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A memória como aspecto discursivo no processo de pesquisa

CAPÍTULO 4 – O PROCESSO DE PESQUISA

4.5. A Memória e as memórias: os aspectos sociais e discursivos no corpus

4.5.4. A memória como aspecto discursivo no processo de pesquisa

A memória como um aspecto discursivo se revela, primeiramente, na constatação de que no meio acadêmico, entre os mais de 80 títulos relacionados ao Museu da Língua Portuguesa, há uma quase “invisibilidade”32 do trabalho educativo realizado com dezenas

de milhares de visitantes. Lidar com esses discursos acadêmicos é parte de nosso processo. No Capítulo 2, na revisão bibliográfica, refletimos sobre essa situação.

Pela noção de vestígios/indícios (LOWENTHAL, 1998; GINSBURG, 1989) e pelas ferramentas da Análise do Discurso (POSSENTI, 2008 e 2009; MAINGUENEAU,1997), na leitura dos documentos procuramos observar o uso de algumas palavras que sirvam de indicador para a periodização.

Apenas como um exemplo de nosso processo em andamento, citamos a referência à metodologia da “descoberta orientada” (GRINSPUM, 2000; GRIDER; McCOY, 1998, ZILIOTTO, 2009), que foi o primeiro direcionamento dado ao Núcleo. A partir de um grupo de estudos realizado em 2010, houve o reconhecimento de que as práticas vigentes naquele ano se aproximavam mais do conceito de “experiência” (LARROSA, 2002; DEWEY, 2001; 1958), que foi bem mais desenvolvido no atendimento ao público espontâneo e em atividades paralelas a partir de então.

Outro exemplo seria o modo como as palavras “monitor”, “guia”, “mediador” e “educador” aparecem, pois também caracterizam diferentes épocas e entendimentos sobre as práticas, como vemos num trecho da dissertação de Ziliotto (2009) e nas passagens de dois depoimentos (de um educador e de uma educadora) a seguir:

[...] cabe ao setor [Educativo] o desenvolvimento de um plano básico de visita

orientada/monitorada ao público específico. O planejamento de uma visita monitorada, termo usual nesse contexto, tem início com (1) o acolhimento dos

visitantes para definição da edição do percurso de leitura. Definido o roteiro, (2) inicia-se o percurso, com objetivo de promover a integração do grupo com a exposição.

(ZILIOTTO, 2009: 51) – [grifo nosso]

32 À exceção de pesquisas pontuais, entre elas, Mafra (2012) e Silva (2017), nas quais o pesquisador

se dispôs a vivenciar a rotina do museu, a maioria das dissertações e teses sobre o museu se concentram apenas no acervo ou na expografia, sem considerar o Núcleo Educativo como um elemento significativo na relação do público com os conteúdos expostos.

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PESQUISADORA: Pode falar... Bom, a primeira coisa que eu queria saber de você é:

do que você se lembra da época em que você era educador? Você viu que o Educativo mudou muito ao longo do tempo – eu sei que você percebeu isso – mas como era no começo? Você entrou em 2006?

EDUCADOR: Em 2006, em junho de 2006.

PESQUISADORA: Certo. O que você lembra?

EDUCADOR: É muito diferente, né? Naquela época a gente brigava pra ter “Educador” escrito atrás das camisas... então, antes era “Monitor”. (risos) Esse era o nosso primeiro questionamento, por que ser Monitor e não Educador, essa era uma das nossas brigas, hoje parece uma coisa tão... (...) PESQUISADORA: E qual que era o argumento naquele momento? Da nomenclatura Educador e Monitor, quem estava lá achava...

EDUCADOR: É que Educador é totalmente diferente, você tem uma visita mais dialogada, enfim. A questão de Monitor era como se fosse qualquer outra coisa, Monitor de Parque, Monitor... Sei lá... de festas infantis (risos) ou o que quer que seja, mas não era Educador, que era o que a gente se propunha a fazer lá no momento. Então, eu lembro que essa foi [uma das] nossas primeiras brigas. [...]” (Entrevista E01 – vínculo de 2006 a 2017 – Artes) [grifo nosso]

[...] Eu não identifico uma orientação metodológica geral pra todo mundo, a gente tinha liberdade de conduzir, de desenvolver a visita guiada aos grupos de acordo com a nossa formação, de acordo com aquilo com que nos identificávamos mais, tanto no acervo temporário quanto no acervo permanente. Tudo era estudado na teoria, todo o conteúdo, mas na prática o educador sempre teve autonomia pra desenvolver a sua visita, a sua orientação para os grupos. [...]

(Entrevista E29 – vínculo de 2006 a 2007 – Letras) [grifo nosso]

Na primeira ocorrência, o fato de Ziliotto ter a cautela de indicar que “visita monitorada” era um “termo usual”, já é um indício de que havia em seu discurso alguma resistência a ele. Algo confirmado no discurso do segundo entrevistado, que opõe diretamente as palavras “monitor” e “educador”, e no texto da própria Ziliotto (na passagem a seguir) quando adota a palavra “educador” para uma visita chamada de “monitorada”. A terceira transcrição, de outra funcionária do mesmo período, revela uma nuance mais sutil dessa indefinição institucional pela expressão “visita guiada” (que se aproxima da noção de monitoria), mas também traz um impasse na declaração explícita de que “não havia uma orientação metodológica” – discurso que contrasta com uma referência de Ziliotto sobre a “descoberta orientada”:

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O tipo de aprendizagem esperada na visita monitorada é a descoberta orientada que dever ocorrer a partir da construção de uma vivência significativa para os visitantes-leitores. O educador, portanto, desenvolve o roteiro que melhor possa explorar as condições gerais apresentadas pelo grupo em acompanhamento para atingir a eficácia do processo.”

(ZILIOTTO, 2009: 52) [grifos da autora]

Sabemos que o processo exige que lidemos com nossa própria memória acerca desses fatos que também presenciamos, com o cuidado de relativizar nosso próprio discurso, como aponta Ricoeur (2014) ao refletir sobre “o si mesmo como outro”.

Consideramos, também, as reflexões de Amorim (2004: 19) sobre a abordagem dialógica do texto de pesquisa em Ciências Humanas, na qual o objeto tratado é ao mesmo tempo “texto já falado, objeto a ser falado e objeto falante”.

A partir desse tipo de ocorrência, entendemos que o tópico “memória” assume maior relevância nas “miudezas” do paradigma indiciário (GINSBURG, 1989), afinal, todos os documentos foram gerados em quadros sociais e condições de enunciação específicos. Esta contextualização das situações de interação discursiva, advertida inclusive por Lüdke e André (1986: 40-51) e Demo (2001), deve ser explicitada no que se refere ao nosso lugar de fala, pois, nas interações (entrevista, questionário, relatório etc.), nossa posição se desdobra em várias perspectivas. Há momentos em que, para nós e para o próprio entrevistado, assumimos outros papéis sociais além do de pesquisadora (pois somos também educadora, ex-funcionária, profissional de Letras, assistente de coordenação, “desafeto”, “amiga”, “colega” etc.). Nesse sentido, a problematização desses processos interacionais e suas consequências no discurso são de grande importância para a análise do corpus.

Esse tipo de situação pode ser apontado quando os entrevistados se autocorrigiam para evitar pronunciar o nome da coordenadora, substituindo-o pela expressão “a coordenação”(Entrevistas E10, E09, E34), ou quando uma ou outra pessoa que no cotidiano do trabalho costumavam ser expansivas e bem-humoradas desenvolvem seus discursos num tom extremamente formal (Entrevista E05). Mas mesmo nesses casos, houve um bom aproveitamento dos conteúdos explicitados nas entrevistas.

Esperamos que, de acordo com a tendência geral apontada por Lüdke (1985: 51), esses longos períodos (tanto o de nossa imersão, quanto o de nosso afastamento do MLP) tenham favorecido a acuidade das percepções sobre os tópicos analisados.

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Pelo fato de reconhecermos também que “a realidade pesquisada não pode ser reduzida aos discursos que os sujeitos pesquisados emitem a respeito dela” (GHEDIN, 2008: 124), procuramos garantir “depuração crítica, contextualização, identificação e diferenciação dos diversos aspectos dos discursos: a fala que esconde, a que denota, a que veio atender à expectativa do pesquisador, entre outras dificuldades”. Para isso, entre outros recursos, usamos da “triangulação das informações” (DENZIN apud LÜDKE, 1985: 52).

Assumimos que algumas anotações realizadas em observação direta durante nossa experiência profissional aproximam-nos do “modelo da interação” (CHAUCHAT, 1985) e estamos cientes de que elas exigirão o cuidado e o distanciamento da multirreferencialidade para reconhecer “valores implícitos ou não declarados” (GHEDIN, 2008: 41) que possam interferir nas interpretações. Daí, a opção de cotejar relatórios, questionários e entrevistas – sem esquecer de que eles também são situações interacionais discursivas complexas e diferentes entre si, especialmente no que se refere aos processos de reconstrução e adequação às convenções (BARTLETT,1977), aos enquadramentos sociais (HALBWACHS, 1990; VYGOSTKY, 1991 e 2010;), às tensões entre o eu e o outro e a consciência de si mesmo, que, afinal, ocorrem em relações nem sempre harmônicas (BOSI, 1994 e 2003; BRAGA; SMOLKA, 2010).

Portanto, se cada documento traz a reconstrução de um discurso sobre o que aconteceu (BARTLETT, 1977), ele também é marcado pelas relações sociais interpostas em cada situação (HALBWACHS, 1990) – e isso acontece da mesma forma conosco a cada etapa da pesquisa. Sabemos que o resultado de nosso trabalho tende à construção de um mosaico, uma rede de fragmentos circunscritos às limitações dos suportes (gravação, relatório, questionário, dissertação), pois vivenciamos nesse processo a mesma situação apontada por Bosi (1994: 39): “lembrança puxa lembrança e seria preciso um escutador infinito”.

Justamente por ter vivenciado o Museu da Língua Portuguesa, cujo fluxo de público chegava a mais de 30 mil pessoas por mês, atingindo mais de 1,9 milhão de pessoas nos primeiros três anos, acreditamos ter um olhar sensível sobre detalhes e conexões internos àquele contexto – mais um motivo pelo qual ressaltamos a importância de levar em conta nossas anotações pessoais, embora o ritmo do museu não nos tenha permitido à época uma “sistematização reflexiva” (CHAPOULIE, 1993).

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Por fim, neste exercício de aproximação e afastamento do olhar – ora como educadora, ora como pesquisadora que retoma o contato com os documentos após mais de 30 meses de afastamento – procuramos considerar os processos de socialização também presentes na relação com o público nesse ambiente de educação não escolar, apoiando-nos em autores como: Brougère e Bézille (2007); Gohn (2009); Marandino (2011; 2016) e Moura e Zucchetti (2014), entre outros.