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A memória-história da coletividade acadiana

A passagem da memória para a história obrigou cada grupo a redefinir sua identidade pela revitalização de sua própria história. O dever de memória faz de cada um o historiador de si mesmo. (NORA, 1984, p. 17)

Focalizando a memória coletiva enquanto lastro das fábricas de identidades, verificaremos que a citação acima revela-se particularmente pertinente em relação à coletividade acadiana. Para os acadianos a problemática da memória coletiva tem especial relevo, sobretudo em virtude de quatro fatores sociohistóricos determinantes: 1°) a grande diáspora sofrida no século XVIII - o “famigerado” Grand Dérangement; 2°) a inexistência de um território geográfico-administrativo (chamado) “Acádia”; 3°) a minoridade linguística e 4°) a tradição da oralidade. Tais fatores serão tratados no próximo capítulo. Por ora, mencionado o principal quarteto propulsor da memória coletiva acadiana, colocaremos algumas questões em torno da memória coletiva dos Acadianos, passando pelo papel da literatura nessa problemática.

Enquanto coletividade minoritária (e minorizada) em vários planos29, os acadianos têm na memória coletiva um importante instrumento fundamentador da sua identidade e “fonte” da sua história escrita oficial, notadamente pelos testemunhos orais transcritos de indivíduos e de famílias. Assim, no bojo da memória histórica dos acadianos, haveria a memória genealógica. É que em decorrência do espalhamento humano imposto pela Grande Dispersão, com a separação deliberada de membros de uma mesma família, as genealogias ocupam um lugar relevante no fazer histórico, nas diversas narrativas, inclusive as ficcionais. Nesse sentido, alguns exemplos são perceptíveis em Mariaagélas30(MAILLET, 1981): o peso da herança genética na protagonista Maria, “uma Gélas até o tutano dos ossos” (p. 17/18); a legitimidade incontestável de Ferdinand para ocupar o cargo de agente da alfândega em decorrência da sua ascendência - ele é descente dos deportados do Grand Dérangement (p. 66); a inserção pelo narrador da sua própria ascendência no encadeamento das narrações - “seu pai havia conhecido Mariaagélas” (p. 47); ou, ainda, a remissão frequente à ascendência,

29 Apenas para citar alguns planos: demográfico, linguístico, religioso, administrativo e político

(consequentemente).

30 Todas as páginas citadas referem-se à seguinte edição da obra: MAILLET, Antonine. Mariaagélas. Paris :

desdobrada em prenomes ou ostentada em sobrenomes, seja para precisar o pertencimento familiar/tribal (os clãs do norte e do sul da ponte), seja para explicar um comportamento (“só podia ser uma Gelas, filha de..., irmã de..., neta de...” etc). O vínculo pela herança genética já constituiu um dos principais elementos justificadores da identidade acadiana. Desse modo, ser acadiano/a era, antes de tudo, ser descendente dos acadianos deportados durante a Grande Desordem. Daí o imperativo das buscas para fazer com que as raízes das árvores genealógicas descessem o mais longe possível até alcançar pelo menos a Deportação. Todavia, hodiernamente, diante da crescente complexidade da questão identitária, inclusive considerando os numerosos e diversos fluxos migratórios, o pertencimento pela genealogia ainda prestar-se-ia a dar conta, ainda que parcialmente, da identidade coletiva acadiana?

Paralelamente ao culto das origens, através das genealogias, há o culto das origens pelas revisitas-referências constantes ao Grand Dérangement, materializadas em celebrações, narrações e canções. Porém, este último pode ser lido como uma necessidade de ritualizar a história, de dispor de um acontecimento histórico enquanto narrativa fundadora da coletividade, conferindo-lhe coesão social e proporcionando-lhe uma coerência identitária. Ademais, não encerraria para essa coletividade a possibilidade de uma inscrição na história universal? Mas também não causaria o “congelamento” da imagem da Acádia no tempo, enquanto terra prometida e/ou paraíso perdido? Nesse diapasão, o alcunha de cultura atávica proposto por Glissant caberia para a Acádia? Sim, a identidade acadiana repousa sobre a memória, mas isso seria suficiente para a aposição da etiqueta “atávica”?

Além da memória não ser o único elemento do construto identitário dos acadianos, estes parecem ter engendrado um movimento de releituras dinâmicas do passado com vistas a um devir de aberturas e inclusões de Si como o Outro e do Outro como Si mesmo rumo à resiliência, como veremos adiante. A memória coletiva acadiana deve se tornar cada vez mais “trampolim” e menos “sofá”31. É no seio desse movimento, que se justifica também pela“busca” de coerência e continuidade mnemônicas, através das “pequenas narrativas” em torno da “Grande Narrativa”, que podemos citar a literatura mailletiana. Antonine Maillet “escreve em voz alta” para contar e recontar a memória coletiva acadiana.

Dessa forma, no romance Mariaagélas de Maillet, podemos “ler” a memória coletiva acadiana, através de movimentos da e na narrativa, partindo, a princípio, dos seguintes aspectos-elementos, já citados anteriormente, a lembrar: a memória comum enquanto exercício, o território como lócus de aglutinação mnemônica e a memória-narrativa

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compartilhada.

Quanto ao primeiro, pode ser verificado no dever-desafio de lembrar e/ou de não esquecer para pertencer à coletividade, materializado nos “chamamentos” mnemônicos da passagem em revista do passado de pessoas-membros do vilarejo, a exemplo de Ferdinand (nos capítulos VIII e XX) e de Clara à Gélas (no capítulo XXVII); da referência a fatos históricos-marcadores da existência coletiva no vilarejo, tais como a chegada e instalação dos Gélas na Baie, e a sua tradição no uso (e abuso) do sobrenome Gélas (ambos no capítulo I), e o ano da baleia, que goza de conhecimento coletivo tão “óbvio” que dispensa explicação (no capítulo XXVII); bem como dO grande ritual celebrador da memória coletiva: a procissão de 15 de agosto, dia nacional da Acádia32 (no capítulo XXIX).

Já o segundo elemento constitui o próprio vilarejo mariaagelasiano que mora nos seus habitantes e através do qual a narrativa se move entre pontos de referência públicos, que levam maiúsculas, tais como a Pointe à Jerome, a Pointe à Jacquot, a Butte du Moulin, o Chemin des Amoureux, o Lac à Melasse, a Rivière-à-Hache, o Ruisseau des Pottes, etc, mas também, minúsculas, haja vista o mar, os “barachois”, as dunas, a floresta, a ponte etc, e os privados, a exemplo das duas “forges”, da “grange” de Ferdinand, do convento, da casa da “vieille” Pierre Crochu etc, todos eles dizendo o vilarejo para quem e por quem nele habita. Importante citar, também, o lugar ancestral ocupado pelo clã dos Gélas, geração após geração, ao sul da ponte, e em relação ao qual se posiciona o clã dos Caissie, geográfica e socialmente.

O terceiro ponto de partida para a leitura da memória coletiva em Mariaagélas pode ser traduzido pelo compartilhar da memória enquanto narrativa, narrativa esta que se perfaz no contar e recontar do passado coletivo, ainda que diga respeito a vidas individuais e privadas, a fim de se situar e se posicionar diante de um acontecimento e de se apropriar do presente. Assim, re/contam a vida “pregressa” de pessoas do vilarejo, as ações do Governo, e as intervenções da Natureza. No que concerne essa derradeira entrada, podemos mencionar a ação-posição do narrador ao contar o retorno-exílio, através da família dos Gélas, e as remessas pontuais e pertinentes a fatos históricos em relação aos quais os acadianos se identificam enquanto povo.

De fato, o lugar da memória reside no processo de construção identitária, devendo,

32 No dia 15 de agosto é celebrado a “fête nationale de l’Acadie”, primeiro símbolo escolhido pela coletividade

acadiana, em 1881, quando da sua primeira Convenção Nacional, realizada em Memramcook. Após um acalorado debate entre os defensores do dia 24 de junho e do dia 15 de agosto, este último acabou vencendo, sobretudo pelo fato do dia 24 de junho já ter sido, então, escolhido pelos quebequenses, e do dia 15 de agosto ser o dia da Assunção, festa católica da Virgem Maria. Particularmente quanto a este último argumento, relevante dizer que a data finalmente eleita foi sustentada, publicamente, pelo abade Marcel-François Richard cuja elocução, de grande influência para essa decisão, vale a pena ser lida, por exemplo, em <http://fr.wikipedia.org/wiki/F%C3%AAte_nationale_de_l%27Acadie>. Acesso em junho de 2014.

pois, ser a memória abordada num entrelaçamento “fusional” com a identidade. É nas identidades que a memória coletiva ganha todo o seu significado, é nas identidades que reside sua razão de ser-lembrar, a razão de lembrar para ser.