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3 OS INTERSTÍCIOS DA MEMÓRIA SOCIAL E SUAS INFLUÊNCIAS NA

3.3 O novo agon e o sentido da nova política

3.3.1 A perspectiva agonística da memória e a apropriação do espaço público

Confrontando com o grego, o mundo moderno cria em geral apenas aberrações e centauros.406

A ação só pode resultar num produto final quando se destrói seu significado autêntico, intangível e sempre tão frágil.407

A abordagem feita por Nietzsche no texto intitulado ―O Estado grego‖ se volta inicialmente a refletir sobre o dilema próprio do final do século XIX: a ―dignidade do homem‖ e a ―dignidade do trabalho‖408. Durante muito tempo, o trabalho foi interpretado como um castigo a que os homens eram submetidos, principalmente por não se mostrarem dignos de alcançar o reconhecimento social e, portanto, não estarem livres para participar das grandes decisões que envolvessem a vida em sociedade.

Ao se debruçar sobre esse tema, Nietzsche analisa alguns aspectos da sociedade presentes no mundo grego como, por exemplo, a tese de que o trabalho ―é um ultraje porque a existência não tem nenhum valor em si mesma.‖409 Nessa visão nietzschiana, a escravidão se deve à falta de esclarecimento e à necessidade de sobrevivência; já a dignidade, longe de qualquer servidão utilitária, se concretizaria ―onde o indivíduo se ultrapassa totalmente e não precisa mais trabalhar nem depor a serviço de sua sobrevivência individual.‖410 A expressão ―se ultrapassa totalmente‖ alude à dupla ação de movimento, próprio da dinâmica agonística, em que se situa o indivíduo: de um lado caberia ao Estado a função de esclarecê-lo, do outro, o próprio indivíduo se incumbiria de descobrir e buscar ir além do que lhe é esperado enquanto membro da pólis. Nesse duplo movimento em que se encontra o indivíduo, é preciso descobrir a sua singularidade para ultrapassar uma situação desfavorável quando ―a vergonha parece penetrar no lugar onde o homem é apenas ferramenta de manifestações da vontade, infinitamente maiores do que ele pode estimar na configuração singular do indivíduo.‖411 Ao situar essa afirmação no campo da política, é possível que as forças presentes ―na configuração singular do indivíduo‖ da qual nem ele mesmo ―pode estimar‖, se

406 NIETZSCHE, 2007, p. 40 (CP, O estado grego).

407 ARENDT, CH, 2005, p. 209.

408 Esse tema sobre a ―dignidade do trabalho‖ já foi abordado no primeiro capítulo, quando se analisou o

―Modelo de Estado e a memória da política‖ em Nietzsche. O que se pretende nesta fase da tese é mostrar o

―elo‖ entre estas questões e a criação de um novo agon.

409 NIETZSCHE, op. cit., p. 40 (CP, O estado grego). É importante frisar que Nietzsche está, neste prefácio, mais interessado em valorizar a importância da criação artística, própria dos ―homens isolados e formados de pedaços multicoloridos‖ que lutam por existir e também pela arte.

410 Ibidem, p. 41, grifo nosso (CP, O estado grego).

411 Ibidem, p. 42, grifo nosso (CP, O estado grego).

apresentem nas disputas e confrontos próprios do espaço agonístico da pólis.

Seguindo por esse caminho interpretativo, Arendt, por sua vez, constata nessa fase da pólis grega, a existência de dois campos agonísticos distintos: o espaço privado, cujo pressuposto era a manutenção das necessidades vitais, e o espaço público, do qual nascia a liberdade. Por sua vez, essa separação não significava a submissão de um espaço a outro, mas uma complementaridade, pois como explica a filósofa: ―uma relação entre esses dois espaços era que a vitória sobre as necessidades da vida em família constituía a condição natural para a liberdade na pólis.‖412

A relação agonística que surge no entre esses espaços (público e privado) se manifesta, de alguma forma, na ação política e, por conseguinte, na liberdade. Nesse sentido, ambos os autores parecem concordar que a força da pólis grega estava justamente centrada na possibilidade do confronto e da disputa como garantia da permanência das diferenças próprias de cada indivíduo singular. A crítica à modernidade, que permeia os escritos tanto de Nietzsche quanto de Arendt, está centrada principalmente na anulação e perda desse espaço agonístico. O que significa, para Nietzsche, o nivelamento, a anulação das diferenças e o predomínio do instinto de rebanho, que não encontra espaço para se posicionar, confrontar e questionar sua situação, como afirma o filósofo: ―Mas que coisa é realmente temida? O isolamento! Eis o argumento que derrota os melhores argumentos em favor de uma pessoa ou causa! – Assim fala em nós o instinto do rebanho.‖413 Arendt é mais incisiva ao constatar que essa perda leva o afastamento do homem em relação ao mundo, descaracterizando a política enquanto espaço de liberdade e ação:

Os preconceitos, que passaram a exercer um papel cada vez maior e mais legítimo na arena público-política, são um reflexo das coisas que compartilhamos uns com os outros automaticamente e sobre as quais já não formamos juízos, porque não temos mais reais oportunidades de experimentar.414

Ambos os pensadores parecem concordar – em perspectivas distintas – com a tese de que a ausência do espaço agonístico gera uma apatia política que leva ao surgimento dos dominadores e das massas, principalmente pautado por ações econômicas reforçadas pela

412 ARENDT, CH, 2005, p. 40. Em seu escrito ―A promessa da política‖, Arendt (2010, p. 189) completa essa distinção: ―Em termos de meios e fins, a relação entre casa e pólis não é a de que a sustentação doméstica da vida é um meio para se alcançar o objetivo mais elevado da liberdade política, mas a de que o controle das necessidades práticas da vida e do labor escravo dentro da casa é o meio pelo qual o homem se torna livre para a atividade política.‖

413 NIETZSCHE, 2009, p. 91 (GC, O argumento do isolamento, 50).

414 ARENDT, PP, 2010, p. 210.

política do final do século XVIII e XIX415. Essas ações que acabam por criar espaços vazios de poder significariam, para Arendt, a oportunidade para se instituírem formas totalitárias de governo416. Nietzsche explica que ―onde alguém domina, existem massas: onde existem massas, há uma necessidade de escravidão.‖417 Pensar o espaço público como agonístico remete à ideia de que a sua ausência sempre reforçará o binômio mando/domínio e obediência/servidão, o que significa afirmar que se anula o significado e a compreensão da política como o lugar do pensamento plural, da diversidade e do diálogo com as diferenças.

Partindo da perspectiva arendtiana de que ―nenhuma memória perdura e permanece intacta, a menos que seja condensada e inserida num conjunto de noções conceituais, dentro do qual ela possa afirmar-se cada vez mais‖418, a política acaba se transformando em um instrumento capaz de instituir um espaço público destituído da condição agonística que o criou, nivelando os indivíduos e anulando as diferenças, como forma de controle social do coletivo. A partir dessa constatação arendtiana, pode-se afirmar que Nietzsche tinha razões para enfaticamente apontar o caminho da ―transvaloração de todos os valores‖ e a procura dos chamados ―homens superiores‖, como resposta à situação decadente em que se encontrava a sociedade, uma vez que:

Mesmo o ressentimento do homem nobre, quando nele aparece, se consome e se exaure numa reação imediata, por isso não envenena: por outro lado, nem sequer aparece, em inúmeros casos em que é inevitável nos impotentes e fracos.419

Para Nietzsche, a questão é muito mais ampla no que se refere ao uso da memória como instrumento de controle social do Estado e, consequentemente, da política. Ainda conforme o filósofo, o Estado, como já mencionado anteriormente, foi forjado e imposto violentamente ao indivíduo, o que leva ao cerceamento e controle dos instintos gregários

415 Nesse período marcado pela evolução do sistema capitalista-industrial, o Estado, baseado em teorias econômicas já mencionadas no primeiro capítulo desta tese, se configura principalmente por ações burocráticas e administrativas. Para corroborar com essa ideia, Aguiar (2009, p. 228) constata: ―Dado que a pauta política é fundamentalmente a questão da riqueza, não há espaço para a figura do poder instaurado na vida comunitária, mas apenas para o governo, para aqueles que sabem administrar.‖

416 Na interpretação de Newton Bignotto: ―o que importa para Arendt é mostrar que o totalitarismo advém da condição criadora do homem, de sua capacidade de inventar novas ordens e instaurar novas formas de organização da vida em comum. Os homens, porque são capazes de fazer encarnar sua liberdade em ‗novus ordo seclorum‘ são obrigados a conviver com uma indeterminação radical de sua própria condição de animais políticos.‖ (O totalitarismo hoje? In: AGUIAR, O. A.; BARREIRA, C.; BATISTA, J. É. Origens do totalitarismo: 50 anos depois. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001, p. 42).

417 NIETZSCHE, 2009, p. 160 (GC, Fracasso das reformas, 149). Arendt, como já analisado anteriormente, afirma ser esta massa constituída pela indiferença política e que constitui a maioria da sociedade.

418 ARENDT, REV, 1990, p. 176. Segue a citação: ―As experiências e mesmo as narrativas que brotam de tudo aquilo que os homens fazem e atravessam, dos acontecimentos e ocorrências, se dissipam na inanidade inerente à palavra viva e aos feitos vivos, a menos que sejam discutidos e comentados muitas vezes.‖

419 NIETZSCHE, 2007, p. 61, grifo nosso (GM, I, 10).

presentes no próprio indivíduo420. Dessa forma, somente os ―homens superiores‖ seriam capazes de ―esquecer a regra ‗homem‘, enquanto exceção a ela – exceto no caso de ele ser empurrado para essa regra por um instinto ainda mais forte, como homem do conhecimento no sentido grande e excepcional.‖421 É importante frisar que, para Nietzsche, não se tratava de apontar um modelo político ideal que pudesse resgatar o espaço agonístico e dele surgirem os

―homens superiores‖, mas de diagnosticar o enfraquecimento e a domesticação que dominaram o Estado no mundo moderno. A crítica nietzschiana está relacionada a essa concepção de Estado regulador que inibe as forças criativas do homem. Para ele, o Estado deve impulsionar a valorização da cultura, por isso não deve estar subordinado à economia e, além disso, o seu representante mais elevado não se confunde com o político profissional422, mas com o criador de valores e novas formas de vida.

Arendt, por sua vez, parte da concepção de política e da sua experiência pessoal com o totalitarismo, para valorizar a tradição da pólis grega e a questionar enfaticamente toda concepção totalitária de Estado. Para Souki, ―a emergência do totalitarismo obrigou-nos a reavaliar a ação humana e a história, na medida em que esta revelou novas figurações do homem, inclusive em algumas de suas formas monstruosas.‖423 Na medida em que para Arendt há sempre um novo começo sendo instaurado na sociedade, torna-se necessário compreendê-lo com vistas a uma ação política efetiva capaz de tornar possível a convivência humana.

É importante notar que o posicionamento de Arendt, com relação à concepção do Estado, difere da interpretação de Nietzsche, como abordado anteriormente. No entanto, ambos concordam ao afirmarem a necessidade de se pensar um Estado voltado à valorização da cultura. No entender de Arendt:

Nossa atenção recai sobre a cultura, ou melhor, sobre o que acontece à cultura sob as díspares condições da sociedade de massas, e portanto nosso interesse pelo artista não concerne tanto ao seu individualismo subjetivo como ao fato de ser ele, afinal, o autêntico produtor daqueles objetos que

420 De acordo com Adriana Delbó: ―Dessa forma, o nascimento do Estado é associado à redenção, à regularização da concessão dos direitos mútuos, obstando a disputa aniquiladora pela posse da mesma coisa.

Nietzsche assevera que o Estado não deixa de ser domínio e força, ainda que esteja sob a égide da justiça.‖ (O lugar da política no pensamento do jovem Nietzsche. Cadernos de ética e filosofia política, São Paulo, v. 11, p.

83-96, 2007, p. 92).

421 NIETZSCHE, 2010, p. 31 (ABM, Espírito livre, 26).

422 Para Nietzsche (2010, p. 226 – HDH, I, Ressurreição do espírito, 465), ―a cultura deve suas mais altas conquistas aos tempos politicamente debilitados.‖

423 SOUKI, Nadia. Hannah Arendt e o paradigma do anti-Estado. In: AGUIAR, O. A.; BARREIRA, C.;

BATISTA, J. E. Origens do totalitarismo: 50 anos depois. Fortaleza: Relume Dumará, 2001, p. 104.

toda civilização deixa atrás de si como a quintessência e o testemunho duradouro do espírito que a animou.424

Sob esse olhar distinto é possível perceber que tanto Nietzsche quanto Arendt encontraram uma forma de valorizar a cultura como uma força criadora capaz de, permanentemente, revisitar a função do Estado. Por isso eles dedicaram parte de seus escritos à importância da pólis grega e sua concepção de Estado, como forma de resgate e crítica ao modelo político instituído. Se a pólis garantia um espaço de liberdade, ela igualmente limitava a ação dos indivíduos, na tentativa de conter o vigor e a força dos participantes desse espaço político. O objetivo era garantir a sobrevivência da cultura da pólis – organizada e estruturada sob bases agonísticas –, própria do encontro dos indivíduos singulares e, ao mesmo tempo, preservar na memória os grandes feitos e realizações do mundo grego. Para Nietzsche:

Era forçoso que o ocaso desta nos parecesse originado por uma dissociação notável de dois impulsos artísticos primordiais: ocorrência com a qual estava em consonância uma degeneração e uma transformação do caráter do povo grego, e que nos convida a uma séria reflexão sobre quão necessária e estreitamente entrelaçados estão, em seus fundamentos, a arte e o povo, o mito e o costume, a tragédia e o Estado. Aquele ocaso da tragédia era ao mesmo tempo o ocaso do mito.425

A experiência vivida pela civilização grega, principalmente no que concerne à perspectiva agonística da pólis, trouxe à tona a relação existente entre civilização e cultura, Estado e leis, privado e público, discurso e ação, singularidade e pluralidade. Essas e outras questões levantadas a partir dos escritos de Nietzsche e Arendt, referentes ao agon grego, estão ligadas ao campo da memória social, principalmente no que diz respeito às fronteiras conceituais que essas relações trazem consigo. A herança deixada pelos gregos e incorporada no mundo ocidental fez com que ambos os filósofos se detivessem nessas questões e constatassem, em perspectivas distintas, a instauração da violência ora para criar uma sociedade, ora para ordená-la. Na condição primitiva, por exemplo, Nietzsche ressalta que a imposição cruel dos homens fortes foi necessária para ―proteger os indivíduos uns dos outros.‖426 Dessa forma surge o Estado.

Em alguns dos escritos nietzschianos encontra-se enfaticamente o seu

424 ARENDT, EPF, 2005, p. 252.

425 NIETZSCHE, 2007, p. 135, grifo nosso (NT, 23).

426 Idem, 2010, p. 150 (HDH, I, O gênio e o Estado ideal em contradição, 235).

questionamento ao Estado Moderno427, nascido pela imposição cruel e violenta de uma cultura que acaba por incorporar valores que se tornam comuns a todos, nivelando e homogeneizando as ações humanas, o que significa, para Nietzsche, a perda da salutar disputa instaurada no entre os homens. Em sua obra ―Assim falou Zaratustra‖, Nietzsche é mais enfático ao denunciar esse Estado que tem a pretensão de se intitular como sendo o próprio povo:

Estado? Que é isto? Pois seja! Abri bem os ouvidos, porque, agora, vou dizer-vos minha palavra sobre a morte dos povos. Chama-se Estado o mais frio de todos os monstros frios. E, com toda a frieza, também mente; e esta mentira sai rastejando da sua boca: ―Eu, o Estado, sou o povo!‖428

Ao se intitular ―povo‖ esse Estado almeja apaziguar as ações e impedir que os impulsos dos indivíduos se confrontem nos espaços públicos e, com isso, evita o caos, normaliza e regulamenta práticas comuns que devem ser seguidas por todos. Para Julião, ―o Estado, assim como as instituições que o compõem são invenções que servem para atender às necessidades de controle e conservação da espécie.‖429 O Estado, nessa visão nietzschiana, acaba por anular o espaço agonístico e, portanto, impedir a criação e renovação da cultura430.

Há, portanto, um ponto de convergência entre Nietzsche e Arendt: a defesa do espaço agonístico de onde sempre surgirá um novo começo: a revitalização da cultura, para Nietzsche, e a ressignificação da política, para Arendt. A questão passa a ser a compreensão de como se dá essa nova cultura, ou essa novidade política. Para melhor entender esse processo, será preciso retomar a questão da violência articulada com a memória e, ao mesmo tempo, compreender o sentido do distanciamento trágico.