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Movimento dos Trabalhadores Sem Terra: percursos identitários

1. CAPÍTULO

3.1. A memória na formação da identidade Sem Terra

Ao adentrar para o espaço do Assentamento, tudo estava calmo, e a bandeira, que no ano passado estava hasteada no exato lugar em que se iniciava o território, não estava lá. Logo adiante, outra imagem se alterava, as casas, que anteriormente estavam sem cor, em construção, ostentavam bandeiras do Movimento Sem Terra em suas frontes. Uma delas exibia duas bandeiras do Movimento que ladeavam uma enorme imagem de Che Guevara, também em forma de bandeira. Todas as casas estavam pintadas, com cores vivas e extremamente cuidadas, com flores em seus jardins, abertas, portas e janelas que convidavam aos visitantes a conhecer mais uma conquista.

[...] Uma grande faixa homenageava os 18 anos de lutas e conquistas, fixada no palco ali armado para a festa. [...] Várias fotos revelam os momentos considerados significativos para aquela comunidade, desde os primeiros barracos até a atualidade. A memória daquele grupo está ali estampada. E as crianças explicam o significado de cada foto. Algumas não são “lembradas”, e então dizem “esta não sei”. Outras são nominadas a partir da narrativa de “aqui é a primeira casa”, “aqui foi quando nós chegamos”.

Sob o toldo, grandes bandeiras do Movimento Sem Terra e uma maior ainda, do Brasil.

O salão comunitário estava pintado com as cores branco e vermelho [...]. A imagem de Che Guevara permanece, ocupando uma parede inteira, a cruz fixada em um nó de pinho enorme estava à esquerda da entrada. Próximo à cozinha, observamos uma mesa e, sobre ela, todos os elementos que seriam usados na mística. Um barraco de lona preta em miniatura, uma cruz também em miniatura, uma bandeira, uma cesta com sementes crioulas, outra cesta com produtos, como abóbora, pinha, frutas. Além disso, um litro de leite, um frango (produzido e embalado com a marca Terra Viva), um pé de eucalipto em vaso, uma caixa de leite pasteurizado e embalado com a marca Terra viva, livros, cadernos, cartilhas e uma cesta com chaves, também decorada. Os convidados e os assentados foram chegando, conversando, sorrindo. Formavam-se grupos pequenos que conversavam entre si, mas que acolhiam as pessoas que chegavam, como se estivessem há muito tempo sem se ver, o que deduzimos pela alegria demonstrada nos encontros, pelos abraços, pelas formas de afeto. [...] Após um bom tempo, em que as pessoas se dedicavam a receber os convidados, apenas aqueles que contribuíram de alguma forma com a concretização daquele Assentamento e com a Luta pela Terra, iniciou-se o ato solene.

Na saudação dos locutores, o convite para que as pessoas se acomodassem e o chamamento das autoridades à mesa. [...] Em seguida a entoação do Hino do Movimento Sem Terra, durante a qual crianças e adultos cantam sem titubear, sem perder o ritmo e sem deixar de erguer o punho esquerdo, bradando o convite à luta, ou melhor, à continuidade da luta.

Segue-se o ato [...] os pronunciamentos são intercalados com um ritual em que os símbolos de cada etapa de conquistas do assentamento, são celebrados. [...] os símbolos da luta. [...] a cruz em madeira, o nó de pinho em miniatura, a bandeira do Movimento Sem Terra, um barraco de lona preta em miniatura, terra e um vaso com uma muda de árvore acompanham a cruz [...] leite, frango, verduras, sementes crioulas, mochila, cartilha, cadernos, chaves [...].

As crianças acompanham atentamente a mística, [...] saem para brincar, e retornam nos momentos da mística, principalmente na finalização do ato, [...] todos os assentados, que em diferentes momentos apresentaram os símbolos que representam a memória do assentamento retornam, vestindo camisetas e bonés do Movimento Sem Terra, ao som de Conquest of paradise (Vangelis). Posicionam-se atrás do elemento que, anteriormente, trouxeram à frente de todos. Agacham-se e aguardam o final da música. [...] um menino com uma gaita sobe ao palco e convida a todos para cantar

“Parabéns a você”, em comemoração ao aniversário de dezoito anos do assentamento. Fogos de artifício acompanham a comemoração (Diário de campo, 24-06-2005).

Ao entrar no espaço42 do Assentamento Conquista na Fronteira, temos a sensação de caminhar em terra sagrada, porque em todos os lugares é possível vislumbrar o cuidado, a quase veneração, a valorização da luta pela conquista da terra, concretizada em elementos e ou símbolos que lembram e materializam a trajetória deste grupo, não só daqueles que estão assentados, mas daqueles que estão acampados e que ainda marcham em busca de trabalho e dignidade. É uma celebração à memória.

“O homem cria os lugares” nos diz Balandier (1999), referindo-se a relação humana com o espaço. Este é o suporte material das memórias de um grupo social, que no espaço marca, delimita, circunscreve o passado, para não esquecer, e, assim, permitir que o próprio espaço narre por suas marcas, aos predecessores, a memória materializada no espaço. Para Balandier (1999), esses lugares “resultam dessa socialização contínua que se faz ao longo do tempo” e “são o objeto de um conhecimento imediato, sensual, emocional e imaginário, de uma relação que se faz por afeição, e com a duração por enraizamento” (BALANDIER, 1999, p. 62).

O cuidado de cada um e de todos na cor escolhida para suas casas, na seleção dos símbolos do Movimento Sem Terra para adornar as janelas, no ajardinamento que embeleza e significa a relação com a terra e com toda a vida que ela gera, na delimitação e ornamentação dos espaços coletivos, na escolha dos objetos que representam a trajetória desse grupo social para serem celebrados, revela o que Balandier chama de aliança com o meio que traz a marca do social. É a obra desse grupo que é materializada e socializada, cumprindo a tripla função que Balandier aponta ao tratar do lugar antropológico discutido por Marc Augé, a de identidade, de relação e de história (1999, p. 62). Contudo, a denominação de “espaço existencial”, como o produto das relações inscritas nessa materialidade, e os significados simbólicos expressos nos arranjos e disposições espaciais, evidenciando a “experiência de relação com o mundo” (MERLEAU-PONTY citado por BALANDIER, 1999, p. 62), nos

42 Balandier (1999) diferencia espaço e lugar. Diz-nos que o termo espaço “está de algum modo presente pelo excesso, a ponto de figurar nas identificações mais comuns. O inventário das expressões onde ele estabelece combinações parece realçar um jogo sem fim: a começar por espaço verde, espaços de lazer, espaço de cozinha... até espaço aéreo, marítimo, espaço publicitário, espaço judiciário, espaço comunitário... Esta proliferação léxica é reveladora, além de seu próprio grau de pertinência. Torna clara a importância dada à função instrumental do espaço, em detrimento daquilo que o constitui enquanto lugar” (BALANDIER, 1999, p. 63). Nossa perspectiva, ao nos referirmos ao espaço do Assentamento, compreende-o como o lugar em que se dão as relações que fundam e evidenciam o mundo existencial daquele grupo social.

parecem ser mais significativos para dizer essa relação entre os assentados e o mundo que eles fundam no espaço que habitam, que criam e recriam no tempo, produzindo a sua história evidenciada nas marcas de suas memórias.

Com efeito, o sentimento de pisar em terra sagrada pode comportar uma admiração pelo grupo que habita um determinado espaço. Porém, pensamos, com Elíade (1992), que a forma como um grupo social opera em relação ao espaço institui ou não uma forma de existir nesse mundo. A sacralização do espaço, assim como a celebração da memória, é uma operação humana, pela qual os sujeitos atribuem sentidos e significados para o lugar em que estão, para os símbolos que criaram, respondendo à necessidade de fundar o seu mundo. Para Elíade (1992, p. 26), “para viver no Mundo é preciso fundá-lo”.

A cruz é de onde nós saímos. Antes nós éramos unidos pela fé em Cristo, agora nós somos unidos pela fé na organização (João, assentado).

Com a mão na cruz de madeira, construída nos tempos de acampamento com alguns pedaços do que sobrou na sua desmontagem, a memória da origem e da luta é indicada como “o lugar de onde saímos”, depois de um suspiro que revela o lembrado, o vivido em outros tempos, talvez até o cansaço de quem tanto lutou na trajetória vivida e chegou ao destino almejado. Da fé na cruz, à fé na organização, um sorriso, reconhecendo que esse grupo tem uma memória, cultiva-a e encontra na sua celebração a motivação para a continuidade. A trajetória do grupo é a memória concreta do ponto em que eles se encontram. A simbologia da cruz e do nó de pinho é a concreticidade de sua memória e está ali para lembrar a todos os que viveram esses 18 anos quais foram os seus passos. E para os que não viveram, é um monumento que serve para que eles também lembrem e celebrem sua memória.