• Nenhum resultado encontrado

1 A VISÃO NIETZSCHIANA DO JOGO DE FORÇAS: VONTADE DE POTÊNCIA,

1.4 A pequena política como conservação e proteção da memória

2.1.3 A memória da violência e o totalitarismo ideológico

É a partir do conceito de vita activa que Arendt inicia a sua obra ―A condição humana‖, na qual apresenta a trilogia de conceitos vinculados ao homem que estará presente em todos os seus escritos posteriores: labor, trabalho e ação. Ela considera cada um desses conceitos como se estivessem agindo desde os primórdios da história do homem, que marcaria todo o percurso da humanidade na Terra.

O primeiro conceito, o labor, é inerente à natureza do homem, pois se configura como sendo necessário à sobrevivência humana, próprio à vida. Nele estão presentes as condições naturais não ligadas à produção de bens de consumo, ao acúmulo de bens. Ele garante também a sobrevivência tanto do indivíduo como a das futuras gerações.

O trabalho, por sua vez, está diretamente ligado às condições sociais do homem e a sua inserção no mundo econômico, onde ele é gerado e mantido, o que leva a admitir que ―a condição humana do trabalho é a mundanidade.‖209 O fruto do trabalho, como se afirmava no mundo moderno, é sempre carregado de certa ilusão de perpetuidade do homem, pois é por meio do trabalho que ele irá conseguir progresso tanto na vida pessoal (prosperidade), quanto na sociedade (reconhecimento, projeção).

Em contrapartida, a ação é distinta do labor e do trabalho, pois ambos estão diretamente ligados às condições naturais e sociais, enquanto ela é parte integrante da

―condição humana da pluralidade‖210 e, portanto, da dimensão política inerente às relações entre os homens. A ação tem em si a certeza de que será lembrada na e pela história. Ela se constitui, portanto, como um campo profícuo e eficaz da memória social, pois marca não somente a vida do indivíduo, mas também a vida da própria sociedade.

Ao definir esses conceitos, Arendt se espelha nos processos naturais da existência:

208 ARENDT, OT, 1989, p. 167.

209 Idem, CH, 2005, p. 15.

210 Ibidem, p. 191.

nascimento e morte, natalidade e mortalidade. A ação tem um lugar privilegiado nesse contexto por apresentar o novo, tal como o nascimento211. Ao pensar a ação como uma atividade política criadora, admite-se igualmente que há algo a mais a ser construído em um mundo onde os homens são condicionados pela própria natureza. Arendt deixa claro no prólogo de sua obra ―Da condição humana‖ que, por sermos condicionados a uma realidade social, ela por si só exclui a possibilidade de se pensar que essa natureza poderia significar um

―aprisionamento‖ do homem.

O homem, segundo Arendt, tem a capacidade de ser imprevisível e criador, o que não permite pensar na possibilidade de uma definição objetiva e única para um princípio norteador da ―natureza humana‖. Assim surge uma relação recíproca entre os homens e as coisas como uma ação que se complementa uma a outra. A partir dessa perspectiva, de que não há uma definição fechada sobre a ação propriamente dita do homem, admite-se, de outra forma, uma submissão à sua condição social, ou seja, ―uma existência condicionada, a existência humana seria impossível sem as coisas, e estas seriam um amontoado de artigos incoerentes, um não-mundo, se esses artigos não fossem condicionantes da existência humana.‖212

A questão da vida ativa passa a ser entendida a partir dessas dimensões e se confronta (ou por vezes se completa) com a vida contemplativa, na qual o homem, destituído da ação, se refugia na própria quietude do pensar. Esse movimento, segundo Arendt, se manifesta principalmente em confronto com a tradição213 que privilegiou a vida contemplativa em detrimento da ativa. A proposta aqui é dar à vida um caráter eminentemente humano, ou seja, voltado às questões do mundo. Nessa dimensão de um homem voltado ao mundo, pode-se chegar a pensar que, mesmo condicionado às interações oriundas do convívio com os outros, a ação é a única ―que não pode sequer ser imaginada fora da sociedade dos homens [...]. Só a ação é prerrogativa exclusiva do homem; nem um animal nem um deus é capaz de ação.‖214

Desta prerrogativa presente na vida ativa, o homem se lança à política, organizadora

211 ―[...] das três atividades, a ação é a mais intimamente relacionada com a condição humana da natalidade; o novo começo inerente a cada nascimento pode fazer-se sentir no mundo somente porque o recém-chegado possui a capacidade de iniciar algo novo, isto é, de agir. Neste sentido de iniciativa, todas as atividades humanas possuem um elemento de ação e, portanto, de natalidade.‖ (ARENDT, CH, 2005, p. 17).

212 Ibidem, p. 17.

213 Segundo Arendt (op. cit., p. 2): ―Isto não significa que eu deseje contestar ou até discutir o conceito tradicional de verdade como revelação e, portanto, como algo essencialmente dado ao homem, ou que prefira a asserção pragmática da era moderna de que o homem só pode conhecer aquilo que ele mesmo faz. Afirmo simplesmente que o enorme valor da contemplação na hierarquia tradicional obscureceu as diferenças e manifestações no âmbito da própria vita activa e que, a despeito das aparências, esta condição não foi essencialmente alterada pelo moderno rompimento com a tradição nem pela eventual inversão na ordem hierárquica em Marx e Nietzsche.‖ (Grifo nosso).

214 Ibidem, p. 31.

e ao mesmo tempo responsável pelo convívio social. Nela, o passado e o futuro se encontram e, com isso, a memória se estabelece na raiz de um presente único e com possibilidades de ação. Essa possibilidade de ação é capaz de romper com o que é previsível e se constitui como um espaço de liberdade e, ao mesmo tempo, de violência, pois ambos se situam no espaço social da relação entre a dimensão privada (onde se dá a liberdade) e no espaço público (onde se revela a violência).

Estabelecida essa trilogia, e encontrando nela os princípios que irão constituir o fluxo de movimento da vida do homem, é possível analisar os impactos políticos gerados quando da intensificação de uma das forças sobre o agir humano. Essa análise foi aprofundada de maneira indireta por Arendt, no capítulo intitulado ―Ideologia e Terror‖, presente em ―Origens do totalitarismo‖. Nessa obra, a autora inicia o que irá tratar mais detalhadamente em ―Da condição humana‖, o espaço púbico, onde se instaura a política e o governo, e o espaço privado. O campo da legalidade, palco privilegiado do espaço público, acaba por regular as ações do homem em sua vida privada. Segundo afirma Amiel, ―há sempre um hiato entre a generalidade necessária da lei e a individualidade dos seres ou dos casos que lhe são submetidos.‖215

Por conta deste hiato, é possível prever a instalação de mecanismos de violência, por onde se instaura o totalitarismo216: o medo, a angústia e, consequentemente, o isolamento.

Interligados, eles fragilizam o jogo natural de forças e permitem a ascensão do domínio e poder totalitário sob a alegação de estarem resolvendo as tensões entre legitimidade e legalidade, público e privado. Uma vez instaurados, eles se perdem no próprio domínio e acabam por fragilizar os homens, tornando-os apolíticos e, portanto, inaptos à ação. O totalitarismo acaba por estabelecer uma memória da destruição dos espaços entre os homens.

Ao desconstruir o espaço de ação do entre os homens, conforme afirma Amiel, ―é necessário substituir a vontade humana de agir pela necessidade de penetrar a lei de movimento, de preparar cada um para o papel de vítima e de verdugo. O equivalente ao princípio de ação quando a ação erradicada é a ideologia.‖217 Para Arendt, a ideologia se refere única e exclusivamente ao seu valor conceitual, ou seja, a lógica de uma ideia: ―uma forma de governo cuja essência é o terror e cujo princípio de ação é a lógica do pensamento

215 AMIEL, Anne. Hannah Arendt: política e acontecimento. Tradução de Sofia Mota. Lisboa: Instituto Piaget, 1996, p. 59.

216 ―Totalitarismo‖ é um conceito que foi apresentado primeiramente em 1920 para descrever o caráter aparentemente único do regime fascista italiano. Esse conceito foi rapidamente adotado pelos nacional-socialistas como uma autêntica caracterização de uma nova forma de política que rejeitou a velha distinção liberal entre público e privado em favor da ―política total‖.

217 Ibidem, p. 42.

ideológico.‖218 O que está implícito nesse conceito é o movimento que ele produz, enquanto processo e dinamismo que surge das ações internas sem confrontação com o exterior. Por isso mesmo, há uma propensão de atuação totalitária nesse movimento ideológico, pois há sempre o perigo de, ao se confrontar com o exterior, o homem fazer valer a sua pretensão de tudo saber, conhecer e explicar a realidade. Segundo Vicente, ―o totalitarismo liberta-se da pluralidade, ao exigir a unanimidade e não tolerar nenhum tipo de debate de opiniões.‖219 Ao

―se libertar da pluralidade‖ está instaurada a violência.

Arendt, como se analisará posteriormente, entende que a violência é instrumental e está ligada – muitas vezes confundida e atrelada – à dinâmica do poder. Instaurada na memória e construída em um espaço social marcado pela experiência de uma ação ideológica que tem o Estado como catalisador das vontades individuais, a política se configura como sendo apenas a relação entre quem manda e quem obedece. Dessa forma, para a filósofa:

A tomada do poder através dos instrumentos de violência nunca é um fim em si, mas apenas um meio para um fim, e a tomada do poder em qualquer país é uma etapa transitória e nunca o fim do movimento. O fim prático do movimento é amoldar à sua estrutura o maior número possível de pessoas, acioná-las e mantê-las em ação: um objetivo político que constitua a finalidade do movimento totalitário simplesmente não existe.220

A partir desse imbricado jogo de forças entre o poder e violência, tornam-se necessários autoridade e vigor, liberdade e ação, perceber como se configura a política e de que forma ela se estabelece na relação do entre os homens. Este é um movimento ininterrupto, não linear e, por isso, imprevisível.