• Nenhum resultado encontrado

3 OS INTERSTÍCIOS DA MEMÓRIA SOCIAL E SUAS INFLUÊNCIAS NA

3.3 O novo agon e o sentido da nova política

3.3.2 As fronteiras da violência como memória e do distanciamento trágico

Arendt afirma que o totalitarismo se instaura quando as massas predominam e o indivíduo desaparece. Ao se deixarem conduzir as massas acabam por acreditar na presença

427 Na interpretação de José Nicolau Julião, Nietzsche ―não poupa críticas quando fala sobre o Estado moderno, pois, segundo ele, esse é uma degradação do Estado antigo, cuja criação se deu de uma casta de fortes guerreiros.‖ (Considerações sobre o aristocrático e o estado em Nietzsche. Ethica, Rio de Janeiro, v. 9, p. 109-118, 2002, p. 112).

428 NIETZSCHE, 2008, p. 75 (AFZ, Do novo ídolo).

429 JULIÃO, op. cit., p. 112.

430 Para corroborar com esse posicionamento, Ernani Chaves afirma que ―tanto nas ‗Conferências‘ como nas Considerações Extemporâneas, a ideia central de Nietzsche é a de que é o Estado que deve servir à cultura, tal como no ‗estado grego‘.‖ (Cultura e política: o jovem Nietzsche e Jakob Burckhardt. Cadernos Nietzsche, São Paulo, v. 9, p. 41-66, 2000, p. 51, grifo do autor).

de um líder que supostamente será capaz de ordenar e mostrar o caminho salvífico para a vida. Nas massas, não há questionamento e nem ação, só submissão e aceitação. O homem da massa anula-se a si próprio em favor dos outros, de um coletivo. O outro, por sua vez, se permite, em muitas situações, anular-se e deixar-se conduzir. Na indiferenciação social imposta às massas, não há singularidades nem pluralidade, mas uma única ―entidade‖ coletiva e amorfa que domina todas as vontades.

A política, entendida sob essa forma, é só memória estagnada, tradição e imposição violenta contra as vontades individuais. Não há o que se construir e nem o que se criar. Pode-se, inclusive, imaginar que para haver mudança é necessário surgir o novo, porém a novidade só será efetivada se for incorporada, portanto, tornada corpo às estruturas adaptadas do Estado, como aconteceu ao longo de toda a história. Sendo assim, o novo só é novo porque é pensado e aceito pelo Estado e não somente pela força ou desejo do indivíduo. Há, nesse sentido, uma estrita relação entre o poder e a força desempenhada e instrumentalizada pelo Estado, caracterizando uma forma eficaz de domínio sobre os indivíduos. No entender de Arendt: ―poder, força, autoridade, violência – nada mais são do que palavras a indicar os meios pelos quais o homem governa o homem; são elas consideradas sinônimas por terem a mesma função.‖431

Ao igualar poder, força, autoridade e violência enquanto desempenho de uma função que institui o domínio de um homem sobre os outros, Arendt acaba propiciando um debate sobre a instauração da política em toda sua dimensão social: da violência à instauração da ordem. No que tange à violência, como abordado anteriormente, ela tem a função de instaurar o poder e dele se afastar quando a ordem for estabelecida. A ordem seria a última e primeira instância de uma construção que se configura como ideal ao Estado, cuja função principal seria de garantir a segurança, proteção e realização dos indivíduos. O poder e a violência acabam por definir uma linha fronteiriça necessária e temerosa para estabelecer tal propósito.

Arendt percebeu na leitura da tradição, que originou o pensamento político ocidental, ―a trágica equação entre os fenômenos do poder e da violência‖432 de onde derivam a dominação, a submissão e a obediência.

Por outro lado, em uma interpretação nietzschiana, pode-se aferir que poder, força, autoridade e violência se concretizam na ação de um indivíduo capaz de reunir em si mesmo todos esses atributos e, assim, usufruir o domínio de um sobre todos. A violência é instaurada como um impulso nascido do jogo de forças presente nos indivíduos singulares e que se

431 Idem, SV, 2009, p. 60, grifo nosso.

432 DUARTE, 2000, p. 239.

configura na criação de novos valores para além da imposição da tradição de uma ordem pré-estabelecida.

O jovem Nietzsche, na obra ―O nascimento da tragédia‖, encontrou na Grécia pré-socrática a possibilidade de vislumbrar a vitalidade dos indivíduos em sua singularidade, sendo estes fortes e aptos para criação de novos valores e, portanto, de estabelecer uma cultura forte e saudável. Ao mesmo tempo, constata a ruptura dessa civilização com a chegada de Sócrates, conforme afirma Kellner:

[...] a cultura socrática revisou aquilo que Nietzsche via como sendo a visão pré-socrática do sofrimento, profunda e trágica, e propôs a redenção através da cultura pelo otimismo, que defendia a razão como sendo a descobridora da verdade e a criadora do bem viver.433

A partir da proposta de concretizar uma cultura capaz de romper as configurações do poder e, ao mesmo tempo, estabelecer um novo começo, ambos os autores, com percepções peculiares, recorrem à fundação da pólis grega, especificamente, ao período homérico quando o espaço agonístico é instaurado e tornado lugar de memória das grandes disputas políticas. O herói é agora revisitado, lembrado e imitado sempre pelos seus grandes feitos em favor da pólis. Esta, por sua vez, encontra a oportunidade de transferir para fora de seus ―muros‖, o campo de batalha – espaço próprio dos atos heroicos –, pois a violência em seu interior significaria sua autodestruição. Por outro lado, o campo discursivo da política434 encontra eco na pólis, onde o indivíduo sai de seu anonimato e se torna visível e apto para efetivação de uma ação capaz de afirmar a vida.

Esta afirmação não se efetiva sem que haja uma intencionalidade, mesmo que individual, de propor e, em alguns casos, impor à coletividade uma nova percepção de mundo.

O discurso e a ação no interior dessa pólis inaugura um campo de disputa pelo poder que, se transferido para a esfera política das relações, faz surgir a imagem de governantes e governados. Essa forma de domínio de um homem sobre os demais explicaria e justificaria o uso da violência.

Para Arendt, diferentemente de como acredita Nietzsche, a violência é um

433 KELLNER, Douglas. A crítica de Nietzsche à cultura de massa. Revista Famecos, Porto Alegre, v. 13, p. 12-22, dez. 2000, p. 15, grifo nosso. Complementa o autor: ―Para Nietzsche, o triunfo do homem teórico socrático criou as origens do racionalismo moderno e do otimismo iluminista, possibilitando o avanço rumo ao Esclarecimento.‖ (Ibidem, p. 15).

434 Na interpretação de Duarte (2000, p. 233), ―a ‗coragem‘ que Arendt exige do ‗herói‘ político e que considera uma das ‗virtudes políticas cardeais‘ não tem a ver, necessariamente, com a atitude nobre de quem coloca a própria vida em risco, mas se refere, antes, à disponibilidade do agente de abandonar a segurança do ‗espaço privado‘ para tomar uma iniciativa no mundo público, iniciando algo novo cujas implicações não podem ser conhecidas de antemão, bem como se refere ainda à sua disponibilidade para revelar algo de si aos outros sem que possa controlar tal revelação.‖

instrumento de instauração do poder, que não pressupõe a chegada de um ―herói‖ isolado capaz de ordenar e submeter a vontade de todos ao seu mando e propósito. Isso significa afirmar que a memória dos heróis não se realiza no campo de batalha onde surgiu, apareceu e se destacou sem que, necessariamente, os outros com ele aí estivessem. Ele se formou herói pelo consentimento de todos e deve permanecer na companhia deles sempre que for necessário proclamar e executar uma ordem.

Arendt exclui, portanto, a possibilidade de surgir um herói que se configure como um

―homem forte‖ que, na interpretação de Nietzsche, é a expressão da ―cultura superior‖, daquele que será capaz de transvalorar todos os valores. Por isso, Nietzsche valoriza o agon grego, por ser a arena de uma disputa que não exclui a violência e tampouco a crueldade:

nessa disputa surgem esses heróis que se destacam no meio da multidão. Na interpretação de Schriff, ―Nietzsche admitia que, a fim de preservar a liberdade da dominação, deve-se estar comprometido a manter a instituição do agon como espaço público para a competição aberta.‖435 Para o autor de ―Além do bem e do mal‖, se há algo que pode ser considerado como ordenador da sociedade, esse papel é próprio do homem superior, que seria capaz de estabelecer um ―pathos da distância [...] desejoso sempre de aumentar a distância no interior da própria alma [...] em suma a elevação do tipo ‗homem‘.‖436

Arendt, por sua vez, critica tal posicionamento, pois oriundo desse pathos da distância surgiram indivíduos isolados que excluem, imediatamente, os espaços públicos do debate capaz de romper e destruir esse mesmo poder. O jogo estabelecido por esses ―homens fortes‖ faz concentrar neles todo o poder e, consequentemente, a ideia disseminada entre os outros, de que todo e qualquer resultado da ação só será possível porque está concentrada nos impulsos e na vontade, exclusiva, de quem está à frente do comando da pólis. Segundo Arendt, anulando-se as diferenças, uniformizam-se os comportamentos e as ações dos indivíduos:

[...] a história está repleta de exemplos da impotência do homem forte e superior que é incapaz de angariar o auxílio ou a cooperação de seus semelhantes atribuído à fatal inferioridade da multidão e ao ressentimento que os homens eminentes inspiram aos medíocres.437

A questão posta, por ambos os filósofos – sobre a existência de um agon que configura um espaço de livre posicionamento e participação dos indivíduos e, ao mesmo tempo, suas divergências sobre o poder que decorre das disputas no interior desta polis – faz

435 SCHRIFT, 1999, p. 14.

436 NIETZSCHE, 2010, p. 153, grifo do autor (ABM, O que é Nobre, 257).

437 ARENDT, CH, 2005, p. 234.

surgir uma fronteira entre a violência (natural e instrumental) e a memória (perpetuação e lembrança). Nesta fronteira é possível instaurar um distanciamento trágico que, em uma configuração interpretativa distinta, pode aproximar os dois autores e deles exaurir as bases argumentativas que fundamentam as suas matrizes peculiares no que tange à questão política.

A percepção trágica está relacionada à intensidade de forças presente na dinâmica da vida onde não se tem a pretensão de avaliar ou medir o quanto isso é bom ou ruim para o indivíduo. Nesse sentido, a lembrança se configura como uma espécie de fronteira protetora da memória que não quer esse tipo afirmativo trágico e, portanto, se serve da violência para instrumentalizar e coibir o esquecimento.

Em uma conferência proferida em 1968, por conta do simpósio da American Philosophical, cuja temática principal foi intitulada ―Responsabilidade coletiva‖, Arendt iniciou sua fala a partir de um trabalho de Feinberg, em que ele teria afirmado: ―A responsabilidade coletiva é um caso especial de responsabilidade vicária, e não pode haver culpa vicária.‖438 A questão posta levanta a suspeita de Arendt de que há uma culpa da qual não participamos, mas mesmo assim há algo que impõe uma responsabilidade sobre nossas ações. Esse sentimento inapropriado é reafirmado quando instaurado na memória, principalmente em sua relação com o totalitarismo, como alerta a filósofa: ―ao que o regime de Hitler fizera com os judeus, o grito de ‗Somos todos culpados‘, que a princípio soou muito nobre e atraente, serviu de fato apenas para desculpar num grau considerável aqueles que eram realmente culpados.‖439

A memória da culpa, também denunciada por Nietzsche, age sobre os homens e serve de justificativa para toda e qualquer ação que saia do controle político da sociedade.

Nesse caso, há uma culpa coletiva a que todos estão sujeitos por fazerem parte de uma sociedade. Assim, Arendt e Nietzsche parecem concordar na crítica a essa culpa de ordem moral, instituída para controlar os indivíduos em sociedade. Para Arendt, essa situação leva ao despertar da compaixão e da solidariedade, como forma de amenizar a culpa. Com relação a isso, Arendt traz a seguinte definição:

Chamamos compaixão ao que sinto quando outra pessoa sofre; e esse sentimento só é autêntico se percebo que, afinal, não sou eu, mas outra pessoa que sofre. Mas é verdade, creio eu, que a ―solidariedade é uma condição necessária‖ para essas emoções; o que, no nosso caso de sentimentos de culpa coletiva, significaria que o grito: ―Somos todos

438 FREIBERG apud ARENDT, RJ, 2004, p. 213.

439 Idem, RJ, 2004, p. 214.

culpados‖ é realmente uma declaração de solidariedade com os malfeitores.440

Como o foco interpretativo de Arendt é especificamente político, ela percebe que a introdução de princípios morais na esfera pública representaria uma forma de anulação das diferenças e, principalmente, na homogeneização das ações. No que se refere à questão de se atribuir uma culpa coletiva à humanidade, poderia significar que todos seriam julgados da mesma forma, ou seja, em princípios fundados em uma moral que se tornaria, em igual medida, legal. Arendt é incisiva em sua análise, ao considerar a existência de um conflito entre ―responsabilidade política‖ (coletiva), ―culpa moral e/ou legal‖ (pessoal), às

―considerações morais e políticas e os padrões morais e políticos‖441.

Esse conflito apontado pela filósofa e levado, por um lado, à arena da esfera pública remete à pólis originária grega que valorizava a participação efetiva do indivíduo no mundo, ou seja, seu envolvimento ativo na res pública e, por outro lado, à esfera privada, matriz de uma moral judaico-cristã que afastou o mundo do indivíduo. Ao usar a citação atribuída a Tertuliano, ―nada é mais alheio a nós do que aquilo que tem importância pública‖442, Arendt denuncia a impropriedade dos padrões e prescrições morais validadas pela sociedade contemporânea. E conclui: ―No centro das considerações morais da conduta humana está o eu; no centro das considerações políticas da conduta está o mundo.‖443

No cerne dessa questão política, a moral exerce um papel importante, que para Nietzsche, em outra perspectiva, representaria o aprisionamento do indivíduo singular, próprio do instinto do rebanho. Essa moral imposta violentamente na sociedade acaba por instituir padrões de comportamento que anulam as diferenças e uniformizam a ação. A denúncia enfática nietzschiana o leva a afirmar que ―não existem fenômenos morais, apenas uma interpretação moral dos fenômenos.‖444 Dessa forma, impõe-se na sociedade uma validade moral que parametriza, formata e cerceia as ações humanas. No aforismo 32 de

―Além do bem e do mal‖, Nietzsche descreve o percurso histórico em que se constituiu a moral e, principalmente, a abrupta passagem entre a pré-moral, em que ―não se considerava a ação em si nem a sua origem, mas era a força retroativa do sucesso ou do fracasso que levava os homens a pensar bem ou mal de uma ação‖, e a denominada moral, por ―acreditar que o

440 ARENDT, 2004, RJ, p. 214. Nesse sentido, Nietzsche (2010, p. 156 – ABM, O que é nobre, 260) interpreta esses sentimentos que estão presentes ―também no homem nobre que ajuda o infeliz, mas não ou quase não por compaixão, antes por um ímpeto gerado pela abundância de poder.‖

441 ARENDT, VE, 2010, p. 218.

442 TERTULIANO apud ARENDT, op. cit., p. 219.

443 ARENDT, op. cit., p. 220.

444 NIETZSCHE, op. cit., p. 66 (ABM, Máximas e interlúdios, 108).

valor de uma ação reside no valor de sua intenção‖. Ele conclui esse aforismo, propondo uma terceira fase: a extramoral, na qual ―o valor decisivo de uma ação está justamente naquilo que nela é não-intencional.‖445 Ao seguir essa linha interpretativa, Nietzsche aprofunda o sentido da implantação violenta desses padrões morais impostos à sociedade.

Em ―Genealogia da moral‖, o filósofo redige uma aguda análise sobre como se impôs violentamente uma memória social capaz de apaziguar os instintos criativos e singulares do indivíduo. Em função da coletividade vive o indivíduo que precisa constantemente se lembrar, principalmente, de onde surgiram as regras morais e, ao atingir tal compreensão, ele obedece e transmite às futuras gerações essa mesma norma. Para que isso se concretize, é necessário imputar-lhe a culpa que, instrumentalizada pelo castigo, não o permite esquecer, uma vez que ―teria o valor de despertar no culpado o sentimento de culpa, nele se vê o verdadeiro instrumentum dessa reação psíquica chamada ‗má consciência‘,

‗remorso‘.‖446 Essa forma violenta de conceber a imposição da memória reinstaura a lógica perversa da luta constante entre os chamados, ―bons‖ e ―maus‖, ―fracos‖ e ―fortes‖. Para Marton, ―o fraco só consegue afirmar-se negando a quem não se pode igualar. Negação e oposição: essa é a lógica da moral do ressentimento.‖447

Se as inquietações teóricas nietzschianas não estão centradas, especificamente, na questão política, como o caso de Arendt, a resposta à imposição moral encontra eco no seu questionamento à fragilização estética e criadora dos indivíduos. A submissão é uma forma de aniquilamento das forças, tanto na esfera política como na estética, o que representaria a anulação dos espaços da diversidade, criação e participação efetiva na pólis. Esse jogo instaurado na arena política tem influência na memória social que se configura na construção de um mundo fechado, aniquilador da luta, do imprevisível, paralisando toda e qualquer forma de criação448.

Ao pensar a violência imposta à memória, pode-se novamente recorrer ao agon grego (relevante na interpretação única de ambos os autores), e admitir que nesse espaço de luta não se quer instaurar uma forma de aniquilamento da civilização, mas o domínio, pois se não há adversário, desaparece o espaço das disputas. As menções aos poetas gregos feitas por ambos os autores, mesmo em perspectivas distintas de interpretação, faz revigorar a ideia de que os

445 NIETZSCHE, 2010, p. 36, grifo do autor (ABM, O Espírito livre, 32).

446 Idem, 2007, p.70, grifo do autor (GM, II, 14).

447 MARTON, 1990, p. 73.

448 Para Rosa Dias (2009, s/p): ―É contra esse tipo de pensamento, que mumifica a vida, que faz da vida expressão do instinto de conservação, que Nietzsche introduz a sua concepção de vontade criadora. A novidade desse pensamento está em fazer frente a um tipo predominante de pensar que ruidosamente exibe os grilhões do passado através dos tempos e paralisa o futuro no passado. A vontade criadora se constitui numa relação essencial com o tempo: o tempo é a única via do criador.‖

fatos e acontecimentos da pólis são constantemente visitados pela civilização ocidental. Pode-se detectar essa ótica tanto em Nietzsche, ao afirmar que ―a crença dos atenienPode-ses, que na época de Péricles se faz notar pela primeira vez, a crença dos americanos de hoje, que tende cada vez mais a tornar-se europeia‖449, como em Arendt, em seu escrito intitulado ―A solução grega‖, ao se referir à ―Oração fúnebre‖ de Péricles: ―a pólis era uma garantia aos que haviam convertido mares e terras [...] e podiam estabelecer, juntos, a memória eterna de suas ações, boas ou más, e de inspirar a admiração dos contemporâneos e da posteridade.‖450

Desse modo, é possível entender o quanto a memória e a rememoração do passado, mesmo que de forma singular, tendem a exercer um papel importante nos escritos de ambos os autores. Eles acabam por aceitar as tensões próprias geradas pela diversidade do imprevisível, que para Arendt se concretizaria na pluralidade, momento em que as forças se encontram e desejam mais força na perspectiva nietzschiana. Memória e violência se organizam em momentos distintos, ora para impor e instaurar uma nova ordem, ora para destruí-la e reconstruí-la.

Constatado o dinâmico movimento instaurado na sociedade, defende-se, neste momento, que há um intervalo nesse jogo de forças organizado entre a memória e a lembrança: o esquecimento como um distanciamento trágico. No campo discursivo da memória social, o esquecimento se configura como um elo agonístico para ambos os autores, que embora desempenhando forças opostas, acabam por incluí-lo na intensa luta afirmativa de vida presente no indivíduo e ratificada pela sociedade. Ao iniciar esse processo de busca de significado para o esquecimento, enquanto um distanciamento trágico que se instaura no intervalo entre a memória e a lembrança, encontra-se em ―Além do bem e do mal‖ a seguinte afirmação:

Tudo que é profundo ama a máscara: as coisas mais profundas têm mesmo ódio à imagem e ao símile [...]. Há eventos de natureza tão delicada, que faríamos bem em soterrá-los e torná-los irreconhecíveis através de uma grosseria; existem atos de amor e extravagante grandeza, após os quais é aconselhável tomar de um bastão e surrar a testemunha, para lhe turvar a lembrança. Alguns conseguem maltratar e turvar a própria memória, para vingar-se ao menos desse cúmplice – o pudor é criativo.451

É interessante observar neste aforismo as imagens interpretativas utilizadas por Nietzsche para descrever o movimento afirmativo da vida, instaurado no jogo permanente de forças antagônicas, presente em todo indivíduo singular: ―ódio à imagem e ao símile‖,

449 NIETZSCHE, 2009, p. 252 (GC, Nós, os impávidos, 356).

450 ARENDT, CH, 2005, p. 210.

451 NIETZSCHE, 2010, p. 42, grifo nosso (ABM, O espírito livre, 40).

próprios das máscaras sociais a que todos os indivíduos se submetem e que, de alguma forma, querem ser lembrados ou esquecidos. As vicissitudes que invadem a vida e que acabam por interferir em nossas ações deveriam ser ―soterradas e tornadas irreconhecíveis‖, portanto, relegadas ao abrupto e forçado esquecimento: ―tomar de um bastão e surrar‖ e, por fim,

―turvar a própria memória‖. Ao concluir esse aforismo, Nietzsche é incisivo na percepção

―turvar a própria memória‖. Ao concluir esse aforismo, Nietzsche é incisivo na percepção