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3 A FICÇÃO DE JOÃO PAULO BORGES COELHO

3.1 OS PRÓLOGOS DE SETENTRIÃO E MERIDIÃO

O mar Índico molha, um a um, os cerca de dois mil e quinhentos quilómetros da costa de Moçambique – uma extensão apreciável. Maior ainda se considerarmos as ilhas que há espalhadas ao longo dessa costa, inúmeras. E muito, muito maior se tivermos em conta as histórias que esse simples facto tem alimentado no imaginário do presente e ao longo do tanto tempo que passou. Uma água mansa que também sabe enfurecer-se. Azul, se lhe bate o sol, mas tantas vezes parda, tingida por tudo o que essa costa deixa que se escape pelas suas líquidas veias – terras e ramagens, memórias e afogados, enredos e procuras – que ali se abrem para fertilizar.

São estes os Índicos Indícios, e arrumei-os em dois volumes, seguindo um critério que é apenas geográfico. Esse primeiro, Setentrião, deambula pela costa e pelas ilhas do longínquo norte moçambicano. Seguir-se-á um Meridião, com estórias da baía que já foi chamada Delagoa. (BORGES COELHO, 2005, p. 9)

O trecho transcrito pertence ao texto que abre a coletânea Índicos Indícios, formada por dois volumes (divididos em dois, segundo o autor, por critérios editorais): Setentrião, o volume I, e Meridião, o volume II, nomes que já indicam ao leitor uma classificação que tem como base um critério geográfico. Na capa de ambos os volumes, anuncia-se seu conteúdo: “estórias”, de um norte (setentrião) e de um sul (meridião), ligadas ao Oceano Índico; histórias que têm como cenário a

“fronteira” entre a costa e o mar.

Antes de iniciarmos uma análise mais pormenorizada de “Implicações de um naufrágio”, narrativa que abre Meridião, desejamos considerar algumas questões que surgem a partir da leitura dos textos que abrem tanto Setentrião como Meridião, assinados pelo autor, João Paulo Borges Coelho. Convencionamos chamá-los de prólogos, apesar de não estarem identificados como tal. Tanto Setentrião como Meridião seguem a mesma formatação editorial: a palavra “estórias” aparece na capa de ambos, indicando que são coletâneas de narrativas curtas; há “índice” e

“glossário” também em ambos os volumes.

Atribuímos importância aos elementos paratextuais porque eles são parte do livro, do “produto final” do ourives – evocando, mais uma vez, a analogia proposta por Borges Coelho. Moçambique, sua gente e histórias são a matéria. A partir daí, dessa base real, é que emerge o Moçambique ficcional pela mão do artista, que dá tratamento à matéria: confere-lhe estrutura. Ali está a figura do narrador da ficção de Borges Coelho: é ele quem organiza a matéria, é a partir de seu ponto de vista que a enxergamos. O que está ali, portanto, é o produto de sua visão.

Tomamos, aqui, o paratexto como ponto de partida para interpretação das narrativas de João Paulo Borges Coelho. Sobre a questão, lembremos de Gerard Genette em Paratexts – thresholds of interpretation (1997), quando este afirma que todo texto literário vem acompanhado de outros elementos verbais, como o nome do autor, o título, um prefácio, ilustrações, etc. Esses elementos acompanhantes, que apresentam o texto para os leitores, são chamados por Genette de “paratexto”. É o paratexto que permite que um texto se torne um livro, que esse livro possa ser oferecido para leitores (público). O paratexto é uma zona indefinida, situada entre o

“dentro” e o “fora” do texto; um espaço privilegiado de pragmática e estratégia de leitura.

Os breves textos que chamamos de “prólogos” aparecem para o leitor logo após o índice. São textos de abertura de cada um dos volumes de contos, assinados, conforme dissemos, pelo próprio autor. O prólogo de Setentrião inicia da seguinte maneira. O autor trata de esclarecer para o leitor definitivamente a localização geográfica das “estórias” que compõem a coletânea. Destaca-se, em primeiro lugar, o caráter informativo do trecho. O autor informa ao leitor, objetivamente, o lugar ao qual as “estórias” estão vinculadas, que é Moçambique.

Melhor dizendo: o leitor que optar por ler esse prólogo na ordem em que se apresenta, antes das narrativas ficcionais, saberá, pelas palavras do autor, que as

“estórias” se passam naquele país. Borges Coelho não apenas informa este dado ao seu leitor; ele também fornece ao leitor outras informações sobre Moçambique: sua geografia política (a extensão da costa do território), física (inúmeras ilhas) e sobre as “estórias” que permeiam o imaginário local. Há também referência às águas, mansas mas por vezes “enfurecidas”. As águas do Índico são “tingidas”, ou seja, marcadas por elementos físicos (“terras e ramagens”) e humanos (“memórias e afogados, enredos e procuras”) daquele pedaço do continente africano, como se fossem fertilizantes. Estabelece-se um tipo de interação que inclui o humano como

“elemento natural”, orgânico, daquela geografia. A costa de Moçambique, a terra onde as pessoas habitam, é como um organismo que possui “líquidas veias”, os rios que percorrem o território moçambicano, vindos do interior e que desaguam no oceano.

Índicos Indícios é, nas palavras do autor, uma coletânea de histórias divididas por um critério que é geográfico: o norte e o sul de um país localizado na costa oriental da África, cuja costa é banhada pelo Índico. A referência ao norte do país,

“longínquo”, indica ao leitor a distância que o próprio narrador estabelece entre sua posição e a daquela parte do país: se o norte é remoto, distante, significa que o sul (mais urbanizado) está próximo à sua posição?

Os parágrafos iniciais desse prólogo são essencialmente explicativos, justificando para o leitor as escolhas do autor e situando as narrativas em um lugar específico: são narrativas de Moçambique, daquela terra, daquela geografia, daquela porção do oceano que banha a costa moçambicana. Os parágrafos que se seguem a essa exposição autoral também têm caráter explicativo, mas dessa vez as palavras do autor se voltam para a ficção, enumerando as narrativas componentes do volume e, curiosamente, oferecendo ao leitor (novamente) explicações sobre as narrativas, sobre seu contexto e seu possível significado. O autor vincula dois contos, “O pano encantado” e “As cores do nosso sangue”, a trabalhos acadêmicos que teriam tido alguma influência na escrita das narrativas: em relação a “O pano encantado” (analisado mais detalhadamente em nossa conclusão), o autor afirma que “alguns textos inéditos de Liazzat Bonate ajudaram-me a percorrer esse labirinto” (ibid, p. 10). Sobre “As cores do nosso sangue”, diz que recebeu

(...) a preciosa ajuda de um texto de Nina Bowen (“Os Chupa-Sangue na Província da Zambézia”, in Estudos Moçambicanos, n° 19, Maputo, 2001), diz respeito às rupturas e desafios que a modernidade traz, e àquilo que inventamos para lhes responder. (ibid, p. 10)

É interessante observar que o autor não apenas cita o texto que “lhe ajudou”:

ele dá sua indicação bibliográfica e informa ao leitor sobre o que o texto acadêmico trata e aponta para o leitor a vinculação entre a pesquisa academicamente orientada e a ficção. Oferece-se ao leitor a possibilidade objetiva de acesso a esse texto, ao mesmo tempo em que o próprio autor anuncia qual sua “intenção”: falar sobre as

“rupturas e desafios que a modernidade traz”.

Segundo Genette (1997), deve-se levar em consideração a força ilocutória do paratexto, que pode tanto comunicar informação objetiva (nome do autor, data da publicação) ou pode informar uma intenção ou uma interpretação pelo autor/editor, trazendo à tona o aspecto funcional do paratexto. Deseja-se comunicar uma mensagem ao leitor que, contudo, não se faz essencial ao texto literário justamente pela sua posição de subordinação. Entretanto, é produtivo pensar em que medida a presença do prólogo aponta caminhos preferenciais ao bosque ficcional,

parafraseando o título do livro de Umberto Eco, Seis passeios pelos bosques da ficção (1994).

Por um lado, pode-se pensar no prólogo como elemento de diálogo direto entre autor e público leitor: na expressão da autoridade do produtor do discurso, um leitor estrangeiro se vê apresentado à história de um desconhecido país da costa oriental da África. Remetamo-nos, mais uma vez, à entrevista concedida por Borges Coelho a Rita Chaves (2011). Chaves o compara a outros narradores de Moçambique e Angola: teriam todos uma postura de excesso narrativo, com detalhamentos explicativos, consequência de os livros serem editados para público no exterior. Borges Coelho concorda, mas não se fixa numa só resposta. Pode ser, segundo ele, herança da tradição oral africana, com tempo para o contar; pode ser fragilidade do sistema literário, o que exigiria mais do narrador; pode ser em virtude desse leitor virtual não-africano. No entanto, Borges Coelho afirma achar impossível definir o leitor, tanto o de dentro de Moçambique como o de fora. Assim, recusa as opções que vão do simplismo ao esnobismo literários, pois afirma que o escritor não sabe, a rigor, para quem escreve. Diz, ainda, pensar pouco no leitor, vendo a escrita no seu aspecto de solidão criativa, “um encenado solilóquio”. Mas adverte para um outro possível motivo, de ordem moral: “no mundo de hoje”, ser decente (com a escrita, com o leitor, com os valores) seria um empenho válido para a escrita. É interessante observar que ao mesmo tempo em que fala em solilóquio, Borges Coelho parece, muitas vezes, saturar o leitor com informações, dados, detalhes, como se desejasse controlar a recepção do texto ficcional com o mesmo rigor que se deve aplicar ao texto acadêmico.

Cabe aqui ressaltar, deste modo, os elementos que se destacam no prólogo de Setentrião: a vinculação das narrativas a Moçambique estabelece, por consequência, diálogo não apenas com a geografia mas também com a história do país e seu povo. Mais do que isso, o autor vincula a ficção à pesquisa acadêmica, ao nomear dois textos historiográficos como alicerces da ficção. Há, portanto, inequivocamente, uma base de realidade sobre a qual repousa a literatura.

O autor repete o mesmo tipo de procedimento, de apresentação e explicação, no prólogo de Meridião:

Este segundo volume dos Índicos Indícios conclui uma viagem de recolha de histórias ateadas por lugares precisos, desta feita no Meridião moçambicano. (BORGES COELHO, 2005, p. 9)

Indica-se para o leitor a vinculação existente entre os dois volumes: são frutos de um trabalho de coleta de histórias da costa de Moçambique. As narrativas são produto de “uma viagem de recolha de histórias ateadas por lugares precisos”, remetendo à ideia de etnografia: o indivíduo que se desloca ao “lugar da cultura” e a registra, traduz, torna acessível. O autor continua:

“Implicações de um naufrágio”, episódio burlesco ocorrido no extremo Sul, fala das possibilidades que o acaso abre; o acaso e o enigma do desejo.

(...)

Finalmente, “Balada da Xefina” é sobre uma ilha que, apesar de nunca ter deixado de estar em frente aos nossos olhos, soube sempre manter o recato; sobre como o tempo é linha frágil e como fortes são os contextos que nos prendem. Um documento anónimo da primeira metade do século XIX (“A Guerra dos Reis Vátuas”, Arquivo Histórico de Moçambique, Maputo, 1986) serviu-me de contraponto neste percurso. (ibid, p. 9)

Tal como no prólogo de Setentrião, o autor indica textualmente ao leitor que as narrativas de Meridião estabelecem relação de intertextualidade não apenas com

“as histórias ateadas por lugares precisos” (em uma perspectiva folclorizante), mas também com a pesquisa historiográfica e o próprio documento do Arquivo Histórico de Moçambique. O autor emerge, assim, como organizador e mediador da matéria bruta que é a realidade: o ourives que confere ficcionalidade pelo tratamento estético, transformando textos esparsos em livro, o produto final. O autor ressalta o documento e o trabalho de precisão sobre a pluralidade, mas contrapõe à “recolha”

o adjetivo “ateadas”, indicando que a imprecisão poética da evocação (e por consequência, da narrativa) ronda a precisão dos lugares, desvencilhando-se parcialmente da obrigação da objetividade histórica em nome da exaltação da ficção.

Indica-se uma opção que se quer compor pelos dois polos, numa escrita simultaneamente histórica e literária.

O autor, nestes dois prólogos, dedica a cada um dos contos um parágrafo de apresentação, que não fazem referência ao enredo dos contos propriamente, mas sim ao seu sentido. Sobre o conto “Verdadeiros propósitos”, Borges Coelho diz: “é uma pequena história sobre a negociação e a vocação, e talvez sobre o poder do amor.” (BORGES COELHO, 2005, p. 10) Há aqui uma intromissão direta do autor, que interpreta o conto para o leitor antes mesmo que este possa vir a lê-lo, considerando que esse prólogo precede as narrativas. Assim, o leitor que optar em ler o prólogo antes de ler a narrativa, seguindo a sequência em que os textos se

apresentam, se deparará com a voz do próprio autor que lhe indicará, de antemão, uma possível interpretação do conto.

Em Setentrião e Meridião, a presença do autor está demarcada pela assinatura que aparece ao final destes pequenos prólogos. Ali, ele se dirige ao leitor e fornece a ele um modo de leitura para seus textos, indicando o que o leitor deve procurar na obra. As narrativas, nesse sentido, emergem como produto do encontro de duas tradições: a africana, fornecedora de matéria, e a europeia, no tratamento recebido pela matéria. Deste modo, há as histórias coletadas ao “rés-do-chão”, a

“matéria bruta” em forma de texto oral que se transforma em texto escrito pela mão do autor, já que sem seu trabalho de “recolha”, permaneceriam “ateadas a lugares precisos”, invisíveis e desconhecidas – procedimento que remete, também, ao trabalho do etnógrafo. Há, também, a pesquisa histórica: os documentos arquivados, de acesso geralmente restrito ao grande público mas que são fonte e objeto de estudo dos historiadores; os trabalhos dos historiadores. E, por fim, o tratamento literário que ambas as matérias (brutas) recebem pela escrita do ficcionista.

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