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A migração para o Norte e a urbanização dos afro americanos

A Identidade do New Negro e a Harlem Renaissance

2.2. A migração para o Norte e a urbanização dos afro americanos

No início do século XX, Nova Iorque transforma-se num destino popular para os afro-americanos das zonas rurais do Sul, atraídos pela possibilidade de emprego, salários mais elevados e principalmente por um sistema não oficialmente segregado. Entre 1910 e 1920 estima-se que tenham migrado para o Norte 250.000 afro-americanos sulistas. Em 1910, 75 por cento dos afro-americanos viviam em zonas rurais e 90 por cento ainda residia no Sul. Embora em algumas cidades do Norte a população negra tenha aumentado antes de 1910 – designadamente em Nova Iorque onde de cerca de 60.500 habitantes em 1900 se passa para quase 92.000 em 1910 – as grandes migrações começaram em 1915, prolongando-se durante a década de vinte.8

O declínio do número de emigrantes europeus durante a I Grande Guerra, numa altura em que a mão-de-obra barata era absolutamente

8 Cary D. Wintz, Black Culture and the Harlem Renaissance (Houston and Texas: Rice Univ. Press, 1988), p.14.

essencial para a indústria contribui em muito para estas migrações.9 A

maioria das cidades que acolhem os afro-americanos vindos do Sul acaba por desenvolver guetos negros onde concorrem os factores da pobreza, do racismo e da segregação residencial.

Uma das consequências destes surtos migratórios foi a percepção da discrepância entre as promessas de um futuro melhor no Norte e a experiência bem diferente do contacto diário com o racismo, que foi sintetizada nas palavras do sociólogo Charles S. Johnson, membro do movimento de Harlem, em 1954:

There was a reassertion with vigor of the old and shaken racial theories, with «racial purity clubs», intelligence tests «proving» the unchangeable inferiority of the Negro and other darker peoples, Congressional restrictions of immigration according to rigid racial formulas, race riots, dark foreboding prophecies of the over-running of the white race by the dark and unenlighted hordes from Asia and Africa. 10

Uma outra consequência foi o facto dos intelectuais negros desenvolverem um grau de auto-confiança e de responsabilidade comunitária até então desconhecida, como se verá adiante.11

A emergência desta nova auto-consciência por parte dos intelectuais negros deveu-se a vários factores de ordem histórica, social, urbana e económica. O súbito aumento da população negra no tecido urbano do Norte criou uma densidade populacional elevada em determinados bairros nas cidades do Norte, nomeadamente em Chicago, Filadélfia, Cleveland, Detroit e no bairro nova-iorquino de Harlem, que

9 Em 1914 os imigrantes vindos da Europa perfizeram 1.218.480. Em 1915 o número baixou para 326.700 e três anos depois cifrava-se em 110.618, David Levering Lewis,

When Harlem Was in Vogue (Oxford: Oxford University Press, 1989), p.21.

10 Charles S. Johnson, «The Negro Renaissance and Its Significance» (1954) rpd. The

Portable Harlem Renaissance Reader, ed. David Levering Lewis (Nova Iorque: Penguin

Books, 1994), p.211.

também recebe imigrantes das Caraíbas.12 Como consequência do

aumento populacional, as condições de vida e de habitação degradam- se substancialmente, com o declínio das condições sanitárias e da qualidade da saúde pública. Neste bairro concentravam-se todos os grupos sociais que compunham a comunidade negra. Para além dos migrantes, residia no bairro uma classe média incipiente que viria a constituir-se como o público da produção literária do movimento. Harlem era igualmente o bairro da elite negra endinheirada e sofisticada que se concentrava na zona de Sugar Hill e que, de alguma forma, financiava as iniciativas literárias dos escritores mais jovens, promovendo-as através de festas mundanas, para as quais a elite convidava artistas, escritores e actores. O bairro nova-iorquino era, por isso, a «black metropolis», «the proud race capital» onde chegavam negros mais educados de todos os pontos do país, e onde a elite residia, mas era também um «black ghetto-in-the-making», onde acorria toda a restante população negra.13

Estavam criadas as condições sociais e demográficas para definir o new negro como urbano e educado por oposição ao old negro rural e ignorante, seguindo aliás a própria classificação de Alain Locke (1925):

12 No ensaio «Harlem on My Mind», Nathan Irvin Huggins descreve em pormenor a história do bairro desde a sua construção inicial para os brancos da classe média até à sua ocupação por negros. Huggins foca ainda as dificuldades económicas e a segregação ao nível do emprego, mesmo em áreas dirigidas especificamente à comunidade negra do bairro, como por exemplo, o comércio ou a saúde. Em 1914, residiam 60.000 negros em Manhattan, dos quais 50.000 viviam na área dos vinte e três quarteirões de Harlem. Em 1920, mais de 73.000 negros habitavam em Harlem, Nathan Huggins, «Harlem on My Mind», in Revelations: American History, American

Myths, ed, Brenda Smith Huggins (Oxford: Oxford Univ. Press, 1995), pp.21-26. Cary

D. Wintz, Black Culture, p.20.

The Old Negro, we must remember, was a creature of moral debate and historical controversy. His has been a stock figure perpetuated as an historical fiction partly in innocent sentimentalism, partly in deliberate reactionism. The Negro himself has contributed his share to this through a sort of protective social mimicry forced upon him by the adverse circumstances of dependence.14

No entanto, se é verdade que alguns negros com algum nível de escolaridade emigraram para Nova Iorque, também é verdade que a maioria, «like all migrant populations, were young people, generally unskilled and unmarried, the earliest Negro generations born in freedom».15 Seria abusivo falar-se do total da população de Harlem

como sendo parte constituinte do ideal do new negro, uma vez que uma fatia desta população era iliterada e não vivia o movimento: «The ordinary Negroes hadn’t heard of the Negro Renaissance».16 Aqueles que

nela se destacarão serão na sua maioria, homens e mulheres que tiveram acesso ao ensino universitário nas Universidades de Howard (Washington) e Brown (Nova Iorque). Muitos destes intelectuais só acorrem a Harlem após a sua educação estar concluída (Arna Bontemps, nascido no Louisisana, só chega a Harlem em 1924; Zora Neale Hurston, nascida na Flórida, chega em 1925 e Wallace Thurman só chega em 1926, vindo de Los Angeles). Está-se efectivamente a falar de uma reduzida minoria que corresponde a 0.1 por cento da raça.17

Desde o início do século que Harlem se vai construindo como a Meca da cultura negra, onde se instalam as associações de direitos

14 Alain Locke «Enter the New Negro», Survey Graphic 53, nº11 (1 Março 1925), rpd.

The Critical Temper of Alain Locke, p.7.

15 Gilbert Osofsky, Harlem: The Making of a Ghetto, p.20.

16 Langston Hughes, «When the Negro Was in Vogue» in The Big Sea (1940), rpd. The

Portable Harlem Renaissance Reader, p.80.

17 David Levering Lewis, «Introduction», The Portable Harlem Renaissance Reader, p.xiii.

cívicos como a NAACP e a NUL e donde Marcus Garvey lança o seu programa de nacionalismo negro.18 O facto de Harlem reunir os

representantes da cultura negra da época conduz também a que esta área residencial se transforme no palco paradigmático das diferenças de classe vividas entre os afro-americanos nortistas oriundos das pequeníssimas colónias de homens livres anteriores à Guerra Civil e os recém-migrados. Os nortistas eram membros de uma população formalmente educada e aculturada, cujos pais pertenciam à classe- média com ocupações profissionais na área dos serviços (barbeiros, alfaiates, médicos e ministros da igreja). Este grupo, com relações sociais próximas da comunidade branca protestante, acreditava na possibilidade de alcançar o direito de cidadania através da assimilação dos hábitos e comportamentos da sociedade dominante. Não viam com bons olhos a degradação rápida do seu estatuto social à medida que a sua cidade era invadida pelos migrantes.19 O crítico literário J.

Saunders Redding descreve esta dicotomia de classes quando fala das actividades e reuniões em que o seu pai, secretário da secção da NAACP em Delaware, participava nos anos vinte:

Subject to the common sufferings was no mass man, but classes and individuals, and what they endured together they examined separately in the powerful lights of personal and class interests and ambitions […] Within the Negro group there were bitter conflicts and grave contradictions.20

18 Cary D. Wintz, Black Culture, p.22.

19 David Levering Lewis, «Parallels and Divergences: Assimilationist Strategies of Afro- American and Jewish Elites from 1910 to the Early 1930s», The Journal of American

History 71, nº3 (Dezembro 1984), p.550.

20 J. Saunders Redding, On Being Negro in America (Indianapolis: The Bobbs-Merrill Publishers, 1951), pp.37-38.

Apesar desta divisão de classes sociais dentro da comunidade afro-americana, entre os antigos residentes e os recém-chegados, a realidade é que um dos problemas mais significativos dos afro- americanos de Harlem é a ausência de uma classe-média numericamente representativa, que sustentasse a actividade económica que aí se desenvolvia. Em meados dos anos trinta, das 10.300 empresas de Harlem, menos de 19 por cento eram detidas por negros.21

Um outro aspecto a considerar ainda, reflexo do aumento da população negra nas cidades do Norte, foi a maior atenção (muitas vezes mais negativa do que positiva) que a população negra despertou nos brancos, que, até então, praticamente a ignoravam em todas as suas expressões e formas de estar na vida.22 Nos anos vinte, a zona de

Harlem surge como uma cidade dentro da cidade, constituindo-se como pólo de atracção para muitos jovens artistas e intelectuais americanos brancos e para muitos visitantes nova-iorquinos, fascinados pela vida nocturna original que os bares de Harlem tinham para oferecer.

O advento da I Grande Guerra, para além de ter provocado a diminuição do fluxo de emigrantes do velho continente e, de certa forma, ter fomentado as migrações dos negros, teve ainda consequências indirectas na reconfiguração da imagem dos afro- americanos dos anos vinte. Foram, de facto, os soldados afro- americanos que sentiram mais profundamente os efeitos humilhantes da segregação a dois níveis: por um lado, a guerra confirmou o sistema segregacionista e discriminatório, ao colocá-los em unidades de apoio

21 Cary D. Wintz, Black Culture, p.35.

aos combatentes e não em batalhões de combate; por outro, criou-lhes novas expectativas em relação ao regresso após o serviço militar na Europa. Estes soldados esperavam vir encontrar um país grato pelo seu serviço e disposto a alterar a visão estereotipada dos negros, o que nunca chegaria a acontecer.

Embora em situações pontuais, os soldados tenham acabado por ser enviados para o campo de batalha em França (entre eles o escritor da Renaissance, George Schuyler) a herança a curto prazo do seu esforço de participação na guerra singrou-se, apenas, em maior intolerância racial.23 Especialmente no Sul, sente-se a necessidade no

pós-guerra de «put the nigger in his place», persistindo em excluí-lo dos sindicatos, do trabalho especializado e da política. 24

A guerra suscita assim, nos intelectuais negros, críticas contra o sistema de segregação no seu próprio país, pois defender a democracia no mundo implicava, obviamente, lutar por ela e pela liberdade em casa. Em 1919, W.E.B. Du Bois denunciaria este problema na revista The Crisis:

This is the country to which we Soldiers of Democracy return. This is the fatherland for which we fought! But it is our fatherland. It was right for us to fight. The faults of our country are our faults. ... We are cowards and jackasses if now that that war is over, we do not marshal every ounce of our brain and brawn to fight a sterner, longer, more unbending battle against the forces of hell in our land. ... Make way for Democracy! We saved it in France, and by the Great Jehovah, we will save it in the United States of America, or know the reason way. 25

23 David Levering Lewis, When Harlem Was in Vogue, p.12. 24 Ibid., p.48

25 W.E.B. Du Bois, «Returning Soldiers», The Crisis 18 (Maio 1919) rpd. W.E.B. Du Bois

A política de «colocar o negro no seu lugar», especialmente em relação aos aspectos de segregação laboral, vai acarretar a erupção da violência racial no Norte, a partir do Verão de 1919 - entre Junho e Dezembro contam-se vinte seis casos de ataques violentos aos negros, setenta linchamentos, entre os quais de dez soldados negros. Este Verão sangrento ficou conhecido pelo nome de red summer. O resultado visível destes conflitos é a transformação do «problema da raça» numa questão nacional, deixando de ser algo de longínquo e peculiar ao Sul.26