• Nenhum resultado encontrado

A literatura é uma saúde

No documento Rafael Domingues Adaime.pdf (páginas 66-76)

“E assi m, ce r ta manhã, de ixan do me u gr o sso manuscr i to inco m ple to so br e a e scr ivani nha e do brando pe la úl tima ve z me us co nfo r táve is le nçó is case ir o s, par ti co m me u saco de vi age m no qual po ucas co isas fu ndame nt ais foram e nfiadas , e caí fo ra e m dir e ção ao o ce ano Pacífico co m cin que nta dó lar e s no bo lso6 1”.

Jack Ke r o uac – O n T he Road

A lite r atur a te m se us e xper ime ntado r e s. Ele s escr e ve m, co mo dir ia De le uze , na e xtr e midade de se u pró pr io sabe r , na po nta

e xtre ma que se par a no sso sabe r de no ssa igno r ância e que

tr ansfo r ma um no o utr o6 2; e le s e scre ve m se us pró pr io s

mo vime nto s, tr ansfo r mam o s aco nte cime nto s de suas vidas e m maté r ia e scr ita, se mpr e na bor da de uma quase insupo r táve l suste ntabi lida de da inte gr idade física; situação que os faz pro duz ir par a mante r e m- se vivo s e ainda acr e ditando no mundo –

a lite r atur a é uma saúde6 3. Algun s de sse s e scr ito re s vive m numa situação muito par e cida, e m co ndiçõ e s pre cár ias, r e sistindo à pre ssão de um mundo co m o qual não quer e m co mpactuar , um mundo que não lhe s faz se ntido .

Par a muito s Se nho r e s, e sse s ho me ns po der iam pare ce r -se co m mer o s vagabun do s, e o o lhar fr io so br e e le s, se us tr aje s, suas ro upas, o s far ia co ncluir r apidame nte que não passam de

61

On the road. Jack Kerouac. ed. L&PM. p. 29. 2004. 1ª ed. Norte americana: 1955. 62

Gilles Deleuze, Diferença e repetição, ed. Graal, 2ª ed., p. 18

pre guiço so s que não go stam de tr abalhar . Em sua estr e ita per spe ctiva, tais Se nho r e s te r iam to da raz ão , a não ser pe lo e quívo co do e nquadr ame nto . Esse s ho me ns que le vam suas escr itas par a tão lo nge , que subve r te m a do utr ina do s có digo s, tudo que e le s mais de se jam é tr abalhar e ssa co nstante libe r ação do s fluxo s que cor re m pe lo s se us cor po s e são de spe jado s e m páginas cr iadas na suce ssão de dias ininte r r upto s , alinhavadas pe las cane tas, lápis, máquinas de e scr e ver , se m ne m me smo ter e m te mpo par a ir a uma po ssíve l ge lade ir a vaz ia de alime nto s. Or a, me us car o s Se nho r e s, tudo que e sse s ho me ns mais que r e m na vida é tr abalhar , só que e m suas pró pr ias o br as, que são o pr incipal alime nto do qual se nte m fo me . Par a e le s, nada po de r ia se r mais tr iste que vive r uma vida se par ada do s se us pr ó pr io s ge sto s. De ce r to mo do , e le s são vagabun do s sim, e o que mais que re m é faz er co m que to do s o s có digo s vagabunde ie m e se e mbar alhe m atr avé s de se us cor po s de scar nado s.

Eu me smo não saber ia co mo chamá- lo s: be ats, mar ginais, vagabundo s e tc... Eu po de r ia citar alguns de sse s no me s: J.D. Salinge r , Jo hn Fante , Char le s B uko wski, He nr y Mille r , Jack Ker o uac, Will iam B urr o ughs, Ale n G insbe r g, Jo sé Agr ippino , Ro be r to Piva. Esse s que fiz er am da lite r atur a uma e scr ita de cada e nco ntr o inte nsivo vivido , que e scr e ver am e m no me pr ó pr io , e e m no me de muito s, que cr iar am campo s lite r ár io s auto bio gr áfico s muito dife r e nte s de qualque r tipo de diár io re lató r io de fato s co tidiano s , que co lo car am a pr ó pr ia vida à dispo sição do s e nco ntr o s co m tudo que lhe s atr ave ssava, de tudo aquilo que lhe s pr o vo cavam mo vime nto s, se nsaçõ e s, o lhare s singular e s no mundo e atr avé s do mundo , das maté r ias visíve is e ó bvias o per adas pe lo s gr ande s co njunto s de co ntr o le , co mo das maté r ias invisíve i s, pe r ce bidas ape nas co m uma mo dificação do cor po , uma que br a da máquina o r ganismo , pe la inve nção de um no vo mo do de e star vivo .

“Esto u vive ndo na Villa Bo r ghe se . Não há um re squício de suje ir a e m par te alguma, ne nhuma cade ir a fo r a do lugar . Estamo s co mple tame nte soz inho s aqui e e stamo s mo r to s6 4.” Assim co me ça

Tr ó pico de Cânce r , de He nr y Mille r ;

“Não te nho dinhe ir o , ne m r e cur so s, ne m e sper anças. So u o mais fe liz do s ho me ns vivo s. Há um ano , há se is me se s, e u pe nsava se r um ar tista. Não pe nso mais nisso . Eu so u. T udo quanto e ra lite r atur a se de spre nde u de mim. Não há mais livr o s a escr e ve r , gr aças a De us. E isto e ntão? Isto não é um livr o . Isto é injúr ia, calúnia, difamação de car áte r . Isto não é um livr o no se ntido co mum da palavr a. Não , isto é um pro lo ngado insul to , uma cuspar ada na car a da Ar te , um po ntapé no tr ase ir o de De us, do Ho me m, do De stino , do Te mpo , do Amo r , da Be le z a... e do que mais quise r e m. Vo u cantar par a vo cê , um po uco de safinado talve z , mas vo u cantar . Cantar e i e nquanto vo cê co axa, dançar e i so bre se u cadáve r sujo ...6 5

Walte r Fr anco , músico paulista no , cr iado r de uma o br a e xce pcio nal na dé cada de se te nta, te m uma música co m o ito se gundo s de dur ação co m a se guinte fr ase : “Ape sar de tudo , muito le ve6 6”. Em uma e ntr e vista re ce nte , e le co nta que cr io u a

música de po is de assistir a implo são de um e difício no ce ntr o de São Paulo , que dur o u e xatame nte o ito se gundo s. É co mo se , par a e le , uma estr utur a r ígida co mo a de um pré dio , de um co njunto mo lar , pude sse ser fle xibil iz ada “ape sar de tudo ”, de sde que instalásse mo s o s dispo si tivo s ade quado s á pro dução de um de slo came nto do s se us alice r ce s. E o que po de r ia faz er funcio nar esse tipo de de slo came nto quando não se ja o caso do enco ntr o e ntre pr é dio e e xplo sivo s? De um mo do ger al, po der íamo s dize r

64

Henry Miller. Trópico de Câncer, Círculo do Livro, p. 7.

65 Idem.

que são o s aco nte cime nto s dispar ado s pe las e xper ime ntaçõ e s inte nsivas que , po r e xe mplo , e m He nr y Mille r são acio nadas pe la pro dução lite r ár ia.

Pr ime ir o , e le vive uma co nstante situação de per ce pção de uma re alidade que não co mbina co m o que ne le se agita. O lo cal e m que está, limpo e or ganiz ado pe r fe itame nte , a falta de dinhe ir o , re cur so s e espe r anças. Mas esse s e le me nto s que Mille r co lo ca e m sua mir a, não estão ne ce ssar iame nte no ambie nte que o r o de ia, no e xter io r e mpír ico , o que le var ia a pe nsar numa r e lação e ntr e cor po s se par ado s, indivi duado s . Mille r e nco ntr a e sse s e le me nto s co mpo ndo a pr ó pr ia multip lic idade que o po vo a. A Villa Bo r ghe se é algo e m Mille r , De us é algo e m Mille r , a Ar te é algo e m Mille r , o Ho me m é algo e m Mille r e até me smo Mille r é algo e m Mille r ; e le o pe r a uma r e inve nção de si a par tir de um de spr e ndime nto daquilo tudo que o r e pr ime – er a ne ce ssár io r aspar o juíz o de de us, co mo na luta de Ar taud. Das se nsaçõ e s limi tado r as que to do e sse entulho r ígido pro duz , e le che gar á à po ssibil ida de de ger ar le vez a, de sacudir o que lhe inco mo da, atr avé s da e scr ita e da vida le vadas co mo pr o ce sso s de e xpe r ime ntação . A e scr ita é o nde Mille r co nstr ó i, ao me smo te mpo que a e scr ita é que co nstr ó i e m Mille r , uma maquinar ia de faz er par tir .

Mas a lite r atur a não é só uma saúde par a aque le s que cr iam suas o br as co mo única for ma de se mante r e m vivo s, sua po tê ncia clínica també m afe ta aque le s que co m e la e nco ntr am- se atr avé s da le itur a – um livr o po de mudar uma vida, co mo sabe mo s. Essa maquinar ia lite r ár ia de faz er par tir e m pro ce sso s expe r ime ntais de r e inve nção de si, també m pro duz algo e m que m ne la se banhe , do nde um re ce ituár io lite r ár io de sse tipo po de se r to mado co mo dispo sit ivo de inte r ve nção e m psico te r apia, funcio nando co mo po ssíve l expe r ime ntação pr o vo cado r a de disso luçõ e s do s e difício s instala do s no co r po pe lo s pr o ce sso s de subje tivação ho mo ge ne iz ante s, po de ndo co m isso de slo car um indiv íduo de

se us te rr itó r io s e nr ije cido s, que o impe de m de inve ntar no vas esté ticas existe ncia is.

A par tir de sse pe nsame nto , e co ne ctado ao pe nsame nto de

re ce ituár io poé tico de G uattar i6 7, te nho pr o cur ado e xper ime ntar

o s efe ito s da inse r ção da lite r atur a co mo dispo sit ivo clínico em psico te r apia. Na clínica é muito co mum o uvir mo s pe sso as diz er e m de um tipo de cr ise muito se me lhante a de Mille r , pro duz ida por uma inco mpat ibi lid ade co m o mundo le gitima do da so cie dade . Pacie nte s que diz e m não ve r se ntido no e stado das co isas, que pe r der am a co nfiança nas pe sso as, e que pr o cur am uma saída de ssas z o nas e xiste nciais re pre sso r as, po de m muito be m se be ne ficiar e m num e nco ntr o co m a o br a de He nr y Mille r , por exe mplo , assim co mo de tanto s o utr o s, co nfo r me cada caso .

Em situaçõ e s muito var iadas utiliz e i fr agme nto s lite r ár io s co mo dispo siti vo de e xper ime ntação e m psico te r apia, de sde le itur as o nde a dupla re vez ava- se diz e ndo po e mas e tr e cho s de livr o s em voz alta, até caso s e m que eu suge r ia le itur as, se mpr e aco mpanhadas de um pr o pó sito , ao me no s, mini mame nte de line ado , te ndo a ve r co m o se ntido da inte r ve nção que e u pre te ndia. Po r e xe mplo , um pacie nte que diz ter dificul dade s e m re lação a pe sso as e m po siçõ e s hie r ár quicas e le vadas, r e ce be u co mo suge stão de le itur a e xpe r ime ntal Car ta ao Pai, de Kafka, e co mo co mple me nto , se mpr e tr aze r o livr o par a tr abalhar mo s e m no sso s e nco ntr o s, a par tir do s pe nsame nto s que a le itur a dispar asse .

Em o utr as situaçõ e s é o pr ó pr io pacie nte que diz que a lite r atur a funcio na co mo uma clínica par a si; co mo uma garo ta que diz ia não ver se ntido nas co isas e e star passando po r “muitas cr ise s”, mas que e m se guida falo u de do is livr o s que lhe ajudar am a supe r ar as cr ise s vividas pe lo fim do namo ro e pe la mo r te de

uma tia. Isso fo i de sco be r to num pr ime ir o e nco ntr o co m e la, por que , co nfo r me o caso , alé m de faz e r um mape ame nto da histó r ia de vida e das cr ise s do pacie nte , pr o cur o faz e r uma espé cie de anamne se de sco ntr aída, o u simple sme n te , uma co nver sa so br e as suas pre fe rê ncias ar tísti cas e m lite r atur a, cine ma, fo to gr afia, ar te s plásticas , música e tc. Disse -lhe que pare cia que e la tinha inve ntado uma clín ica par a si atr avé s da lite r atur a, po is o s livr o s lhe ajudar am a super ar cr ise s e impasse s. Ve ndo que e la co mpr ee nde u e co nco r do u co m o que e u disse , suge r i que a lite r atur a pude sse se r um campo a se r e xpe r ime ntado na psico te r apia. A par tir daí, na me sma se ssão , e la falo u que go stava muito de e scre ve r , mas que par o u po r falta

de ince ntivo do e x-namo r ado e de co nfiança pr ó pr ia , mas que

tr ar ia se us e scr ito s par a e u ver – o que po de r ia se r um sinal de que o campo da e xper iê ncia lite r ár ia e stava se ndo r eativado . Mais adiante , em no ssa co nver sa, che gamo s a Clar ice L ispe cto r , que , se gundo e la, e r a que m lhe faz ia se ntir que não er a a única

de sse je ito no mundo ; a e scr ito r a lhe e r a uma co mpanh ia

inse par áve l. Cor r i e pe gue i Água Viva na estante , nó s do is já havíamo s lido e sse livr o , mas e la disse que não se le mbr ava. Se nte i- me no vame nte e li algumas passage ns: vivo à be ir a6 8...

po sso não te r se ntido , mas é a me sma falta de se ntido que te m a

ve ia que pulsa6 9... e ntão e scre ve r é o mo do de que m te m a

palavr a co mo isca: a palavr a pe scando o que não é palavr a7 0...

Passe i- lhe o livr o , e la abr iu e le u o pr ime ir o par ágr afo em silê ncio e de po is disse : o lha só , é assim que e u tava diz e ndo que

me sinto .. . Eu disse - e ntão le ia e m voz alta par a nó s.

“É co m uma ale gr ia tão pro funda. É uma tal ale luia. Ale luia, gr ito e u, ale luia que se funde co m o mais escur o uivo humano da do r de se par ação mas é gr ito de fe licidade diabó lica (.. .) Mas te nho

68

Henry Miller. Trópico de Câncer, Círculo do Livro, p. 12

69 Idem, p. 14 70 Idem, p. 21

ainda um po uco de me do : me do ainda de me e ntr e gar po is o pró ximo instan te é o de sco nhe cido7 1...”

Utiliz e i Água Viva co m vár io s pacie nte s, e m dife r e nte s situaçõ e s e pr o gr amas, assim co mo T ró pico de Câncer , de He nr y Mille r . Este últi mo , po r tr atar - se de uma lo nga expe r iê ncia que vai de uma vida limita da por to do s o s lado s, passando por uma cr ise pro vo cado r a de uma po tê ncia de r e vide alucina tó r ia, che gando ao final co m um inte nso canto de lo uvo r à vida, exaltação de tudo que flui. No co me ço do livr o , He nr y Mille r e stava so br e vive ndo e m Par is em situação difíci l, faz e ndo pe que no s se r viço s par a pe sso as de sinte r e ssante s e m tro ca de co mida e lugar par a dor mir . De po is e le passa a alte r nar suas ce nas de sufo came nto co m as de implo sõ e s r aivo sas e libe r tado r as.

De po is de uma se qüê ncia de pale str as humanitar is tas e pacifistas , o hindu filiado a G handi, que He nr y Mille r aco mpanhava e m tr o ca de alguns tr o cado s, de cide ir à de sfo r r a: “Alguns minuto s de po is e le dança co m uma puta nua... po sso ve r a bunda r e fle tida uma dúz ia de vez e s no s e spe lho s que for r am o apo se nto . A me sa está che ia de gar r afas de ce r ve ja, a piano la chia e ar que ja.. .7 2” Mille r está se ntado num so fá e o bser va o

hindu r e aliz ando se us capr icho s num bor dé u pe r ifé r ico . Ao s po uco s, e le co me ça a no tar que sua pe r ce pção da ce na passa a ter uma sutile z a inco mum, sua visão mo difica - se numa e spé cie de de smor o name nto subje tivo , de scar nificação do e spír ito escalpe lan do o filtr o da me nte e to r nando e xpo sta a supe r ficiali dade de um de vir de sumaniz ante . .. “Há uma e spé cie de pande mô nio abafado no ar , uma no ta de vio lê ncia re pr imida , co mo se a espe r ada explo são e xigisse o adve nto de algum de talhe abso lutame nte insign ifi cante , algo micr o scó pico , mas inte ir ame nte impr e me ditado , co mple tame nte ine spe r ado ....” Ele

71 Idem, p. 09 72 Idem, p. 96.

vê o mo vime nto do s co r po s, re par a de talhadame n te no s o bje to s,

se nte o ar lhe r evir ando os po ro s, fundi ndo se u sangue às pare de s do bor dé u, numa e spé cie de de vane io que per mite a algué m par tici par de um aco nte cime nto , e me smo assim, per mane ce r abso lutame nte ause nte ; o ambie nte ganhando vo lume , de nsidade , co mo se cada co r po o r gânico o u ino r gânico , visíve l o u invis íve l que par ticipava do ce nár io fo sse se ndo subitame nte macer ado por um pilão de me tal atr avé s de sua per ce pção .

“T o do o me u se r estava re agindo ao s ditame s de um ambie nte que nunca ante s e xpe r ime ntar a; aquilo que po dia chamar de 'e u' pare cia e star se co ntr aindo , co nde nsando , re cuando das ve lhas co stume ir as fr o nte ir as da car ne , cujo pe r íme tr o co nhe cia ape nas as mo dulaçõ e s das e xtre midade s do s ner vo s. (... ) E quanto mais só lido e substanc ial ia se to r nando se u núcle o , mais e xtr avagante , de licada e palpáve l par e cia a re alidade pr ó xima, par a a qual e le e stava se ndo lançado7 3”.

No documento Rafael Domingues Adaime.pdf (páginas 66-76)

Documentos relacionados