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COMENTÁRIOS

A MÍSTICA DE ECKHART EM ECKHART

Emmanuel Carneiro Leão (UFRJ)

Aqui e agora, nós nos descobrimos no meio de um desafio. É o desafio de

encontrar em Mestre Eckhart a mística de Mestre Eckhart. Trata-se de um desafio que nos convida a deixar ser nossa experiência radical de simplesmente viver. Uma das mulheres mais místicas e eróticas de todos os tempos é marrana, Sta. Teresa d’Ávila. Disse, certa feita, que a experiência mística é “rara hora et pauca mora”: um instante raro e fugaz. Exige o tempo todo de meditação e horas

favoráveis de desapego. E, não obstante, a mística não é questão de tempo, mas de ser “na espera do inesperado”, nas palavras milenares de Heráclito de Éfeso. Para tanto, é indispensável muita persistência e pouca impaciência. São Paulo diz que é na paciência que se chega ao espírito.

Mística é força arcaica em todo homem, vigor livre de criação. Não é necessário pertencer à religião e, muito menos, a uma determinada religião, para ser místico, embora, ao longo da história, as religiões tenham produ- zido as mais conhecidas experiências e construido as mais antológicas metáforas da mística. É que a mística não constitui uma entre muitas outras possibilidades da condição humana. Mística é toda a condição humana, em todos os homens. Sem ela, não se dá religiosidade de raiz e, sem religio- sidade de matriz ontológica, não pode haver esse fenômeno histórico chamado religião. Por isso, ninguém aprende a ser místico. A mística vive e vivifica todo encontro e\ou desencontro entre os homens. A mística acontece sempre e para sempre, em cada empenho de ser e em todo desempenho de não ser. Pelo simples fato de termos sido criados, todos nós somos e não somos místicos, em nossa vida e existência, em nossa maneira de ser e viver. E o somos e não o somos de modo tão radical que, quase sempre, nem percebemos a presença provocante da mística em tudo que fazemos e\ou deixamos de fazer, em tudo que somos e\ou deixamos de ser. O homem, em cada um de nós, antes de ser e para ser qualquer coisa, antes de entrar e para entrar em qualquer relacionamento, antes de lançar-se e para lançar-se em qualquer empreendimento, já sempre é e tem de ser o que busca e se esforça por obter. Por isso, em qualquer hora, tanto outrora, como agora e a toda hora, já soou o instante e a vez da mística.

Mas como é que sabemos de tudo isso?

Ora, nós o sabemos e não sabemos com um “saber só de experiência feito”. Nós o sabemos e não sabemos no sabor de todo gosto de ser que sentimos. Nós o sabemos e não sabemos em todo desgosto de não ser o que pretendemos. Na doçura e no prazer, na amargura e na dor, um élan incontentável nos atropela o

senso, e domina tanto o que temos e não somos, como o que não temos, mas somos, como o que nem somos nem temos.

É que realizamos sempre um empenho de viver e morrer a todo instante. Porque nascemos um dia, nascemos todo dia. Porque morreremos um dia, morremos cada dia, a todo instante. Viver, humanamente, consiste, assim, em libertar-se sempre de novo para este esforço de ser e de não-ser. Propiciando-nos as condições de possibilidade de viver, a mística se dá, como penhor, o penhor de todos os nossos empenhos e desempenhos. Nela, se concentra todo o desafio de nossa existência de seres finitos, de seres, i. é, que têm a graça de receber dos outros e do “Não Outro” as virtualidades de sua própria humanidade.

Nesse penhor, encontra-se a unidade da união do mundo com seu princípio, da criatura com o Criador. Trata-se da experiência primordial, uma experiência íntima, sem intermediários, entre Deus e o homem, nos próprios vãos e grotões de ser. É que toda experiência da unidade de uma união já supõe, a priori, separação, já inclui pluralidade, a parte ante. Por isso, o três é o número exordial, o número numerador de toda relação, a fonte de qualquer numeração. No três, temos, indissolúvel e consubstancialmente conjugados, o um, o dois, e a união do um com o dois. Três, nos diz Mestre Eckhart (LW IV, Sermo 29), não é a soma de um mais dois. O três é a integração viva, vital e circularmente simultânea da unidade de um + um + um. Unidade esta, que não sofre, mas viceja e se alegra com e na Trindade, pela difusão da bondade de sua união. É a fecundidade ontológica do bem: Bonum est diffusivum sui: o bem é difusivo de si mesmo. Não é o bem que é trino. É a Trindade que é o bem. Assim como se dá circulação da unidade na Trindade, assim também se dá circulação da Trindade na unidade. O Bem da unidade circula eterna e incriada, para dentro, na Trindade, e se comunica temporal e livre, para fora, na criação. É a unidade da Trindade que nos cria. Eckhart nos diz, junto com toda a experiência cristã: ad extra ex tribus: toda atividade para fora é criadora, vem e vive do três.

Para nós, pós-modernos de hoje, cada vez mais próteses da técnica e filhos da razão na ciência, trabalhados sorrateiramente por pulsões inconscientes e movidos por impulsos desconhecidos, o caminho mais longo e penoso é aquele que nos leva para o ser de nós mesmos, para o que nos é mais íntimo e profundo.Tão íntimo que nós o somos, sem, na maioria das vezes, nem sequer saber que não vem de nós. Santo Agostinho nos lembra, numa formulação lapidar:

Tu eras interior intimo meo et superior summo meo (Conf. III, 6): o mistério de

Deus é para mim mais íntimo que meu íntimo, o que Kant chamou de transcendental. O mistério de Deus está acima de tudo que me transcendente, o que, desde Platão, se diz ser “algo que, de longe, excede a essência das coisas, em poder e majestade” (Rep. VI, 509, b 9).

Em nossa caminhada pela vida, experimentamos muita coisa, procuramos em todo vestígio, buscamos sempre o melhor, antes de nos apercebermos da mística de toda experiência. É que, desde sempre, já somos sua propriedade e estamos em seus domínios. Somente muito raramente e de modo implícito, lhe

pressentimos a força de mistério, pois mística só se dá na medida em que se retira, só acontece enquanto foge e se retrai. Nem sabemos mesmo o que nos ocorre e se passa conosco. Assim, p. ex., num grande desespero da alma, quando todo peso desaparece da vida e se obscurece todo sentido, surge, então, a mística em nossa experiência. Talvez apenas insinuada numa retração tênue que vibra em profusão de sentimentos e bruxuleia numa confusão de percepções, para, logo, se esboroar. Numa grande esperança do coração, quando tudo se transfigura e nos parece atingir, pela primeira vez, como se fosse mais fácil perceber-lhe a ausência e o não-ser do que lhe sentir a presença e o ser, emerge e se apresenta, então, num toque misterioso, a mística da experiência. Numa depressão da vida, quando distamos, igualmente, de esperança e desespero e a banalidade de todo dia estende um vazio onde se nos afigura indiferente, se há ou não há experiência, a mística explode, então, no barulho de um silêncio angustiante. Em qualquer caso, a mística nunca se dá, nem no conteúdo, como um quê, aliquid, nem no processo, como um qua, i.,é, como aliquod, um modo de experiência.

Nas Confissões, Santo Agostinho se pergunta a si mesmo que é que eu amo, quando digo que amo a Deus? E a resposta é sempre: Eu não amo, mas, perdido no amor, eu sou amado pelo amor. Nós, raramente, nos damos conta de que não somos nós que amamos, quando amamos. É o amor que nos ama, nos leva e nos faz amar o que amamos. Esta, a vigência da mística em toda experiência. Tal é também a mística de Eckhart em Eckhart.

Realcemos, aqui e agora, o vigor de sua presença, deixando repercutir, em nosso esforço de pensar, alguns traços místicos de seus Sermões Alemães, cuja versão brasileira a Edusf e Editora Vozes acabam de lançar.

Na mística e para a mística de toda experiência, tudo que podemos fazer é não fazer, em todo nosso fazer. É deixar o fazer nos fazer. Eckhart denominou esta atitude de “deixar ser”, sein lassen, cuja força e poder de vigência ele chamou de

Gelassenheit, que, em português, poderíamos invocar com a atitude de

serenidade e\ou desapego, de disponibilidade e/ou desprendimento, de despojamento e\ou tranqüilidade. É, a partir e dentro dessa atitude, que, originariamente, sempre experimentamos o mundo, o homem, Deus, em nós mesmos e nos outros.

Mas como é que o homem, o mundo e Deus se dão e se apresentam no deixar ser místico de uma serenidade tranqüila e despojada, disponível e desprendida? Deixar, deixar de, deixar ser, que há de mais banal e corriqueiro na vida de todo dia do que uma atitude dessas?

A mãe diz para a criança arteira: deixa de brincar com fogo. O pai diz para a filha adolescente: deixa de cavilação. De quem entrou para o mosteiro, ou do anacoreta, que foi para o deserto, costuma-se dizer, que deixou o mundo. Nestes casos, deixar, lassen, é verbo transitivo, e significa renunciar, abandonar. Prevalece, então, o lado negativo do fenômeno de deixar, ao menos

aparentemente. Trata-se do aspecto mais claro e evidente, embora menos essencial e decisivo na experiência de deixar. Pois esta só se completa e conclui se, implícita ou explicitamente, se acrescentar ser, deixar ser, como no apelo que, muitas vezes, se faz a um adulto invasivo: deixa a criança ser criança. Não que o adulto possa impedir a criança de ser criança. É que o adulto se incomoda tanto com ele ser criança que tenta e busca não ser criança na criança.

Deixar ser remete não apenas para uma renúncia, mas para a vigência de ser e não ser, aquém de toda intervenção da parte do sujeito. A renúncia não vive primordialmente de rejeição, mas se alimenta de aceitar transformação. O lema de reformador de Eckhart é ontológico: tendo de reformar-se sempre, o homem deve transformar-se para não se deformar. A mística é, pois, a negação da negação – sem estardalhaço até mesmo no estardalhaço – mas, na serenidade tranqüila de deixar ser o ser que se dá no sendo que se é. Deixando ser, a serenidade se torna disponível e, nesta disponibilidade, se encontra com o mundo, com Deus, com o homem, justamente naquilo que eles mesmos são em si, para si e por si mesmos. Segundo Mestre Eckhart, na mística penetramos onde já sempre estamos, nos arcanos ônticos, ontológicos e místicos da serenidade, vivendo, como “a rosa, sem porquê”. Pois, então,, se vai abolindo o sentido transitivo e passivo e aparecendo o sentido criativo de deixar ser.

No deixar ser radical de Deus, homem e mundo, a pergunta “quem é que deixa ser quem?” é uma pergunta sem sentido. De vez que deixar ser inclui em si deixar de agir. Pois deixar ser já não é atividade de um sujeito sobre um objeto a partir do interesse de um poder. Tudo, portanto, se deixa ser, mas não há nada que pratique o deixar ser. Na raiz mística da experiência, é sempre o nada que reina em todo deixar ser. E, no nada, não somente se ultrapassa e supera toda negação pela negação, como, sobretudo, não há possibilidade alguma, nem de afirmar, nem de negar, nem de negar a negação. Reina radical desprendimento, puro despojamento, total disponibilidade. Ser livre de, a independência, e ser livre para, a criação, mergulham ambas e desaparecem na imensidão de uma tranqüilidade sem vontade, nem desejo de nada, sem imagem nem representação de coisa alguma. Eckhart diz, então, que vigora, completa e perfeita, “a limpidez da serenidade”, die Ledigkeit der Gelassenheit.

Na serenidade, toda experiência caminha sempre para inscrever-se nas peripécias e vicissitudes das ações e reações de nosso comportamento, tanto conosco mesmos, como com tudo o mais. Nesta caminhada, a serenidade atravessa três níveis, integrados, de busca de si mesma em si mesma: o nível ôntico, o nível ontológico e o nível místico. Todavia não se trata de três níveis separados que se excluíssem e distinguissem um do outro. São três níveis que se incluem e se identificam, em todo fazer e\ou deixar de fazer dos homens. Compreender e viver esta integração é compreender e viver a mística de Eckhart em Eckhart.

1º nível: O nível ôntico é o desprendimento com total desapego. Trata-se do despojamento da pobreza. Eckhart forja a palavra “abegescheidenheit” que, no alemão moderno, se diz Abgeschiedenheit. É uma palavra derivada, por

prefixação e sufixação, do verbo scheiden, cindir, dividir, separar. O prefixo, ab, designa clivagem, tanto no sentido de desfazer-se de alguma coisa, abetuon, como no sentido de afastar-se, desviar-se, abekere. O sufixo, heit, designa a condição, o estado e a atitude. No uso transitivo, o verbo, abscheiden, significa isolar, e, no uso intransitivo, ir-se embora, morrer. No alemão de hoje, o uso intransitivo significa, quase sempre, morrer. Assim o poeta Georg Trakl dedicou um famoso poema a um amigo morto com o título de: Gesang des

Abgeschiedenen: Canto do falecido. Eckhart consagrou todo um tratado a este

nível ôntico da experiência mística de serenidade, cujo título é precisamente:

Abgeschiedenheit, serenidade, desapego. Num sermão, intitulado In diebus suis placuit Deo et inventus est iustus (Ecl. 44,16), prega Eckhart: “Se o espírito

conhecesse a pura serenidade do desprendimento, já não se voltaria para nenhuma coisa, mas inclinar-se-ia e haveria de permanecer no completo desapego da serenidade”.

Tudo que somos em nossos afazeres é puro vir a ser vida em realizações. O desapego nos é dado na ordem e como ordem de todo relacionamento conosco e com os outros. Tal desprendimento de todas as coisas, porém, nem rejeita, nem nega, mas acolhe o ser de Deus em toda criação. Por isso o desprender-se não destrói nada, não rejeita coisa alguma, vem do nada e vai para o nada.

Muito bem! Todavia como é para se entender concretamente tanto despojamento? Um poeta japonês do século XVII (1644-1694), Tetsuo Bashô nos poderá valer. Ele compôs um famoso Haiku a partir de uma experiência ôntica da serenidade em quinze sílabas de um verso que o velho Suzuki trouxe para o Ocidente. O Haiku fala de Nazuna. Nazuna é uma pequenina flor silvestre que se encontra por toda parte no campo. Diz o verso, na citação de Suzuki:

Yoku mireba Nazuna hana saku Kakine kana

Suzuki traduziu:

“Quando olho atentamente, Vejo florir a nazuna,

Ao pé da sebe” (Zen-Budismo e Psicanálise, Cultrix,1960, p. 9).

A partir da mística de Eckhart, talvez se pudesse dizer num português tosco e desajeitado:

“No desapego do desprendimento, sou e não sou nazuna ao pé da sebe”.

Bashô é poeta e, como todo poeta, é místico dos seres da natureza. É tão desprovido de apego que se sente em uníssono com o ser da natureza e de tudo que é natural. Esta identificação da natureza com a natureza se avivou em Bashô quando descobriu uma pequenina flor, brilhando, sem vontade, nem desejo de nada, ao pé de uma velha sebe. O poeta sente o profundo mistério de a vida ser vida, no esplendor insignificante de uma flor silvestre. É um exemplo da

experiência de desapego e desprendimento da serenidade em que vive a mística de Eckhart.

No século XVII, alguém, na Silésia, fez a mesma experiência mística de Bashô. João Scheffler, Doctor philosophiae et medicinae, médico de profissão e místico de vocação, vivia na Silésia uma geração antes de Leibnitz (1624-1677). Estudioso de Mestre Eckhart, escreveu uma obra de poesia mística, publicada em 1657, com o título: Der Cherubinische Wandersmann. Sinnliche Beschreibung der

vier letzten Dinge: “O peregrino Querubim. Descrição sensível dos Novíssimos”, e

publicou, com o pseudônimo de Ângelus Silesius, o Mensageiro da Silésia. Os quatro Novíssimos são na experiência cristã: morte, juízo, inferno, paraíso. O número 289 dos poemas traz o título, Ohne Warum, “Sem porquê”. O verso diz:

Die Rose’ ist ohn’ warum. Sie blühet, weil sie blühet. Sie achtet nicht ihrer selbst. Fragt nicht, ob man sie siehet!

“A rosa é sem porquê. Floresce ao florescer. Não olha p’ra seu buquê. Nem pergunta se alguém a vê!”

O desapego do desprendimento, no entanto, não aparece por acaso, nem se dá, de quando em vez, nas peripécias de nossa experiência na e com a vida. É o vigor místico de todo ser. Por isso, ao despojar-se e para poder despojar-se, a serenidade remete para a fonte, donde ela mesma já vem, remete para o ontológico no próprio seio ôntico dos seres. É o segundo nível.

2º nível: A serenidade ontológica. Como todo bom Escolástico, Eckhart desenvolveu grande produção literária. Pretendia escrever uma obra monumental em três partes, OPUS TRIPARTITUM. A primeira parte seria o Opus

Propositionum, a Obra das Proposições. Desta parte só se encontrou até agora a

PRIMA PROPOSITIO: ESSE EST DEUS. A segunda parte seria o Opus

Quaestionum, a Obra das Questões. Desta parte ainda não se encontrou nenhum

manuscrito. A terceira parte seria o Opus Expositionum, a Obra das Exposições. Desta parte, dispõem-se de grandes comentários aos livros bíblicos do Gênese, do Êxodo e da Sabedoria e ao Quarto Evangelho, bem como de um grande comentário ao Padre Nosso, junto com esquemas de vários sermões em latim. Pois bem, no Prologus Generalis in Opus Tripartitum, Eckhart discute o ontológico de todo ôntico. Na Primeira Proposição, formula o primeiro integrante de toda sua mística, com três palavras apenas: ESSE EST DEUS, ser é Deus. É um dos integrantes fundamentais da mística eckhartiana. O outro integrante é o mesmo e reside na dinâmica inesgotável de realização que todo real recebe, continuamente, de Deus. Eckhart o desenvolveu numa interpretação mística do versículo 21 do capítulo 24 do livro deuterocanônico, Eclesiástico: Qui edunt me, adhuc esuriunt: “Aqueles que se nutrem de mim, ainda têm fome”. Eckhart resumiu toda a mística de qualquer experiência nesta fórmula pregnante: Omne ens edit Deum utpote

esse: Todo sendo, tudo que é e está sendo, se alimenta de Deus enquanto e na

medida em que é e está sendo, i.é, na medida de ser.

Sto. Tomás tinha dito antes de Eckhart: Deus est ipsum esse: “Deus é o próprio ser”. Eckhart inverteu a frase, que, invertida, trai e revela toda a profundidade ontológica do ôntico. Tudo que não é Deus não é. Esta distinção de ser e não ser deve-se compreendê-la estritamente, se não, não se compreende o ser de nenhum sendo. Ora, a forma mais estrita de compreensão é vivida e acontece sempre na identificação da identidade. Eu só compreendo, em profundidade, uma coisa quando me identifico e sou com ela. É a lição mística que nos deixou Parmênides e que está na base de toda e qualquer experiência de vida. Eckhart a expressou nas seguintes palavras: “Todas as criaturas são puro nada. Não digo que sejam insignificantes, pequenas, nulas, ou qualquer outra coisa assim. Elas são um puro nada”, acentua o Sermão, Omne datum optimum et omne donum

perfectum dersursum est: Todo dom ótimo e todo dado perfeito vem do alto (Tg

1,17). Entre o criado e o incriado, não há diferença, mas o abismo é total, o abismo do nada. Somente Deus é ser, toda criatura é um sendo que tem de receber o ser de Deus; é alhures, portanto, que lhe vem a vida, a inteligência ou qualquer outra possibilidade. Em si mesma é, pois, nada. Para a metafísica escolástica, a perfeição da criatura é, analogicamente, a mesma do Criador, variando, apenas, o modo de ser e dar-se, que é, radicalmente, diferente. A identidade de perfeição conota uma diversidade de apropriação, segundo a analogia de atribuição. Mas, aqui, Eckhart não concorda com toda a Escolástica, negando, completamente, a analogia de qualquer matiz, de atribuição, de predicamentação, ou de proporcionalidade. ESSE EST DEUS! Assim não há para Eckhart nenhum ser próprio do criado. Todo criado é um sendo, algo que é e está sendo, dentro de limites ontológicos. Toda criatura recebe o ser de empréstimo, ze

borge, como se expressa Eckhart, no Livro da divina consolação. É que uma

criatura se nutre do ser de Deus e por isso mesmo, quanto mais absorve, tanto mais carece de ser. Em qualquer sendo, o ser e todos os seus transcendentais não são senão Deus.

Uma das maneiras mais escondidas de se apresentar o vigor dessa tranqüilidade serena da mística está na radicalidade de todo perdão. Quem realmente perdoa em todo e qualquer perdão é sempre Deus. Nos atos de perdoar reverbera e repercute a presença de Deus. Em Deus, perdoar não é ato, é ser. Num pequeno ensaio, On cosmopolitism ad forgiveness (Toutledge, London & NY, 2001), Jacques Derrida fala de um paradoxo para a lógica e o bom senso: “parece-me necessário começar com o fato de que sim o imperdoável existe. Não é essa a única coisa a perdoar? A única coisa que requer perdão? Não se pode ou melhor não se deve perdoá-lo; só existe perdão, se existir e onde existir o imperdoável” (p. 30-33). Para a mística cristã em geral e de Eckhart, em especial, dá-se

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