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Um corpo para falar

No documento Rafael Domingues Adaime.pdf (páginas 76-93)

Em no sso pr ime ir o e nco ntr o na clínic a, pr o pus que no ssa co nver sa fo sse gr avada co m uma câmer a de víde o apo ntada par a e le . Ele acho u um po uco estr anho e fe z algumas per guntas . Disse -lhe que minha idé ia er a que tivé sse mo s um re gistr o do que e le falar ia par a, po ste r ior me nte , po de r mo s assistir . Gar anti par a e le , e vide nte me nte , que as image ns não ser iam vistas por mais ningué m a não se r nó s do is. Alé m disso , disse - lhe que achava que assistir mo s po ster io r me nte a sua per fo r mance no víde o po der ia ajudar a per ce be r co mo e le lidava co m a fala e co mo se u cor po funcio nava quando e le falava, já que isso tinha a ve r co m o pr incipal incô mo do que se ntia . Ele ace ito u.

Co lo que i a câme r a so br e uma te le visão que eu havia de ixado na sala, pre par ado par a que a pr o po sta fo sse ace ita. A câme r a fo i co ne ctada à T V de mo do que e le pude sse ve r sua image m, caso de se jasse . Ele estava se ntado e m fre nte . Fiz o e nquadr ame nto de for ma que o cor po inte ir o apar e ce sse e se nte i- me num ângulo de 45 gr aus e ntre e le e a te le visão . Co m o co ntr o le re mo to da câmer a e m mão s disse - lhe : “Q uando vir e s a luz ver me lha sabe r ás que a câme r a e stá gr avando . Se quise r e s que e u par e de gr avar , é só diz e r . Po de mo s co me çar ?” Ele disse - “Não se i o que é pio r ... se é te r uma câme r a o u um e str anho o lhando , assim, pr a tua car a, par a co nver sar ”. Co me ce i a gr avar e pe r gunte i - po r

quê? . Par e ce ndo ne r vo so , e le disse que achava que a câme r a e r a

pio r , já que um e str anho pe lo me no s tinha um ro sto .

No co me ço , e le disse que go star ia de diz e r por que pro cur o u pr aticar psico te r apia. Fique i calado o uvindo e o lhando par a e le . Falo u dur ante alguns minuto s so br e dificul dade s de falar em público e uma gague ir a que lhe aco mpanhava há muito te mpo .

Eu disse que e m pr ime ir o s e nco ntr o s go stava que a pe sso a falasse de si atr avé s da sua histó r ia, e que isso me pare cia uma base de par tida inte r e ssante par a pr o ce sso s que funcio nam par a que a ge nte se mo difi que ; a histó r ia co mo aquilo a que e stamo s e m vias de dife r ir . A co nve r sa dur o u apr o ximadame nte uma ho r a e e le falo u a sua histó r ia. Q uando te r minamo s, pe di que e le tr o uxe sse suas fo to s pe sso ais no pr ó ximo e nco ntr o , po is isso no s ajudar ia a cr iar um mapa de o nde par tir .

Ver suas fo to s dispar o u vár io s e fe ito s inte r e ssante s e indica do r e s de e xpe r ime ntaçõ e s a se re m cr iadas par a o se u caso . Pe r ce be mo s uma var iação e m se us ge sto s e m cada uma de las, o nde e le fo i mo dificando sua r e lação co m a le nte da câme r a fo to gr áfica, cada vez mais de sviando o o lhar . Alé m disso , as fo to s abr ir am a po ssibili dade de que e le co ntasse a histó r ia de uma viage m que fez , que se gundo disse , havia divi dido sua vida e m ante s e de po is daque la expe r iê ncia.

Num o utr o e nco ntr o , de po is de do is me se s, e le che go u falando do livr o que havia adquir ido , um vo lume de co le tâne as das o br as de Ro be r to Piva, po e ta paulista . Pe di que e le le sse algum poe ma e , ao me smo te mpo , pe nse i que se r ia inte r e ssante filmar a le itur a e pe r gunte i o que e le achava – e le co ncor do u. Não have r ia um de vir - o utr o quando se lê o utr o? Er a a se gunda vez que utiliz ar íamo s a câme r a co mo dispo sitivo na clínic a, mas de ssa ve z não numa situação de e ntr e vista, e sim de le itur as. Me pare ce ago r a, que essa talve z te nha sido a pr ime ir a situação co m o qual per ce bi e fe tivame nte que minha ação clín ica havia se mo difica do mais r adicalme nte , e que o mo tivo disso e stava re lacio nado a te ntativa que e u co me çar a a inve stir de e xpe r ime ntar co mo se r ia pro duz ir uma clínica que o co r re sse atr avé s de suce ssivo s pro ce dime nto s de expe r ime ntação .

à dispo sição de pe r ce be r que tipo de e xpe r ime ntação po de r ia ser inte r e ssante de co lo car e m funcio name nto num caso e spe cífico – que pr o gr ama e xpe r ime ntal cr iar par a as máquinas de se jante s de um indiví duo ? Po r causa de expe r iê ncias que vinham aco nte ce ndo co m o utr o s pacie nte s, e u sabia que indicaçõ e s par a cr iação de pro ce dime nto s po de r iam par tir tanto de le co mo de mim, e que o mais co mum se r ia aco nte ce r uma alte r nância o u co mpo sição de pro po stas. No caso de sse pacie nte , e u per ce ber a que havia ne ce ssidade de e xpe r ime ntar “falar ” e m dife r e nte s situaçõ e s, po is e le pe dia- me , a se u mo do , par a ajudá - lo a cr iar um co r po co m o qual pude sse falar em dife r e nte s situaçõ e s. A par tir daí, co me çamo s a utiliz ar a câmer a de víde o co mo dispo siti vo aco plava numa máquina de faze r falar e ve r a si pr ó pr io . Eu tinha a expe ctativa de que o dispo si tivo não se limitasse ape nas a efe ito s de auto - re co nhe cime nto , mas que també m abr isse espaço par a a inve nção de no vo s mo do s de falar , o lhar , mo ve r - se .

Co me ce i a per ce ber as qualida de s que a câme r a po de r ia te r co mo dispo siti vo de inte r ve nção ao filmar cr ianças. Na é po ca, e u faz ia me us pr ime ir o s mo vime nto s co m uma câmer a de víde o . Ao ver e m-se na te la da câme r a as cr ianças ficavam sur pre sas, ale gre s e muitas ve ze s e ufó r icas. Alguma s ve z e s e u che gava a pe nsar e m de sligar a câme r a par a evitar tumulto s pr o vo cado s pe lo acúmulo de pe que no s te ntando caber na image m tr ansmit ida pe lo mo nito r de ape nas cinco ce ntíme tr o s, mas e le s r e so lviam isso e ntr e si. Se e u pe r mitisse , a expe r iê ncia po de r ia dur ar po r te mpo ilim itado , acabando co m inúme r as fitas, po is e las e xpe r ime ntavam suas image ns co mo uma br incade ir a, impr o visando ge sto s umas co ladas nas o utr as. Não r ar ame nte , a câmer a er a se ntida co mo a po ssibili dade de apr e se ntar algo do se u unive r so , ne sse caso , ger alme nte algué m co me çava a cantar alguma música de que go stava o u diz e r algo par a algué m imaginár io : “o i me u amo r , isso aqui é pr a vo cê ”, passando as

mão s e m se us pr ó pr io s cabe lo s e co m um o lhar se nsual na dir e ção da le nte , disse um me nino de 1 2 ano s. Esse s e fe ito s inte r e ssavam- me , a po ssibili dade lúdica da maquinar ia e o que a função de re gistr o acio nava - “vai apar e ce r na T V? ”. A par tir daí, e m minhas pr ó pr ias se ssõ e s e xper ime ntais , co me ce i a te star e sse dispo siti vo , até o mo me nto e m que pe nse i e m util iz á- lo na clínica.

Um dispo si tivo , quando assim de finido , po de ser util iz ado de mane ir as muito dive r sificadas, se ndo que e le só funcio na se aco plado a algo . Se ja a uma outr a máquina o u a um pro pó sito espe cífico ; e le s ganham ou pr o vo cam uma var iação de se ntido s co nfor me a var iação do s suas co ne xõ e s co m o s o utr o s; por isso é que po de mo s diz e r que e le s não são ape nas maté r ias, mas mate r iais de dispo sit ivo s. Uma câme r a de víde o , por e xe mplo , de sco ne ctada da sua função de gr avação de image m e so m po der ia ser utiliz ada co mo pe ça de co r ativa o u o bje to o fe nsivo a se jo gar e m algué m co mo se fo sse uma pe dr a. Me smo se co nside r ar mo s uma câmer a e m suas funçõ e s áudio - visuais, de pe nde ndo de co mo a util iz ar mo s, e la pr o duz ir á e fe ito s muito s dife r e nte s. No caso de um víde o do cume ntár io , por e xe mplo , e la funcio nar á de uma mane ir a, no caso da clíni ca, de o utr a. Essa dife r e nça de uso de uma maquinar ia, o u dispo sit ivo , cr e io que está na base do que te nho e nte ndido co mo pro gr ama e xpe r ime ntal. Par a De le uze e G uattar i, o pro gr ama funcio na

co mo mo to r de e xpe r ime ntação7 7, e tanto os dispo sit ivo s co mo o s

pro gr amas, são co nstr uído s a par tir das inte nçõ e s que te nhamo s e m cada caso o u, co mo dir iam e sse s auto r e s, é pre ciso sabe r

co m que inte nsi dade s vo cê que r po vo ar se u co r po se m ó r gão s7 8.

Q uando e xpe r ime ntamo s filmar as suas le itur as, e u o apr o xime i da câme r a. Não havia a pr e se nça do te le viso r . A câme r a fo i

77 Mil Platôs, v.3., Ed. 34, p. 11 78 Idem. P. 13.

co lo cada num tr ipé na altur a do s se us jo e lho s, quase e m co ntato co m o cor po . Fale i par a e le so bre a idé ia de pr o gr ama e xpe r ime ntal que e stava pe squisando e po r que e u pe nsava que no se u caso a câme r a po de r ia se r um dispo sitivo . Minha idé ia er a de que o pacie nte , ao me smo te mpo que e xper ime ntasse o falar atr avé s da câmer a, fo sse abr indo e m sua vida po ssibi lid ade s de ampliar sua po tê ncia de e xper ime ntação do falar . Então , disse - lhe que minha pr o po sta e r a de que e le falasse o lhando par a sua pr ó pr ia image m na te la da câmer a, par a e xpe r ime ntar o falar ; e le acho u inte re ssante . O pr ime ir o po e ma fo i lido quase se m que e le o lhasse par a a câme r a, que estava instalada e m um tr ipé , à altur a de se us jo e lho s, apo ntada par a se u ro sto e co m a pe que na te la que lhe é ane xa també m vir ada par a e le , tr ansmiti ndo sua image m instanta ne ame nte . Ele co me ço u a le r :

“A vida me car re ga no ar co mo um gigante sco abutr e . A ver dade do s de use s car nais co mo nó s, lângu ido s, não pr o vé m do nada, mas do de se jo tr o ve jante do cor ação par tido pe lo amor , e m sua dispar ada pe lo ro sto de um ado le sce nte co m sua fúr ia de licada. Cr uz o ave nidas inso ne s, cor r o ídas de chuva. Minha mão alcança minha do r pr e se nte , me pr e par a par a um dia dur o , amar go e pe gajo so . A tar de de saba se u az ul so br e o s te lhado s do mundo . Vo cê não ve io ao no sso e nco ntr o e e u mo rr o um po uco e me e nco ntr o só numa cidade de mur o s. Vo cê talve z não saiba do r itual do amo r co mo um fo nte , a água que co r re não co r re r á, jamais, a me sma, até o poe nte . Minha do r é um anjo fe r ido de mor te . Vo cê é um pe que no de us ver de e r igo ro so . Ho r ár io s de mor te , cidade , ce mité r io . A mor te é a o r de m do dia. A no ite ve m

r aptar o que so br o u de um último so luço ” (R o be r to Piva7 9).

Q uando te r mino u, suge r i que ficasse o lhando par a si dur ante algum te mpo , o que e le fez , mo ve ndo a cabe ça par a o s lado s, me xe ndo no cabe lo , var iando a fo r ma de o lhar . Ele e stava

co me çando a se familiar iz ar co m a câmer a e ve ndo - se assim pe la pr ime ir a vez . Q ue m sabe , o fato da câme r a “não te r ro sto ” co me çava a te r me no s impo r tância ago r a, quando e le , assim co mo as cr ianças, co me çava a “br incar ” co m a máquina. “A água que co r re não co r re r á jamais a me sma até o po e nte ” po r que algo não de ixar á de mistur ar , re co mbinar e multip licar to da a maté r ia dispo níve l.

Fo mo s pe r ce be ndo que a instal ação da câmer a aco plada a uma maquinar ia de co municação humana, po der ia mo dificar to do um siste ma de cr iação e or ganiz ação da fala, da visão , da e xpre ssão do co r po e da e scuta, fo r çando mudanças de per spe ctivas nas for mas atuais . Pe di par a que e le lê -se um tr e cho de um livr o que pe gue i na minha e stante , L ugar Públ ico , de Jo sé Agr ipp ino de Paula, por achar que se co mpo r ia be m co m o auto r que e le le r a, e po r tanto , co m algumas que stõ e s que lhe er am impo r tante s, e par a ve r co mo se r ia sua pe r for mance le ndo algo de sco nhe cido até aque le mo me nto .

“Um r uído lo ngínquo que se esvai. Se ntir to da a supe r fície do cor po . A minha mão passa pe lo limite do s o bje to s. Caminhar num silê ncio se m to car o so lo , ado r me cido de to do s o s se ntido s” (Jo sé Agr ippino de Paula8 0)

Enquanto e le lia não tinha co mo o lhar par a a te la, o que me de ixava um po uco inquie to , já que eu pre te ndia cr iar uma situação e m que e le ficasse o máximo de te mpo po ssíve l o lhando par a sua pró pr ia image m. Pe di e ntão , par a que e le lê -se uma fr ase do livr o e de po is disse sse o te xto o lhando par a a te la, e assim suce ssivame nte . Ao me smo te mpo , pe di par a que e le te ntasse de slo car - se de si, que te ntasse pro duz ir - se o utr o , co nfor me o s afe cto s que e le se ntisse atuante s em cada po e ma o u par ágr afo , po is par e cia- me que a le itur a, ape sar da dife r e nça

e ntre o s te xto s, mantin ha uma ce r ta r e gular idade de e stilo . De po is de me ia ho r a a e xpe r iê ncia che go u a um limite , e le havia cansado . Co me çamo s a co nver sar , ainda e m gr avação , e e le falo u so bre alguns e fe ito s dispar ado s pe la câmer a.

“É incr íve l co mo esse ne gó cio de falar o lhando par a a pr ó pr ia image m dá mais se gur ança par a a fala”. Pe di par a que e le e xplicasse par a mim o que que r ia diz er co m isso : “A image m em minha fre nte fica chamando a ate nção par a o pr ó pr io pe nsame nto ; a fala não sai se m ser pe nsada. É co mo quando se co lo ca o cor po pr a co r re r , e e le fica a mil. .. agor a pare ce que a cabe ça tá se me xe ndo mais”.

No e nco ntr o se guinte , assistimo s as image ns gr avadas. Ao final de 4 0 minuto s de e xibição , po sicio ne i a câme r a co mo no mo do ante r io r , ao s jo e lho s, e pe di que e le falasse das suas se nsaçõ e s, per ce pçõ e s e pe nsame nto s so br e o que acabar a de ver e o uvir . Sua pr ime ir a fala fo i: “Esto u cho cado !” E lanço u um sé r ie de fr ase s so bre as pe r ce pçõ e s que tive r a: “as camadas de per ce pçõ e s que e u inve nto ... co mo falo r ápido ... co mo gague jo ... de sde pe que no falam que eu falo muito r ápido e e u nunca de i bo la pr a isso ... co mo abstr aio me u pe nsame nto ... ago r a não se i o que e u tava que r e ndo diz e r naque la ho r a ...e m algumas par te s e u não re co nhe cia a mim me smo ... algumas fr ase s ache i mais since r as, o utr as mais r acio naliz adas de uma mane r ia fo r mal, par e cia que e u não e stava falando nada... co mo e u mo vime nto as mão s, não par o de to car o me u ro sto ... també m re par e i na te nsão do s músculo s de me u r o sto , cujo um mé dico suge r iu de tr atar co m inje çõ e s de uma dr o ga; de po is de per ce be r isso esto u se ntindo que e sto u falando co m o r o sto mais so lto ... e m alguns mo me nto s, assistindo o víde o , e u não co nse gui e nte nder que palavr a e u e stava diz e ndo ... e u não po sso de ixar isso tudo ser tão banal, ficar po r isso me smo , e u pre ciso co me çar a ar ticular um no va inve nção de fala”.

A câme r a de víde o co me çava a e xplicitar algumas das suas qualida de s co mo dispo siti vo de inte r ve nção . Par a mim, nada se r ia me lho r do que a expr e ssão de uma vo ntade de “inve ntar uma no va fala”, mult ipl icar - se , no e ntanto , to do cuidado me pare cia se r po uco no que diz ia r e spe ito a e sse s efe ito s e as me tamo r fo se s que po der iam se r inve stidas a par tir da e xpe r iê ncia. Aque la fr ase co nclusiva não havia o co rr ido gr atuitame nte e não fo r a de ixada so lta no ar . A cada co me ntár io que e le faz ia so br e sua pe r for mance e m fre nte a câme r a, e u pro cur ava sabe r que valo r e le lhe s atr ibuía, po is nada se r ia pio r

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