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3 A LuTA DE KAur CoNTrA A imPoSiÇÃo Do CALAr

No documento minha profissão é a literatura (páginas 56-61)

Antes de aprofundar a análise do silêncio nas produções da poeta canadense, é proveitoso vislumbrar a situação a qual ela se refere. A sociedade na qual ela se insere - e que nós nos inserimos até hoje -, como tratado anteriormente, é edificada em pensamentos e condutas extremamente pratriarcais. São essas as bases que orientam toda uma teia social e que, consequentemente, relegam às mulheres a condição de subjugada e de mera expectadora de suas vidas. Diante disso, Kaur divide Outros Jeitos de Usar a Boca em quatro partes, sendo elas intituladas: a dor, o amor, a ruptura e a cura. Todos os poemas que serão apresentados a seguir se encontram na seção “a dor”, o que é assaz significativo e representativo, mostrando-se em total consonância com a análise desse trabalho, na qual o silêncio é visto como imposição e como fonte de sofrimento.

Somado a isso, a ausência de pontuação, que desencadeia uma fluidez notável, dialoga de maneira singular com o ritmo e com a dicção ímpares criados nas produções da poeta, criando uma teia poética mergulhada nos cinco sentidos e nas sensações que as unidades e o todo despertam a partir da leitura. Por fim, é também necessário compreender a magnitude das palavras que, em todos os seus substratos, carregam e são presença, sendo, além de signo, uma representação que antecede todos esses aspectos. A união de todos esses elementos colabora ricamente para a construção da poeta, construindo uma inflexão na voz que escreve e que lê.

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O SILÊNCIO QUE SUSSURRA E DIZ E GRITA EM OUTROS JEITOS DE USAR A BOCA Fernanda Barroso e silva

MINhA pROfISSãO é A LITERATURA:

TRAvESSIAS DA AUTORIA fEMININA

MoeMa rodrigues Brandão Mendes, nícea Helena de alMeida nogueira Patrícia de Paula aniceto, raFaela Kelsen dias

(OrganizadOras)

Figura 1 - Museu Figura 2 - A passagem

Fonte: KAUR, 2017, p. 108. Fonte: KAUR, 2017, p. 1.

Os dois poemas acima retomam, respectivamente, a história das mulheres e a passagem, marcada pela necessária ruptura, que elas vivenciam enquanto lutam por seus direitos. Os olhos fechados, no primeiro excerto, podem direcionar para essa recusa de olhar para a mulher e reconhecê-la como detentora de autonomia, individualidades e, principalmente, de si mesma. Há o que ser visto, mas não se direciona o olhar para tal. A figura feminina, portanto, é esquecida e jamais ouvida ou considerada, e há “em lugar de uma impossibilidade de escrita, a escrita de uma impossibilidade” (BRANCO, 1985, p. 31).

Aliado a isso, a disposição do segundo texto dialoga com o ritmo a ele fornecido, sendo que não são precisas, inclusive, muitas palavras para constituir a carga semântica que o poema carrega e que acaba por transpassar a folha de papel ou a tela de um dispositivo eletrônico. A dicção única da escrita feminina está ali: no espaço escolhido, na respiração que conseguimos ouvir (e até sentir) e no tom oralizante que encontramos. Assim, o todo poético, com seu belo cruzamento entre imagem e escrita, carrega a força e a crueza também sentidos no ritmo da própria construção.

Consequentemente, tem-se a arquitetura de uma linguagem híbrida que diferentes semioses, culminando na construção de uma poesia fluida que dialoga com aquele que a lê.

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Figura 3 - Silenciamento

Fonte: KAUR, 2017, p. 25.

O excerto fornecido acima evidencia, de forma magnífica e direta, a voz que é forçadamente silenciada - em um intencional paradoxo, considerando que o processo de silenciamento já é naturalmente forçado. Nessa perspectiva, a ilustração de uma mão, aparentemente masculina, tampando a boca de uma mulher estabelece uma memorável relação de complementariedade com as palavras. Isso, porque, a partir do cruzamento dessas interfaces, torna-se possível formar uma textualidade mosaica que sugere e também leva ao inquietante. Vislumbra-se, assim, de maneira palpável a temática a que Kaur, e este capítulo, se propõe.

É importante apontar, ainda, que, ao se observar a expressão do olhar da mulher desenhada, percebe-se que há sim muito a ser dito, o que demonstra que o silêncio imposto é um incômodo que claramente “sufoca a voz como um amargo travo na garganta” (BRANCO, 1991, p. 17). Ler o poema permite sentir o sôfrego, o fragmento, o cortante e permite também ter a certeza de que não se fala sobre uma escolha, mas sobre uma impetuosa e violenta imposição. Palavra e imagem, portanto, interseccionam-se para evidenciar de maneira mais vívida a perda do direito e o estado de desconforto: a dor que dá nome à parte do livro - o que também será visto nos próximos poemas que serão objetos de análise.

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Figura 4 - Hereditariedade

Fonte: KAUR, 2017, p. 43.

A produção acima não poderia deixar de ser analisada ao passo que aponta de maneira tão lúcida e direta para a construção da sociedade patriarcal. O ato de a “palavra silêncio” estar sendo empurrada pelo homem da casa para a figura materna, que deve se calar mesmo diante do desejo de falar, é algo extremamente significativo e que representa crucialmente os entremeios da teia patriarcal. Como complemento, destaca-se que “foi assim que as mulheres da minha família/

aprenderam a viver com a boca fechada” (KAUR, 2017, p. 43). O silêncio é, desse modo, ensinado, como a lógica (de)manda. Ele deve ser seguido, vivido, repassado, perpetuado. Deve ser visto como começo e fim, partida e destino: um ciclo que se deseja manter ininterrupto.

Diante desse cenário, torna-se pertinente ressaltar o fato de que as mulheres, independentemente de quais sejam as suas vivências individuais, compartilham a consciência acerca desse silêncio que a elas vem sendo imposto ao longo dos séculos, como destacado por Miller (2013). Nota-se, assim, que a sociedade sempre fora um “fazer calar” tirano e extremamente poderoso, fazendo essa escrita feminina carregar o grito sufocado, a voz silenciada, o incômodo por tanto tempo sentidos. Esse vazio que é forçado às mulheres - sendo o silêncio a ausência do som e do falar - também se faz presente nas cadeiras desocupadas na ilustração feita pela autora. Imagem e palavras novamente se interligam e constroem uma teia mosaica que possibilita maiores diálogos no universo da própria poesia, e a extrapolando ao atingir o leitor.

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Figura 5 - A ideia de encolher Figura 6 - A arte de se esvaziar

Fonte: KAUR, 2017, p. 37. Fonte: KAUR, 2017, p. 41.

Os dois excertos dispostos acima estão apresentados lado a lado por apontarem, de maneira metaforicamente igual, para o encolher como uma forma de silenciar. O “hereditário”, presente no primeiro, somado ao “eles dizem/ que você não é nada” (KAUR, 2017, p. 41) e à repetição dessa fala como um mantra retomam o que foi discutido sobre o patriarcalismo que ensina e sempre reforça uma suposta (melhor dizendo, imposta) pequenez da mulher que deve ser ensinada e sempre revivida. O “ato de desaparecimento” muito se relaciona ao que às mulheres é dito: devem ser sombra e invisíveis, sempre atrás da figura masculina. Não devem ter voz, lugar ou vez. Nessa perspectiva e dialogando com o que foi apontado na produção anterior, o vazio novamente se destaca: a cadeira desocupada à esquerda e o “esqueleto” de um corpo à direita contribuem para evidenciar de maneira singular o forte simbolismo presente no verbo encolher.

Mostram, desse modo, o não-preenchido, a ausência, o vazio, o esvaziar-se - enfim, “a arte de se esvaziar” (KAUR, 2017, p. 41). Esses são aspectos tão paradoxalmente presentes na vida da mulher.

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Figura 7 - Poema-lâmina

Fonte: KAUR, 2017, p. 38.

Por fim, essa última seleção apresenta um poema que grita. Vislumbra-se a voz que é silenciada e precisa e deve falar tomando o seu lugar; o lugar que a ela foi negado há tanto tempo.

Existe, desse modo, um claro apontamento para os aspectos apresentados por Showalter (1985), visto que Kaur apresenta um tom de reinvindicação, de afirmação de si e do feminino, o valor da mulher - remetendo a uma bela mistura das fases feminista em fêmea, que dialogam nessa construção e na obra como um todo. Ao mesmo tempo em que resiste e mostra-se subversiva, propõe o amor a si mesma e auto aceitação, sempre reafirmando as fases analisada por Showalter. Destaco que, caso me fosse dada a difícil tarefa de nomear esse poema, que permite tantas construções e ramificações, chamá-lo-ia de “o abraço de si”. Ouvir-se e falar é se aceitar e se reconhecer, é ver além e lutar. Por isso, o incentivo de Kaur é claro: é necessário construir um espaço para si, o que é também sinônimo de abrir espaço para todas as outras.

No documento minha profissão é a literatura (páginas 56-61)