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Entre as memórias narradas: permanências e reelaborações

Movimento dos Trabalhadores Sem Terra: percursos identitários

1. CAPÍTULO

3.2. Entre as memórias narradas: permanências e reelaborações

Conhecer como um determinado grupo social organiza seu conhecimento sobre o passado, quais os elementos e práticas presentes na construção/reconstrução de sua identidade, para si e para os outros, considerando-se a escola e as práticas sociais desse grupo, e em especial, a memória e a história como importantes dimensões da formação, implica abordarmos as memórias constituintes dessa identidade que, narradas e renarradas aos diferentes indivíduos e gerações, possibilitam compreender como esse grupo tornou-se o que é.

A explicitação e a análise das relações constituintes do conhecimento sobre o passado encaminham-nos para uma hermenêutica do trabalho de produção e enquadramento da

memória coletiva, a partir das práticas sociais e políticas privilegiadas por um determinado grupo social.

A memória como um dos eixos constituintes dos sujeitos sociais que compõem o grupo em questão, impele-nos à investigação da memória, a partir de observações de aulas, comemorações e práticas sociais e de entrevistas com as crianças, para explicitação e análise “de como se foi sedimentando a memória pessoal e coletiva, nos usos políticos da memória pública” (BRUNELLO, 1998, p. 111). Da mesma forma, explicitam o “trabalho de enquadramento da memória” (POLLAK, 1992), expresso em rituais e práticas cotidianas, no ensinado na escola, na publicação e divulgação de materiais que narram sua trajetória, na participação em comemorações de eventos significativos para o grupo, vividos por eles ou não. Mas que são sempre narrados como parte de sua memória.

No dia 16 de setembro, a morte de Olívio Albani, um Sem Terra que “tombou na luta” é lembrada, narrada e celebrada. No Calendário Histórico dos Trabalhadores, essa data é indicada e foi trabalhada na sala de aula em que realizamos observações. Entendemos que a narrativa reelaborada pela professora e apresentada como um texto aos alunos aponta para a produção de uma memória pessoal e coletiva, com um uso político da memória deste e por esse grupo social. O texto que foi copiado pelas crianças e os exercícios posteriormente prescritos nos indicam como isso se processa na escola, contribuindo na formação da identidade Sem Terra, na escola e fora dela.

16 de setembro de 1989. Assassinato de Olívio Albani.

Olívio Albani era esposo de uma das 700 famílias Sem Terra que ocuparam a fazenda CALDATO; dia 12 de junho de 1989, no município de Palma Sola em Santa Catarina. A bandeira do MST tremulava em mais um latifúndio.

Os latifundiários só gostam dos sem terra enquanto são mão-de-obra barata. Quando os Sem Terra se organizam para conquistar a terra para quem nela trabalha de fato, aí a coisa muda de figura foi o que aconteceu.

No dia 16 de setembro de 1989, a UDR, a polícia e o governo se uniram para despejar as famílias. Muitas pessoas foram presas outras foram parar no hospital e o companheiro Olívio Albani morreu.

Olívio Albani caiu. Hoje um assentamento em São Paulo leva seu nome seu sangue germina em uma nova ocupação (Texto escrito no quadro pela professora e copiado pelas crianças de 2ª e 4ª séries do Ensino Fundamental - Extraído do Caderno de Mateus- 4ª série)43.

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O texto utilizado em aula difere um pouco do texto constante no Calendário Histórico dos Trabalhadores, mas mesmo assim, percebe-se que foi a referência sobre a qual foi reelaborado outro texto. “16 de setembro de 1989: Olívio Albani, Sem Terra de Santa Catarina. Olívio Albani estava entre as 700 famílias sem-terra que ocuparam a fazenda Caldato, no dia 12 de junho de 1989, no município de Palma Sola, em Santa Catarina. No dia 16 de setembro de 1989, a UDR, a Polícia Militar e o governo se uniram para despejar as famílias. Os sem-terra se defenderam. No enfrentamento, vários saíram feridos e quatro foram presos. Olívio Albani foi assassinado. Do

[...]

Vamos elaborar um diálogo entre dois Sem Terras falando da ocupação.

- Você se lembra da ocupação do que aconteceu com nosso amigo Olívio Albani? - Sim, me lembro ele foi um grande lutador e acabou morrendo pela injustiça dos latifundiários.

- Isso foi terrível, pessoas morreram, outras feridas e algumas pessoas fugiram. Nós se defendemos, não precisava atirar na gente.

- É assim meu amigo, a polícia sempre atira nos Sem Terras porque são inimigos da gente, por isso atiram (Diálogo elaborado pelo Mateus – Caderno do aluno – 16/09/2005).

Talvez possamos indicar, a partir dessa atividade realizada pelas crianças, como a memória de um grupo torna-se a memória das pessoas que participam desse grupo. São vários os elementos identitários presentes no texto e na atividade desenvolvida pelos alunos. Contudo, chama-nos a atenção o tempo presente utilizado pelo aluno, ao indagar o lembrar do acontecido com um companheiro da luta que, provavelmente, ele não tenha conhecido, mas se expressa como se estivesse presente ao indagar “Você se lembra da ocupação do que aconteceu com nosso amigo Olívio Albani?” E a pergunta que posteriormente nos envolverá novamente pode desde já ser anunciada: quem lembra? E do que lembra? Que memória é essa? Como ela se constitui no sujeito?

O “nós se defendemos” também aponta para essa participação em um ato em que não se esteve presente, mas que, nos procedimentos de sedimentação de uma determinada memória, é produzida como nossa memória, ligando e identificando os sujeitos a esse grupo social, diferenciando-o de outros grupos, mesmo que deles participe, mas que, contudo, não estabelece laços identitários, porque essa memória produzida não permite constituí-lo, não o faz se sentir pertencente a esses outros grupos.

Compreender como a memória se torna substrato da formação dos sujeitos Sem Terra, implica, então, considerar os usos e seus significados historicamente constituídos, para, então, movimentarmo-nos nas possibilidades engendradas neste momento histórico. Contudo, a necessidade de apreender o fenômeno da memória não se finda nela mesma. É uma das vias que nos permite compreender o papel da memória na constituição da identidade Sem Terra.

O percurso para compreender a memória como fenômeno se complexifica ao perscrutarmos “ela por ela mesma”, ao penetrarmos nas suas dobras, com suas perguntas e respostas, o que nos impele a continuar nessa dissecação, cerceando-a por todos os ângulos,

lado da polícia, alguns fugiram desesperados quando viram suas mães acampadas implorando um pouco de compreensão; outros, saíram feridos. Olívio Albani caiu. Hoje, um assentamento em São Paulo leva seu nome. Seu sangue germina em cada nova ocupação, em cada vitória dos sem-terra” (MST, 1998, p. 67).

sem saber ao certo se conseguiremos apreendê-la. Nessa busca, Ricoeur tem sido nosso companheiro, nossa referência, justamente por querermos compreender o que é a memória e como ela age. Falamos comumente de memórias negadas, silenciadas, memórias enquadradas, memória ressentida, mas nos indagamos, como se constitui a memória, o que a compõe, o que ela lembra e o que ela esquece, por que guarda ou por que esquece. Entendemos que essas respostas não podem ser buscadas apenas nos elementos exteriores ao ser humano, como narrativas, comemorações, símbolos etc, mas, também, na constituição humana interior, no foro íntimo do ser em relação aos artefatos que produzem e sustentam as lembranças e os esquecimentos, que são também sociais.

Para tanto, circunscrevê-la nos impele a realizarmos um percurso em que a abordagem fenomenológica está incluída, acreditando que isso nos permitirá nos aproximarmos do que é a memória, e do que temos memória. Possivelmente não atinjamos uma resposta sem os aportes exteriores, o que nos permite, então, compreender que a memória não existe sem esses aportes materiais, e também que os aportes materiais de nada valeriam, se não tivéssemos do que lembrar e por que lembrar.

Contudo, na história, a memória desempenhou diferentes papéis. Sobrevalorizada ou minimizada, ela esteve sempre presente na história humana, e a fronteira entre história e memória é por demais tênue, muitas vezes sobrepõe-se, outras se distancia, mas o inegável é que a memória é a matriz da história.