximar discurso ficcional e etnográfico, como, concretamente, os escritores têm produzido esta aproximação na composição de seus textos e como os estudiosos têm se valido de materiais etnográficos para a elaboração de suas interpretações? Esta aproximação se restringiria a informações sobre os costumes e a visão de mundo de certas sociedades tradicionais que se fazem referidas na literatura e decodificadas pelos estudiosos, produzindo-se um efeito naturalista, ou afetaria as próprias estratégias de composição?

Ou ainda: inscreve-se completamente no paradigma naturalista ou o modifica?

Para Moraes, o imaginário cultural de Moçambique seria formado por uma acumulação de registros de base etnográfica (registros de textos orais africanos traduzidos para as línguas europeias). Ou seja, sempre uma tradução, na qual a etnografia seria um alicerce “em que se inscreve parte das literaturas africanas e sua recepção crítica” (2009, p. 183), uma textualidade subjacente à ficção que incorpora certos procedimentos do texto etnográfico. Deste modo, as literaturas de autoria africana

(...) tendem a mobilizar no leitor estas representações naturalizadas, suas lacunas sendo preenchidas a partir delas, de maneira a reforçá-las ou as colocar em suspenso (efeito que depende tanto do texto – de seu potencial de sentido – como da leitura). A relação entre o texto ficcional e realidade seria antes com o que o leitor entende por realidade, assim, com as representações sociais naturalizadas de que dispõe, do que com determinada realidade social objetiva. O “real” seria, antes, intersubjetivo.

Não se trata de negar que uma obra literária possa trazer elementos para o estudo de dinâmicas sociais, como faz Antonio Candido, entre outros momentos, em “A dialética da malandragem” (O discurso e a cidade), mas de entender que uma leitura dessa natureza é possível porque o crítico seleciona elementos do texto propondo uma estrutura e estabelece, então, certas analogias entre modelos sociológicos e a estrutura que propõe como constitutiva da obra. Esta não seria reflexo de determinada estrutura social, mas consistiria numa construção do crítico a partir de uma construção ficcional que pode resultar, como os modelos sociológicos pretendem, em

recursos para a compreensão de aspectos do real (este já modelado em termos de “realidade social”). (MORAES, 2009, p. 188)

Rita Chaves (apud RIBEIRO; MENESES, 2008, p. 189), afirma sobre As duas sombras do rio, de João Paulo Borges Coelho:

Consciente de que escreve para um leitor que com certeza partilharia a sensação do novo, o narrador empenha-se em descrever minuciosamente as ações, detalhando características dos lugares e perscrutando traços, procedimentos, sensações que imagina para seus personagens. Como se não fizesse sentido também a pressa na incursão por um território onde o ritmo da vida segue outros parâmetros. Essa ênfase nas minúcias, manifesta no texto inclusive pelo uso constante de parênteses, reflete certamente o desejo de fazer da literatura um espaço do conhecimento e interpretação da realidade com que se depara.

Chaves (ibid, p. 188) ainda afirma que o primeiro romance de Borges Coelho enfrenta os limites da territorialidade literária do país, “investe na ocupação de outras regiões, incorporando em seu imaginário espaços que o país independente ainda conhece pouco.” A autora chama atenção para o aspecto de ampliação de territorialidade literária moçambicana presente nesse primeiro romance de Borges Coelho (questão também ressaltada por Pöysä, 2014, p. 221).

Um paralelo pode ser traçado em relação à literatura brasileira. Em Formação da literatura brasileira (2007), Antonio Candido afirma que a literatura brasileira oitocentista tomou para si a tarefa de conhecer (e tornar conhecido) o Brasil. São brasileiros que narram o Brasil para outros brasileiros. É no romantismo que se amplia “largamente a visão da terra e do homem brasileiro” (p. 432) Ainda segundo Candido,

Quanto à matéria, o romance brasileiro nasceu regionalista e de costumes;

ou melhor, tendeu desde cedo para a descrição dos tipos humanos e formas de vida social nas cidades e nos campos. O romance histórico se enquadrou aqui nesta mesma orientação (...) Assim, pois, três graus de matéria romanesca, determinados pelo espaço em que se desenvolve a narrativa: cidade, campo, selva; ou, por outra, vida urbana, vida rural, vida primitiva. (...) E é esse caráter de exploração e levantamento – não apenas em sua obra, mas nas dos outros – que dá à ficção romântica importância capital como tomada de consciência da realidade brasileira no plano da arte: verdadeira consecução do ideal de Nacionalismo literário (p. 433) (...)

por isso mesmo, o nosso romance tem fome de espaço e uma ânsia topográfica de apalpar todo o país. Talvez o seu legado consista menos em tipos, personagens e enredo do que em certas regiões tornadas literárias, a sequência narrativa inserindo-se no ambiente, quase se escravizando a ele.

Assim, o que vai se formando e permanecendo na imaginação do leitor é um Brasil colorido e multiforme, que a criação artística sobrepõe à realidade geográfica e social. Esta vocação ecológica se manifestou por uma

conquista progressiva de território. (...) Literatura extensiva, como se vê, esgotando regiões literárias e deixando pouca terra para os sucessores, num romance descritivo e de costumes como é o nosso. (ibid, p. 433)

Por fim, Candido afirma:

Em país caracterizado por zonas tão separadas, de formação histórica diversa, tal romance, valendo por uma tomada de consciência, no plano literário, do espaço geográfico e social, é ao mesmo tempo documento eloquente da rarefação na densidade espiritual. (...) No Brasil, a riqueza e variedade foram buscadas pelo deslocamento da imaginação no espaço, procurando uma espécie de exotismo que estimula a observação do escritor e a curiosidade do leitor.” (ibid, p. 434)

Os trechos de Formação da literatura brasileira a respeito do romantismo destacam os condicionantes do literário no período: caráter de exploração e levantamento, regiões tornadas literárias pela ânsia topográfica, a representação dos tipos, a fome do espaço, a revelação da formação diversa pela observação do escritor. Um trabalho de mediação, portanto, tal como é a tarefa etnográfica.

Recorrer à análise de Candido sobre o romantismo brasileiro não significa apontar um quadro de completa semelhança. Significa dizer que este romance estabelece relação com a ideia da fundação do romance nacional moçambicano, oferecendo narrativas que vão preenchendo as fissuras do imaginário social sobre a nação. A literatura de Borges Coelho, e todo seu projeto intelectual, de maneira geral, assemelha-se àquilo que Candido chama de literatura extensiva, de ocupação e esgotamento das regiões por meio da representação.

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