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1 ESCriTA FEmiNiNA iNTimiSTA

No documento minha profissão é a literatura (páginas 77-81)

Na escritura de Marguerite Duras existe um desejo incessante de compreender o que não se pode ser compreendido. Desvendar algo, de natureza íntima, que se não pode ser desvendada.

Com efeito, são nos silêncios e nos não-ditos da linguagem que a escrita durassiana aproxima-se da escrita de mulher. Assim, a escrita tenta compreender o mundo interior das personagens femininas. Em outras palavras, Duras tenta descobrir o que se encontra no “dedans e que não cessa de ressoar, secretamente, silenciosamente, o fort intérieur, [o eu feminino, este] algo que é mais profundo do que em qualquer homem” (CIXOUS, 2010, p. 60). Assim, Duras procura entender no fort intérieur da heroína os acontecimentos traumáticos latentes, algo de natureza profunda, e que se encontram nas zonas obscuras. A autora tenta buscar os acontecimentos ancorados na memória e no esquecimento. Esta região que a própria Duras denomina de “sombra interna e que cada um traz consigo mesmo e que não consegue sair” (DURAS, GAUTHIER, 1988, p. 38). Para ela, a “sombra interna” tem relação com a “vida vivida” do ser. Essa “massa vivida”, relacionada ao mundo interior, está associada às angústias, à dor, à ausência e à perda. Para, Danielle Bajomée (1999, p. 8) “a dor é para Marguerite Duras a manifestação essencial do ser”. Nesse sentido, veremos que a dor, inscrita no inconsciente, se transforma em “representações e fantasias”, (BELLEMIN-NOEL, Jean, 1996 p. 51) da heroína do texto Lol V. Stein.

Assim, escrita de Duras busca traduzir às cicatrizes indeléveis internas, marcadas pela ausência. É através dessa dor interna que a escrita faz com que nos aproximemos do silêncio e do grito existencial, em que a lógica da hipérbole faz unidade de sentido.

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AUTORIA FEMININA E PSICANÁLISE:

A PALAVRA BURACO NA ESCRITA O DESLUMBRAMENTO DE LOL V. STEIN DE MARGUERITE DURAS Júlia Simone Ferreira

MINhA PROFISSãO é A LITERATURA:

TRAVESSIAS DA AUTORIA FEMININA

moema rodrigueS Brandão mendeS, nícea Helena de almeida nogueira Patrícia de Paula aniceto, raFaela KelSen diaS

(OrganizadOras)

Segundo Freud (2010), os sonhos, os lapsos, os atos falhos e os não-ditos são de ordens do inconsciente. É justamente nestes elementos de sentido latente, que Duras tenta compreender o que se encontra obscuro na vida da protagonista Lol V. Stein. Assim, quando a escrita se aproxima do sentido da palavra, ela se direciona para outras palavras e que por sua vez, referem-se a outras palavras enigmáticas. A autora tenta decodificar o que elas não exprimem nos turbilhões:

De uma palavra-ausência, de uma palavra-buraco, escavada no seu centro para um buraco, neste buraco onde todas as palavras teriam sido enterradas. Não seria possível pronunciá-la, mas seria possível fazê-la ressoar. Imensa, sem fim, um gongo vazio. [...] É também o cão morto da praia em pleno meio-dia, esse buraco de carne (DURAS, 1986, p. 35).

Jacques Lacan (1965) já teria alertado que Marguerite Duras “não deve saber o que escreve.

O que está escrevendo, por que ela se perderia. E isto seria a catástrofe” (DURAS, 1994, p. 20). O que a escrita tenta traduzir é o sofrimento ou a dor existencial da heroína Lola V. Stein, causada pela perda ou pela ausência do ser amado. Nesse sentido, a escrita não consegue descrever o trauma vivenciado, ou “a supressão da dor”, aquilo que não pode ser traduzido em palavras: o Amor in absentia. Duras descreve, ela mesma, o efeito troumático, “le trou”, o “buraco” vazio na vida íntima da protagonista Lola Valérie Stein, ao ver “seu próprio noivo se apaixonar por outra [...] durante o baile em S. Tahla e ela ficou marcada pelo resto da vida” (DURAS, GAUTHIER, 1988, p. 17). E a autora conclui:

Lol V. Stein ficou destruída pelo baile de S. Tahla. Ela ficou edificada pelo baile. [...] No momento do baile, [ela] ficou tão transportada pelo espetáculo de seu noivo [com] aquela desconhecida de preto que Lol se esqueceu de sofrer. [...] É a partir desta supressão da dor que ela vai enlouquecer (DURAS, 1989, p. 35).

Percebe-se que existe aí uma dor e um sofrimento causados pela perda ou pela separação do ser amado. Ao longo do texto, tudo vai acontecer como se a heroína, “aquela adormecida de pé”

(DURAS, 1989, p. 24) estivesse enclausurada no tempo, vivendo num estado de adormecimento de si mesmo. As imagens da separação ou da perda do seu noivo, no momento do baile, deixarão marcas indeléveis e profundas na heroína. Com efeito, a imagem obsessiva do baile e a partida do noivo, Lol viverá numa constante angústia, que lhe causará um desequilíbrio de natureza psíquica. Neste sentido, em o deslumbramento de Lol V. Stein a paixão é vivida sob o signo da impossibilidade de se viver, de se realizar. Ela conduz a protagonista numa busca de um amor exclusivo, ocasionando assim o obsessivo. É nesse sentido que o obsessivo a transporta à loucura simbólica. A paixão-amorosa, o amor-paixão ou o desejo é para Marguerite Duras “o amor [...] sem limites - é por definição - sem outra finalidade que a morte” (BLOT-LABARRÈRE, 1992, p. 88). A visão que nos revela Marguerite Duras da condição humana, em relação ao amor, ao desejo ou a paixão é, portanto, a desilusão ou a frustração.

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AUTORIA FEMININA E PSICANÁLISE:

A PALAVRA BURACO NA ESCRITA O DESLUMBRAMENTO DE LOL V. STEIN DE MARGUERITE DURAS Júlia Simone Ferreira

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moema rodrigueS Brandão mendeS, nícea Helena de almeida nogueira Patrícia de Paula aniceto, raFaela KelSen diaS

(OrganizadOras)

2 LE Trou, o TRAUMáTICO, o BURACO VAZio Em LoL V. STEiN

Desde abertura do texto o deslumbramento de Lol V. Stein, o narrador-personagem, Jacques Hold, evoca a presença de uma música em que ouvimos no rádio num programa intitulado: “música-souvenir”. É justamente esta música simbólica que transformará, ao mesmo tempo, em dança e baile que nos indicará os caminhos para compreender a inquietante e estranha vida de Lol. V. Stein.

Na sala do baile do Casino de T. Beach, Lol vê, aproximando-se, uma desconhecida, Anne-Marie Stretter: “aquela graça abandonada, encurvada, de um pássaro morto. Era magra e de vestido preto, bastante decotado. Admirável ossatura de corpo e de rosto”. O noivo de Lol, Michael Richardson, completamente “hipnotizado e fascinado” pela misteriosa do baile, “dirigiu-se para ela e caminharam-se para a pista de dança” (DURAS, 1986, p. 10-12). Lol, “golpeada pela imobilidade”, contempla “deslumbrada” o espetáculo de dança entre Anne-Marie Stretter e seu noivo. A heroína percebe algo de estranho e inquietante na dança. Os corpos em movimento, ela sente um desejo nascente e ardente que circula entre os futuros amantes, pois: “eles tinham dançado. Dançado mais uma vez. Ele, com os olhos abaixados na região nua de seu ombro. Ela [...] só olhava ao longe do baile” (DURAS, 1986, p. 13).

No fundo, é o desejo ardente dos amantes do baile que Lol contempla fascinada, o deslumbramento, mas essa fascinação apresenta-se sob outra ordem. Com efeito, a imagem do desejo dos amantes do baile, pela dança dos corpos em movimento, vai transformando-se, inconscientemente, em perda, em abandono. Na verdade, o deslumbramento de Lol será interpretado como um troumatismo, pois, “golpeada”, abandonada e traída pelo noivo, a dança coloca em cena a perda, o vazio e até mesmo, sua própria morte simbólica. Ao invés de manifestar uma reação violenta, diante da traição de seu ex-noivo, Lol sorri. Este gesto dissimula um profundo constrangimento, um mal-estar, uma forma de pudor que, na verdade, disfarça um sofrimento, recoberto de raiva ou de ódio, uma violenta emoção interna que se faz sentir nas entrelinhas do texto: “Aplanar o terreno, escavá-lo abrir sepulturas onde Lol se finge de morta, parece [...] mais justo, já que se faz necessário inventar os elos que [...] faltam na história de Lol V. Stein. Do que erguer montanhas, edificar obstáculos, acidentes” (DURAS, 1986, p. 27).

Uma vez que o baile termina, os amantes partem e Lol “não mais os viu, cai ao chão, desmaiada” (DURAS, 1986, p.15). Desamparada, abandonada, começa então a verdadeira existência de Lol: entre lembranças e fantasias, entre melancolia e abatimento, entre memória e esquecimento, da famosa noite traumática do baile de T. Beach. Com efeito:

Pensamentos penetram em sua casa, incomodo-a, ela é forçada a sair. Os pensamentos chegam. Pensamentos nascentes e renascentes, cotidianos, sempre os mesmos, que vêm em enxurradas. Ganham vidas [nos] confins vazios. [...]. O baile tremia ao longe, velho, úmido destroço de um oceano agora tranqüilo, na chuva, em S. Taha. [...] O baile ganha um pouco de vida, treme, agarra-se a Lol. Ela aquece-o, protege-o, alimenta-o, ele cresce, sai de seu esconderijo, espreguiça-se. [...] Ela penetra nele. Penetra todos os dias. Penetra na luz

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moema rodrigueS Brandão mendeS, nícea Helena de almeida nogueira Patrícia de Paula aniceto, raFaela KelSen diaS

(OrganizadOras)

artificial, prestigiosa, do baile de T. Beach. E recomeça: as janelas fechadas, lacradas, o baile murado em sua luz noturna os teria contido, todos os três e apenas eles. E recomeça: Teria sido preciso murar o baile, fazer dele esse navio de luz no qual toda tarde Lol embarca, mas que permanece lá, neste porto impossível, preso às amarras para sempre [...] com seus três passageiros (DURAS, 1986, p. 33-35).

Na verdade, o que a protagonista mais deseja é conservar a lembrança dos corpos, a dança, os movimentos sensuais e o desejo dos amantes. Em outras palavras, confusa e obcecada pelas imagens do baile, tudo leva a crer que Lol deseja participar do espetáculo, ou seja, “penetrar” no desejo dos amantes do baile, até mesmo ver o acasalamento dos amantes, “nesta viagem impossível, com os três passageiros” que representa o seu verdadeiro “deslumbramento”.

Na medida em que o texto avança, descobriremos que o seu desejo transformar-se-á, inconscientemente, em cenas de voyeurismos. As cenas podem ser definidas como a realização do imaginário. Como observou Roland Barthes (2006), o imaginário é a própria inconsciência do inconsciente. Com efeito, entre realidade e imaginação, Lol fantasia cenas de nudez e de acasalamento entre o seu ex-noivo e a desconhecida, Anne-Marie Stretter. Assim:

Michael Richardson, todas as tardes, começa a despir outra mulher que não é Lol e quando outros seios aparecem brancos, sob o vestido preto, permanece lá, ofuscado, um Deus cansado por esse gesto de tirar a roupa. [Ou]: Ele a teria despido de seu vestido preto com lentidão e o tempo em que o tivesse feito uma grande etapa da viagem teria sido cumprida.

[Ou ainda]: O corpo longo e magro da outra mulher estaria aparecendo pouco a pouco. E em uma progressão rigorosamente paralela e inversa, Lol teria sido substituída por ela junto ao homem de T. Beach. Substituída por aquela mulher [...]” (DURAS, 1986, p. 36-37).

Percebe-se que, nesta imagem de desnudamento, a protagonista se encontra totalmente excluída da cena. Descartada, ela foi “substituída [por] outra, pelo corpo longo e magro da mulher”

do baile. No fundo, o que Lol deseja é “penetrar” na intimidade dos amantes, para “ver” a realização do gozo. Para Roland Barthes (2006), a escrita do gozo é sempre insuportável, pois se coloca em jogo a morte, a perda, a destruição do sujeito. Neste sentido, só lhe resta então ser observadora voyeuse da cena dos amantes:

Aquele gesto não teria ocorrido sem ela: ela existe com ele carne a carne, forma a forma, os olhos selados em seu cadáver. Ela nasceu para vê-lo. Outros nasceram para morrer. Aquele gesto, sem ela para vê-lo, morre de sede, pulveriza-se, cai, Lol está em cinzas. [...] Á medida que o corpo da mulher aparece [para] esse homem, o seu apaga-se, apaga-se, volúpia, do mundo (DURAS, 1986, p. 36-37).

A personagem participa da cena de desnudamento ou da cena erótica como mera observadora voyeuse. No fundo, o que Lol deseja ver é a morte do casal, depois da “volúpia” do gozo e, em seguida, sentir a sua própria morte, pois Lol está em “cinzas”. Todavia, “este aniquilamento,

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de sua própria pessoa, [ela] nunca conseguiu concluí-lo” (DURAS, 1986, p. 36). Só lhe restará então fantasiar uma nova cena do deslumbramento.

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