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Prof. Dr. Reinholdo Aloysio Ullmann (Puc-RS)

Da multifacetada riqueza intelectual, escolhemos um tema de não somenos importância: Deus na mente de Nicolau de Cusa. Quatro são os aspectos a serem abordados:

1 A essência de Deus, 2 Deus e o mundo,

3 O conhecimento de Deus,

4 Lições que podemos colher do pensamento do Cusano.

1 A essência de Deus

À semelhança do neoplatonismo, no qual releva Plotino, com a exaltação do Uno, e inspirado em fontes platônicas, Nicolau de Cusa também ressaltou a figura excelsa do Uno que sinonimiza com Deus. Num de seus sermões, o Cusano afirmou que Platão não apenas sabia da existência de um único Deus, mas que também falava do lógos divino e que, assim, quase descobrira todo o Evangelho1

. Como para Proclo, assim, segundo o Cusano, Deus é o ipsum esse2

.

O Cusano não ignora que Deus não pode ser designado com nenhum nome. Mesmo que “Um” se lhe apresente como nome preferencial3

, sempre procurou por outros nomes, v. g., Non aliud4

, Possest, Posse, Posse ipsum.

Na criação, Deus se revela como potência atual que é sinônimo de Possest. Porém, este nome não basta ao Cusano para significar Deus. Ele é, então, deus

absconditus, que se revela como que visto nas trevas e se manifesta pela fé, amor

e esperança.

Deus não é compreensível. Por isso discorda o Cusano da sentença de Santo Anselmo: “Deus é o máximo que pode ser pensado”. Para o Cusano, Deus não é objeto. Releva, no entanto, por um lado, que Deus está além de todos os contrários, que é inconcebível, que é o absoluto, o não-outro (non-aliud) e, por

1

KANDLER, Karl-Hermann. Nikolaus von Kues – Denker zwischen Mittelalter und Neuzeit. 2. Auflage. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1977, p. 76.

2

Na Summa contra Gentiles, III, 19, o Aquinate também denomina Deus ipsum esse.

3

Unitas est igitur absoluta, cui nihil opponitur, ipsa absoluta maximitas quae est Deus benedictus (De docta ignorantia, I, 14).

4

O que significa que Deus é non aliud? Isso quer dizer que, sendo ele (Uno) tudo, a omniunidade (All-Einheit), nada se lhe pode opor (cf. SCHERER, Georg. Die Frage nach Gott – Philosophische Betrachtungen. Darmstadt: Primus Verlag, 2004, p. 54).

outro lado, que ele se revela, ao mesmo tempo, em Jesus Cristo, o qual é o auto- retrato de Deus. Por isso, Deus se dá a conhecer por meio de conceitos humanos ensinados por Jesus. Pelo pensamento simbólico, busca o homem superar a infinita distância que o separa de Deus. Em Deus, não há contradição. Tudo nele é unidade. Nele existe a coincidência dos opostos5

.

Não se deve entender essa coincidência de tudo em Deus como coincidência de tudo com Deus, sob pena de incidir em panteísmo. Aliás, como tal foi acoimado por Johannes Wenck, professor de teologia da Universidade de Heidelberg. Fortes e desrespeitosos são os termos por ele usados contra o Cusano: “Em seu ponto de vista, o Cusano é, sob o aspecto filosófico, um ignorante e, teologicamente, um pseudo-apóstolo do panteísmo”.

Wenck chega a afirmar, em seu libelo De ignota litteratura (1442-1443), que Nicolau de Cusa nega a redenção e que, ao fim e ao cabo, traveste, com um manto religioso, nada mais que um ateísmo. O adversário do Cusano foi mais longe, “Wenn besagter Magister der Docta ignorantia aller Gegensätzlichkeit zuvorkommen will, dann wird dort kein Widerspruch mehr sein (...). Mit einer derartigen Behauptung aber reisst er die Wurzel aller Wissenschaften aus (...). Wahrhaftig dieser Mann kümmert sich wenig um die Worte des Aristoteles” [= das principium contradictionis]6

.

Em fins do século XIX, M. Glossner, julgando-se no direito de falar, em nome da Igreja, verrinou as idéias do Cusano atinentemente à doutrina sobre Deus e à cristologia, de forma semelhante a Wenck. Eis suas palavras: “Assim como a Trindade, também a encarnação é explicada (pelo Cusano) racionalmente”7

.

A tais agressões e graves acusações Nicolau só respondeu, em 1449, com a obra

Apologia doctae ignorantiae. Por que tardou tanto a se defender? A razão está em

que o Cusano estava tranqüilo e em não ter tomado conhecimento antes das iníquas diatribes wenckianas.

Ainda quanto ao panteísmo do Cusano, Oswald Kroll utiliza sistematicamente o duplo vocabulário do Cusano explicatio e evolutio, chegando a escrever, com a restrição ut ita dicam e, após haver indicado, dessa vez, sem ambages, que, se a semente é simplesmente uma árvore complicada então o mundo é um Deus evoluído8

.

5

Apud HAUBST, Rudolf. Die Christologie des Nikolaus von Kues. Freiburg im Breisgau: Herder, 1956, p. 2.

6

STALLMACH, Josef. Ineinsfall des Gegensätzlichen. In: Concordia Discors, p. 133, nota 12.

7

HAUBST, op. cit., p. 5.

8

Cf. GANDILLAC, Maurice de. “Nicolas de Cues”, 1401-1464. In: Dictionnaire des Philosophes. Deuxième édition revue et augmentée. Paris: PUF, 1993, p. 85.

No Livro I do De docta ignorantia, Nicolau ensina que em Deus se dá a coincidência dos opostos, isto é, o Uno e o múltiplo se identificam na essência de Deus. Esse Deus é reconhecido por todos os povos. Jamais houve um povo (natio) que não adorasse Deus e não cresse nele como o absolutamente máximo9

. Esse absolutamente máximo, é, ao mesmo tempo, o mínimo; ambos coincidem. Daí a expressão coincidentia oppositorum.

Dessarte, “o máximo é o absolutamente uno, que é tudo”10 .

Em Deus o máximo e o mínimo coincidem, são idênticos. Esse saber torna-se o fundamento da Cristologia. Cristo é o máximo, o maior e o melhor na pequenez do homem. Cristo é a coincidência do máximo e do mínimo.

Da unidade Deus gera a unidade a qual constitui uma reprodução da unidade. Dessa unidade gera-se a igualdade e ambas estão entre si vinculadas11

. Reportando-se a Santo Agostinho, Nicolau denomina a unidade de Pai, a igualdade de Filho e a conexão entre os dois de Espírito Santo. A Trindade é unidade12

.

Para visualizar essa unidade, o Cusano valeu-se de sinais matemáticos. A unidade infinita ilustra-a com um triângulo infinito ou com uma esfera13

. Se houvera uma linha infinita, ela seria reta, triângulo, esfera e círculo. A linha finita é divisível, não a infinita. O círculo menor apresenta a menor curvatura14

.

Ademais, Deus é indivisível e imutável15. Para conhecer a Deus, mister é abstrair da participação dos entes finitos. Removida esta, sobra a entitas de tudo, que é a essência, conquanto pareça nada restar. Por essa razão, o Pseudo-Dionísio Areopagita assevera: “O conhecimento de Deus leva mais ao nada do que a

9

De docta ignorantia, I, 18.

10

“Maximum itaque absolutum unum est, quod est omnia” (De docta ignorantia I, 5).

11

De docta ignorantia, I, 24-26.

12

Em De doctrina christiana, I, 5, a águia de Hipona escreve: “In Patre unitas, in Filio aequalitas, in Spiritu Sancto unitatis aequalitatisque concordia. Et tria haec unum omnia propter Spiritum Sanctum”.

13

Cf. De docta ignorantia, I, 281.

14

O Cusano recorda o Pseudo-Dionísio Areopagita e o divino Platão (theios Pláton), que, como refere Calcídio no Fédon, disse que “o Uno é o modelo de todas as coisas, ou seja, a idéia como ela é em si. Considerando a multiplicidade das coisas, parece haver vários modelos” (De docta

ignorantia, I, 48).

15

O primeiro princípio é, para o filósofo Albino, árretos; innominabilis, para Apuleio; Numênio o denomina desconhecido para todos.

algo”16

. Nem mesmo os nomes conferidos a Deus na Escolástica expressam o que e quem é Deus. Por isso o Aquinate diz, com muita propriedade, que sabemos que Deus existe, não, porém, o que ele é. Plotino chama o Uno epékeina tês

ousías, isto é, o ser por excelência. Claramente deparamo-nos aqui com a

chamada teologia negativa, ou seja, o conhecimento apofático de Deus, o qual merece uma explicação mais profunda. Sabemos que Deus existe, mas ignoramos como ele é. Em outras palavras, a teologia negativa realça a transcendência de Deus. Pela imagem de um triângulo, como sabemos, o Cusano procura elucidar a sua idéia.

Mas como podemos, então, falar em conhecimento de Deus? Santo Tomás aponta as famosas cinco vias, as quais ele sempre remata dizendo: “E a este todos chamam Deus” (Et hunc omnes vocant Deum). Ele não conclui peremptoriamente: “Logo, existe Deus”. Tal conclusão originou-se nos séculos posteriores, não em último lugar em virtude do consenso dos povos.

Quem afirma poder compreendê-lo rebaixa Deus à realidade mundana. “O grande Dionísio Areopagita afirma que o conhecimento de Deus mais conduz ao nada do que a algo”17

.

Para a douta ignorância, o nada constitui o máximo incompreensível.

Acima da multiplicidade encontra-se Deus, unidade infinita, a qual a tudo antecede e tudo inclui18

. O conceito Uno não é suficiente para significar a essência de Deus, pois ele é inominável, inefável e incompreensível. Misturar Deus com a realidade finita é algo impossível. Paradoxalmente, nos reportamos a Deus, a partir de suas obras. Nelas é visto como em espelho19

. Por isso, quando nos referimos a Deus, de forma negativa, expressamos uma verdade positiva, ao passo que as afirmações positivas são de alcance insuficiente para dizer o que Deus é. A verdadeira realidade brilha na treva de nossa ignorância, como modo de não- compreensão. Esta é a douta ignorância que procuramos.

Em forma de oração, o Cusano escreve no capítulo XIII de A visão de Deus: “É, pois, necessário que o intelecto se torne ignorante e se coloque na sombra, se te (=Deus) quiser ver. Mas o que é, Deus meu, o intelecto e a ignorância senão a douta ignorância? Por isso não pode aproximar-se de ti, ó Deus, que és a

16

Cf. De docta ignorantia, I, 51.

17

“Et propterea magnus Dionysius dicit intellectum Dei magis accedere ad nihil quam ad aliquid” (De docta ignorantia, I, 51).

18

De coniecturis, 18.

19

“Videtur enim in artificiato qualis artifex est, ita in creaturis qualis Creator” (KREMER, Klaus.

infinitude senão aquele cujo intelecto está na ignorância, ou seja, aquele que sabe que te ignora”20

.

Visto o absoluto não poder não ser o absolutamente maior, “não pode ser mais nem menos”21.

O conceito de Deus como o maior não há que ser pensado quantitativamente. Nicolau procura um outro conceito de Deus no qual esteja contida a força criadora: é o elemento do poder (posse = verbo).

Depois de tratar do conhecimento apofático de Deus, o Cusano versa a respeito de sua providência. A ela nada logra subtrair-se. Aqui o Cusano introduz dois conceitos fundamentais: complicatio e explicatio22

.

Complicatio significa que em Deus tudo existe potencialmente, não formalmente.

As criaturas representam a realização dessas potências. Nada existe na criação que não tenha estado, antes, potentialiter na essência divina, causa exemplar de tudo. Pela só palavra – fiat – as coisas tornam-se ato. Aliás, a divindade egípcia PTAH também criou tudo pela só palavra. Assim como vem do Uno, tudo também tende a ele. Mas não se deve concebê-lo como pura possibilidade. Ele é puro Ser. Sobre a providência, a graça e a vida eterna encontram-se pensamentos belíssimos na já citada obra A visão de Deus.

Vale a pena transcrever alguns passos do livro em epígrafe. São verdadeiras preces de admiração e gratidão. “Pois tu, ser absoluto de tudo, estás com todos, como se não cuidasses de nenhum outro (…). Senhor, o teu ver é amar e assim como o teu olhar me contempla tão atentamente que jamais se desvia de mim, assim é também o teu amor (...). Tu não me abandonas, Senhor. De todos os lados me proteges, porque cuidas de mim com a máxima diligência. (...) Se retiras de mim os teus olhos, de modo nenhum subsistirei (...)”.

“Deste-me, Senhor, o ser e um ser tal que se pode tornar cada vez mais capaz de receber a tua bondade e a tua graça”23.

Vemos Deus no espelho das suas obras. Por isso ele é denominado a partir da criação. A contemplação leva ao amor e adoração do Criador. Nenhum nome é

20

NICOLAU DE CUSA. A visão de Deus. Tradução de João Maria André. 2.ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1998, p. 180.

21

De Docta ignorantia, I, 5.

22

“... l’auteur Cusain utilise abondamment le vocabulaire de l’explicatio. Contraposé à ceux de la

participatio, classiquement platonicien et de la contractio plus proprement cusain” (GANDILLAC,

Maurice de. Explicatio – complicatio. In: Concordia Discors, p. 82).

23

adequado a Deus, pois ele é o totalmente outro, como também dirá mais tarde Rudolf Otto, no sentido de non aliud. No entanto, todos querem nomear Deus para honrá-lo, chamando-o “luz inacessível, vida, verdade etc.”

Se lográssemos expressar o que Deus é, colocá-lo-íamos na finitude e praticaríamos idolatria. Porém, Deus é infinito e não se deixa confinar nos estreitos limites de nossa ignorância.

Somente na eternidade encontra-se a infinitude, origem sem origem. Melhor do que o nosso conhecimento catafático é o apofático. Esta é a douta ignorância que procuramos.

Reiteradamente, em seus sermões, Nicolau repete a idéia de que, em Deus, Trindade e Unidade são a mesma coisa.

Em De Possest, o Cusano apresenta a criação como auto-revelação de Deus. Visto ser Deus a potestas absoluta, ele é a potestas criativa. Em virtude disso, pode ele criar o homem à sua imagem e semelhança. Porém, só o Filho de Deus é a imagem, a igualdade perfeita do Pai. E mais. O não-ser constitui o pressuposto do ser, por ser Deus a potestas criativa. Por isso fala-se um creatio ex nihilo. Na obra De non aliud, Deus é dito o não-outro. O que significa isso? Por ser Deus a

complicatio de tudo, o mundo, a alteritas, não representa algo contrário, pois Deus

é tudo em tudo, não em sentido panteísta, mas panenteísta.

Para dirimir a dúvida quanto ao panteísmo que lhe foi assacado, Nicolau dá o seguinte exemplo:

O Sol no firmamento é um astro, mas não é Deus. Como, porém, é tudo e o Sol no céu se origina de uma idéia divina e deve ter, consoante seu poder-ser, sua origem na atualidade divina, o Sol em Deus é o próprio Deus. O que vemos é um astro no céu, mas o modelo desse Sol é o próprio Deus, porque ele realiza em si o Sol como idéia criativa. O exemplo aduzido mediante o Sol podemos aplicá-lo a todas as outras coisas. A árvore que vemos é uma árvore e não um Deus. Porém, em Deus é Deus. Sendo assim, é passível pensar que o Sol, a árvore, o mar, as plantas e os animais e todo o restante em Deus constituem uma unidade.

Sabidamente, o Cusano rejeitava a idéia de muitas idéias exemplares para explicar a multiplicidade das coisas neste mundo. Para o Cusano, não existe uma multiplicidade de protótipos à maneira do mundo das idéias de Platão. Por que não podem existir múltiplos protótipos em Deus? Por que ele é simples, infinito, por ser a essência das essências24

.

24

Reproduzimos o texto alemão que apresenta mais minudências: “Bekanntlich hat Cusanus die Annahme von mehreren Urbildern für die Vielheit in dieser Welt abgelehnt. Weder gibt es für ihn eine Vielheit von Urbildern im Sinne der platonischen Ideen noch enthält Gott eine Vielheit von Urbildern”. So schreibt er etwa in De visione Dei”: “Und weil Du (= Gott) das uneingeschränkt und einfachste Urbild bist, so bist Du nicht aus mehreren Urbildern zasammengesetzt. Du bist vielmehr das einfachste, unendliche Urbild, dass Du das wahrste und angemessenste Urbild von allem und von jedem einzelnen bist, das gestaltet werden kann. Und bist also die Wesenheit der

“Fora” de Deus não existe ser que não seja limitado e bem-definido. Em sua absolutidade, eles constituem uma forma indistinta, que é a Palavra de Deus. Essa original doutrina perpassa todos os escritos e sermões de Nicolau de Cusa. Faz- se mister ressaltar que essa visão não representa algo abstrato, geral, mas retrata a idéia de um Deus pessoal. Trata-se, aqui, de um Deus como conceptus

absolutus, como forma idealis de tudo quanto logra ser apreendido. Esse conceptus absolutus constitui o fundamento ontológico de tudo que pode ser

criado. Se assim é, ele está retratado (abgebildet) em tudo. O mundo é conceptus

ideae divinae artis25 .

No entanto,a relação do Possest com o dever-ser das coisas finitas não encerra um problema? Parece que sim, no sentido de o poder divino ser posto no mesmo nível do poder das criaturas. Para evitar qualquer mal-entendido, o Cusano cria novo nome para Deus, ou seja, non-aliud. Esse nome para Deus surgiu da oposição à realidade finita. No nível da realidade finita, todo ente finito opõe-se a outro ente finito. Assim, ele mesmo é o outro desse outro. A Deus isso não pode ser aplicado. Com palavras inequívocas, o Cusano assevera que “Deus não é outro do outro”26

.

Porém, o conceito de não-outro não há de ser tomado em sentido absoluto. Precisamente por ser não-outro, é que Deus representa a origem do ser. Tudo que é não-outro é-o por si.

Será que, designando Deus como não-outro, conserva-se o elemento dinâmico, o poder (Können) e, ao mesmo tempo, o Ser no Deus absconditus? Esse Deus

absconditus permanece de todo oculto aos homens? Não, pela analogia do ser,

conseguimos tanger de longe a Deus e conferir-lhe atributos, como: Deus é bom, justo, santo, providente etc. A esse conhecimento catafático opõe-se o apofático, o qual diz, de forma negativa, mais claramente o que Deus não é. No breve diálogo introdutório do De Deo abscondito, entre um pagão e um cristão, aquele pergunta: “Quem é o Deus que tu adoras?” Responde o cristão: “Não sei. Por não sabê-lo, eu adoro”. Com a resposta do cristão, fica clara a confissão da docta ignorantia. Pergunta o pagão: “Se Deus não é o nada, então é algo?” O cristão: “Não, em dizendo que ele é algo, ele se opõe a tudo”. Deus não é algo, mas é tudo. Ele é a fonte primigênia, o fundamento de todos os princípios do ser”. Isso significa que, no âmbito das criaturas, não pode ser encontrado nem Deus, nem seu nome. Esse Deus absconditus não se revela aos sábios deste mundo.

Wesenheiten, der Du allen eingeschränkten Wesenheiten gewährst das zu sein was sie sind” (KREMER, Klaus. Jede Frage über Gott setzt das Gefragte voraus. In: Concordia Discors..., p. 151- 152).

25

Podemos, assim, dizer com Jaspers: “Die coincidentia oppositorum ist eine Form des Nichtwissens (...). Die Grenze des Verstandes ist durch die coincidentia oppositorum bestimmt” (JASPERS, Karl. Nikolaus Cusanus. München, 1964, p. 26).

26

Em vários escritos, Nicolau deriva a palavra Deus (Theós) do verbo grego

theoreîn, que significa ver. E quem vê (conhece) a Deus, é deificado (deificatio).

Não erramos, pois, se dissermos que Deus só pode ser pensado como absoluto na coincidentia oppositorum.

O Cusano está convicto de que “a Deus não se pode dar um nome mais claro, verdadeiro e mais acessível do que não-outro”27

. Ao mesmo tempo, julga ter atingido a possibilidade extrema daquilo que o ser humano logra afirmar sobre Deus. No entanto, não contente com sua especulação, Nicolau pergunta se sobre a essência de Deus não é possível dizer algo mais. Vem-lhe, então, à mente Deus unitrino, o qual é compreendido como unidade, igualdade e relação. O Cusano empenha-se por explicar mais claramente a relação trinitária em seu dinamismo interior, falando no Pai, no Filho e no Espírito Santo.

2 Deus e o mundo

Em sua tentativa de captar Deus num conceito, Nicolau não oblitera a relação do não-outro com o mundo. Antes do mais, sempre chama atenção para o fato de que toda a realidade há que ser olhada à luz de Deus, pois “Deus é a causa criadora de tudo”28

.

O finito tem sua origem no infinito, mediante um ato criativo. A criação ex nihilo significa que Deus não recorre a matéria preexistente, nem tira algo de si. Ele é a

complicatio de tudo29.

Em outras palavras, Deus contém tudo potencialmente30

. Em tornando as coisas realidade ou ato, elas constituem a explicatio31

. Dada sua onipresença, Deus está no mundo e o mundo está em Deus. Em linguagem filosófica, isso se denomina 27 De apice theoriae, 366. 28 De venatione sapientiae, 26. 29

O verbo complicare, cujo sentido próprio é enrolar, com o significado anexo de embrulhar (para Cícero, uma complicata notio é uma idéia confusa) e com o sentido de complexare, do latim tardio, que, em geral, quer dizer abraçar, abranger, designa o fato de que, em Deus, existe um número infinito de seres possíveis, presentes ou futuros, reais apenas potencialmente. Deus não contém as coisas como uma caixa de Pandora ou uma cornucópia. Em Deus, o homem não difere do leão, nem o céu da terra. Por essa razão, não podemos designá-lo com um nome, pois ele é a universalidade das coisas.

30

“Deus est ergo omnia complicans in hoc quod omnia in eo. Est omnia explicans in hoc quod ipse

in omnibus” (In: Concordia Discors, p. 90, nota 31).

31

“Die geschaffenen Dinge sind Auseinanderfaltung (explicatio) des Schöpfergottes, die Vervielfältigung des Unum in der Sphäre der Andersheit (alteritas). Die Welt ist Theophanie, ist ein

deus explicitus, ein aus- einandergefalteter Gott” (MEFFERT, Ekkehard. Nikolaus von Kues. Sein

Lebensgang – Seine Lehre vom Geist. 2. Auflage. Stuttgart: Verlag Freies Geistesleben, 2001, p. 223).

panenteísmo. Dessarte, o mundo visível torna-se imagem do invisível. Aqui o Cusano repete o que diz São Paulo na Carta aos Romanos. Em outras palavras, o mundo constitui um reflexo do ser de Deus, isto é, manifestação de Deus invisível. Tudo deve ser visto analogicamente. No homem verifica-se, por excelência, a

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