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O olhar exterior: Maurice Halbwachs

2.7 Memória “individual” e memória “coletiva” ou memória “individuocoletiva”?

2.7.2 O olhar exterior: Maurice Halbwachs

A grande empreitada intelectual de Halbwachs consiste em ter posto a coletividade no centro dessa problemática, atribuindo-lhe diretamente a memória sem, necessariamente, passar pela memória do indivíduo, promovendo, assim, um deslocamento do olhar do interior para o exterior deste. A princípio, para Halbwachs (1997), a rememoração percorreria o seguinte caminho: recorrer a testemunhos, sendo nós mesmos os primeiros a testemunhar27, confrontá-los, entrar num acordo quanto a um conjunto significativo desses, reconstruir lembranças e reconhecê-las enquanto tal. Posto tal caminho mnemônico, duas perguntas logo se impõem: seria ele também pertinente quando se tratar de lembranças de acontecimentos que somente nós vivenciamos, com exclusividade? As testemunhas são mesmo indispensáveis para recordar uma lembrança?

A título de uma primeira resposta, trazemos os dizeres do próprio Halbwachs (1997): […] nos souvenirs demeurent collectifs, et ils nous sont rappelés par les autres, alors même qu’il s’agit d’événements auxquels nous seul avons été mêlés, et d’objets que

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nous seul avons vus. C’est qu’en réalité nous ne sommes jamais seuls. Il n’est pas nécessaire que d’autres hommes soient là, qui se distinguent matériellement de nous : car nous portons toujours avec nous et en nous une quantité de personnes qui ne se confondent pas. (grifos nossos) (p. 52)

Depreende-se da citação supra que se, por um lado, a memória individual não representa uma condição sine qua non para a constituição da memória coletiva, e, por outro, que testemunhas presenciais não se revelam indispensáveis para que nos lembremos de algo. Assim, embora sejam os indivíduos que recordem (ato de lembrar de algo), a memória pessoal não é condição necessária e suficiente à recordação e ao reconhecimento das lembranças, e tão pouco a presença de testemunhas, material e sensivelmente presentes, é requisito para tanto. Porém, testemunhos são necessários à recordação coletiva. E pelo menos duas exigências devem ser preenchidas para que testemunhos contribuam para a construção da memória coletiva: primeiro, que tais testemunhos sejam oriundos de pessoas que tenham pertencido ao mesmo grupo, e, segundo, que estas pessoas tenham mantido contato com o grupo em questão.

Nesse ponto, insta pontuar duas observações importantes acerca das duas exigências expostas acima. Primo, o pertencimento a um grupo não precisa ser, obviamente, exclusivo. A multiplicidade e diversidade de participação em grupos, decorrentes da crescente complexidade das sociedades e das relações sociais não se mostram um obstáculo, nem mesmo um “dificultador” à rememoração de lembranças de qualquer dos grupos. O aspecto mais relevante é como o pertencimento se produziu em termos do lugar ocupado no grupo, da antiguidade no grupo, da intensidade de penetração no grupo (influência), do tempo de permanência e do grau de participação no grupo, das relações tecidas no interior do grupo (até em relação à maior ou menor abertura a outros grupos), das relações extra grupo (com outros grupos ou indivíduos) etc. Secundo, o contato guardado com o grupo poderia ser melhor traduzido enquanto “pontos de contato” formadores de uma “base comum” mnemônica. Na medida em que, pelo menos sob alguns aspectos, compartilhamos pensamentos e podemos ainda (apesar do decurso mais ou menos longo do tempo cronológico) nos identificar com o grupo, de maneira a tomar o passado deste como sendo também o nosso próprio, e a pensar e lembrar como membros do grupo, os nossos testemunhos podem “concordar”, através do cruzamento e do alinhamento das memórias, com vistas a compor essa “fundação comum” ao grupo a partir do qual as lembranças são reconhecidas e reconstruídas.

Dessa maneira, revela-se patente a impossibilidade de auto-suficiência da memória individual. Esta precisa mesmo apoiar-se em outras memórias para reconstruir lembranças (HALBWACHS, 1997, p. 64) em que pesem os traços guardados, individualmente, dentro de

cada membro do grupo. Porém, esta “guarda interior de vestígios” não significa que as lembranças se encontram em nosso espírito à espera de um algum desencadeador externo que os faça sair “intactos” ou “completos” como sob a forma lembranças. É que, na realidade, as nossas lembranças estão externas a nós, pelo menos parcialmente!

Embora Halbwachs (1997) ventile, por um lado, que pode haver, “na base de toda lembrança, o recordar de um estado de consciência puramente individual” - que ele denomina de intuição sensível - situado sempre no presente, e, por outro, admita que a memória coletiva não explica todas as nossas lembranças, ele defende que “nos sentiments et nos pensées les plus personnels prennent leur source dans des milieux et des circonstances sociales définis” e que “on ne se souvient qu’à condition de se placer au point de vue d’un ou de plusieurs groupes et de se replacer dans un ou plusieurs courants de pensée collective.”(p. 65). Dentro dessas assertivas, dois elementos parecem-nos particularmente importantes no que concerne a questão da exterioridade da memória coletiva: o ponto de vista do grupo e as correntes de pensamento coletivo. Para que um indivíduo recorde enquanto membro de um grupo ao qual pertenceu, mister se faz que tenha mantido o sentimento passado de pertença ao grupo, e nutrido contatos - não necessariamente materiais - com outros membros, contatos estes capazes de gerar uma concordância acerca das lembranças, formando um fundamento mnemônico comum. É preciso, em suma, que o ponto de vista do grupo seja tomado como pessoal também, exigindo um deslocamento de ponto de vista.

Quanto às correntes de pensamento coletivo, elas obedecem às chamadas “leis da percepção coletiva” por Halbwachs (1997). Antes de mais nada, urge levar em conta que “un ‘courant de pensée’ sociale est d’ordinaire aussi invisible que l’atmosphère que nous respirons. On ne reconnaît son existence, dans la vie normale, que quand on lui résiste, mais un enfant qui appelle les siens, et qui a besoin de leur aide, ne leur résiste pas”( p. 70). Desse modo, a influência do meio social não é sentida se a ela não nos opomos, pois a sua percepção é resultante “d’un long dressage et d’une discipline (sociale) qui s’interrompt pas.”(p. 87). Através deste processo, os indivíduos são socialmente “enquadrados” e impõe-se ao grupo uma lógica da percepção que rege as leis da percepção coletiva e que orienta o grupo na compreensão e para a convergência das impressões vindas do mundo externo. Assim, “chaque fois que nous percevons, nous nous conformons à cette logique; c’est-à-dire que nous lions des objets suivant les lois de causalité que la société nous enseigne et nous impose”(p. 86). Isso explicaria a continuidade e o encadeamento que os indivíduos estabelecem entre os objetos externos (de lembranças), ainda que não tenham mais contato material com os mesmos, levando Halbwachs (1997) a concluir que “tout rappel d’une série de souvenirs qui

se rapportent au monde extérieur s’explique donc par les lois de la perception collective.”(p. 87).

Destarte, a ação do meio social sobre os indivíduos apresenta-se como um requisito para que lembranças sejam evocadas pela memória coletiva. Meio social ao qual os indivíduos pertencem e no qual “sofrem” influências, ainda que inconscientemente, que os forjam enquanto seres sociais pela “aprendizado-introjeção” das representações que, por sua vez, os fazem “adotar” uma lógica de percepção coletiva. Através da “adoção” desta lógica, a percepção coletiva permite-lhes vincular lembranças e encadeá-las, sendo tal operação realizada no presente, visto que se as lembranças se situam no passado, o sentimento de pertencer a diversos meios sociais é do presente. Assim, não se pode perder de vista que os indivíduos que se recordam enquanto membros de um grupo ou de grupos são sujeitos do

presente e sujeitos ao presente. E é, necessariamente, nesses “presentes” que a memória

coletiva se perfaz.

Longe de constituir um mero pano de fundo da memória individual, a memória coletiva é uma memória à part entière. Reconheçamos: é também nas memórias individuais que a memória coletiva tem o seu lastro, desde que consideremos a recíproca verdadeira, ou seja, a memória coletiva fundamenta as memórias individuais. Assim, numa relação imbricada, memória coletiva e memória individual sofrem influxos mútuos, não podendo ser consideradas separadamente, nem enclausuradas somente no grupo, de um lado, ou apenas no indivíduo, do outro, sob pena de reduzir ambas a uma abordagem redutora e descontextualizada. Com vistas a dar conta dos movimentos entre as memórias e das memórias, é preciso assim considerar que a lembrança está fora dos indivíduos, em vários meios sociais, e que “chaque mémoire individuelle est un point de vue sur la mémoire collective, que ce point de vue change suivant la place que j’y occupe, et que cette place elle- même change suivant les relations que j’entretiens avec d’autres milieux.” (grifo nosso)(HALBWACHS, 1997, p. 95). Dessa forma, os meios sociais e suas mutações operam um enquadramento construtor e organizador das memórias na medida em que

La succession de souvenirs, même de ceux qui sont les plus personnels, s’explique toujours par les changements qui se produisent dans nos rapports avec les divers milieux collectifs, c’est-à-dire, en définitive, par les transformations de ces milieux, chacun pris à part, et de leur ensemble.(HALBWACHS, 1997, p. 95),

não dispondo nenhum dos meios de exclusividade na ação influenciadora. De igual modo, os vários pensamentos coletivos entrelaçados, seguindo as leis sociais da causalidade que lhes são inerentes, agem sobre as memórias.

memória individual não implica memória coletiva, embora se inter-relacionem e se influenciem reciprocamente; que precisamos dos outros, enquanto testemunhos e não, necessariamente, testemunhas materiais no presente, para nos lembrarmos, pois é através da experiência individual de pertencer a um grupo com o qual ainda mantemos pontos de compartilhamento mnemônico, que a memória se perfaz; que travamos relações com as memórias dos outros, através da recordação e do reconhecimento; que as lembranças construídas pelos indivíduos enquanto membros de um grupo exigem um deslocamento de ponto de vista e, nesse sentido, cada memória individual torna-se um ponto de vista da memória coletiva do grupo; que o contexto social é inerente ao trabalho de recordação, pois os pensamentos coletivos é que possibilitam trazer à lembrança a sequencia e o encadeamento dos objetos externos (ao individuo), sendo tais pensamentos regidos por lógicas decorrentes das representações coletivas; por fim, que a consciência sensível de pertencer a vários grupos sociais existe no presente e somente neste.