• Nenhum resultado encontrado

People e a National Urban League

2.5. A Harlem Renaissance

2.5.2. O New Negro de Alain Locke

Alain Locke é convidado por Paul Kellog, editor-chefe da revista liberal Survey Graphic, para editar um número especial com o título «Harlem: Mecca of the New Negro», que é publicado em Março de 1925.80 Ainda no Outono desse mesmo ano, sai a lume um livro que

consiste numa versão mais alargada da antologia de textos escolhidos para a revista. A revista foi um sucesso imediato, vendendo mais de 42.000 cópias, e o mesmo sucedeu com o livro, transformando-se ambos na «bíblia de Harlem».81

79 Ann Douglas, Terrible Honesty, p.5.

80 The Survey Graphic Harlem Number 6, nº6 (Março 1925)

http://etext.lib.virginia.edu/harlem/contents.html. Este convite a Locke surgiu durante o Civic Club Dinner patrocinado pela revista Opportunity e organizado por Charles S. Johnson, onde se pretendia juntar escritores afro-americanos e editores brancos. Este evento tem sido considerado o momento do lançamento oficial do New

Negro Movement.

81 Embora Alain Locke tenha assumido a selecção e edição deste número da Survey

O título da antologia - The New Negro - e o editorial da revista, «Enter the New Negro», indicavam a alteração da perspectiva cultural dos liberais brancos sobre o problema racial (ao terem demonstrado suficiente curiosidade para elaborarem uma edição especial da revista em colaboração com intelectuais afro-americanos).82 O título e o

editorial provavam, igualmente, a diferente consciência cultural da raça que os próprios intelectuais negros sentiam. No editorial, Alain Locke proclamava uma «renewed self-respect and self-dependence» acrescentando que a vida da comunidade negra iria entrar numa «new dynamic phase» e ainda que «the day of “aunties”, “uncles” and “mummies” is equally gone».83 O objectivo da compilação de textos de

muitos e variados escritores afro-americanos, incluindo ainda a colaboração de alguns brancos, fora inspirado nas ideologias dos Talented Tenth e nas ideias de emancipação de W.E.B. Du Bois, no seguimento natural do movimento intelectual que se fazia sentir desde o início da década de vinte no bairro nova-iorquino de Harlem, bem como na sequência de The Book of American Negro Poetry (1922) editado por James Weldon Johnson.

Locke desejava profundamente que a nova abordagem da cultura negra estabelecesse formas de relacionamento diferentes entre brancos e negros, catalizando a aceitação destes últimos pelos primeiros, a

S. Johnson reivindicaram para si próprios a paternidade da ideia inicial. Ver Abby Arthur Johnson, Ronald Maberry Johnson, «Black Renaissance», in Propaganda and

Aesthetics, p.70.

82 Abby Arthur Johnson, Ronald Maberry Johnson, «Black Renaissance», in

Propaganda and Aesthetics, p.72.

83 Alain Locke, «Enter the New Negro» (1925) rpd. The Critical Temper of Alain Locke, p.7.

partir desse momento passíveis de serem considerados como iguais, embora com heranças culturais distintas.84

Na esteira do pensamento de Du Bois, Locke parte assim duma visão cultural e não biológica da raça:

The best consensus of opinion then seems to be that race is a fact in the social or ethnic sense, that it has been erroneously associated with race in the physical sense and is therefore not scientifically commensurate with factors or conditions which explain or have produced physical race characters.85

Na procura da construção de uma identidade, o negro da Renaissance depara-se com vários problemas de ordem ontológica: em primeiro lugar, o que era afinal o negro: americano, negro ou ambas as coisas? E a sua herança cultural, seria distintamente negra ou americana? Estas questões levantaram-se ainda com maior premência quando, em paralelo a esta discussão, as imigrações dos europeus de várias etnias para os Estados Unidos vão precisamente catapultar para o discurso político estas problemáticas ligadas à hifenização étnica e cultural, como se assinalou na introdução deste capítulo:

There is ethnic hyphenation in the differences of race, origin and character among the various peoples who constitute the American citizenry. In the case of the negro, the hyphenation is insisted on.86

Alain Locke, para além da ênfase na cultura afro-americana que pretendia distinta, mas reconhecidamente válida, vai ainda mais longe

84 De notar que a primeira utilização da expressão «new negro» data de Junho de 1895, utilizada no editorial da Gazette de Cleveland aplicando-se a uma nova classe de negros com educação, classe e dinheiro que surgira após a Guerra Civil. De notar ainda que a expressão em apreço desde que surgiu sofreu várias interpretações, desde aquelas que defendem que a verdadeira essência do new negro era o seu comprometimento com a filosofia do self-help, passando pelas teorias que vêem neste conceito a ausência de tolerância perante a discriminação, até à associação do new

negro com o movimento pan-africano, in Cary D. Wintz, Black Culture, p.31.

85 Alain Locke, «The Concept of Race as Applied to Social Culture», Howard Review 1 (Junho 1924) rpd. The Critical Temper of Alain Locke, p. 426.

na sua análise da nova consciência positiva do new negro, considerando-a a chave para a participação afro-americana na democracia americana, isto é, para o afro-americano, a cultura seria o meio, por excelência, de atingir a participação plena na sociedade americana.

He now becomes a conscious contributor and lays aside the status of a beneficiary and ward for that of a collaborator and participant in American civilization.87

Aliás, Locke desenvolve neste ensaio a teoria de que os problemas com os quais os negros se deparam na sociedade de então não eram muito diferentes dos dos imigrantes em geral:

Why should our minds remain sectionalized, when the problem itself no longer is? Then the trend of migration has not only been toward the North and the Central Midwest, but city-ward and to the great centers of industry - the problems of adjustment are new, practical, local and not peculiarly racial. Rather they are an integral part of the large industrial and social problems of our present-day democracy. [...] With the Negro rapidly in process of class differentiation, if it ever was warrantable to regard and treat the Negro en masse it is becoming with every day less possible, more unjust and more ridiculous.88

A antologia reunia ensaios sociológicos e históricos, poesia, ficção, drama e ensaios críticos. De realçar a participação na antologia de autores afro-americanos da geração mais velha como James Weldon Johnson e Du Bois e, também, de colaboradores brancos como Melville J. Herskovits e Konrad Bercovici. Para além de ilustrações de artistas como Aaron Douglas, publicavam-se trabalhos dos jovens afro- americanos Countee Cullen, Jean Toomer, Jessie Fauset, Zora Neale Huston, Langston Hughes e Claude McKay. Estes escritores rejeitavam

87 Alain Locke, «Enter the New Negro» (1925), rpd. The Critical Temper of Alain Locke, p.9.

a tradição minstrel dos estereótipos e caricaturas dos negros, até aí a mais comum representação do negro, e procuravam afirmar tanto o valor da herança negra, como a esperança no futuro da raça, acentuando a americanidade do negro e a sua possibilidade de virem a ser integrados, ao contrário da perspectiva e propostas de Garvey.

O new negro propunha-se, assim, alcançar vários objectivos: queria colaborar e participar na civilização americana, preservando e implementando as suas tradições raciais originais; desejava ainda dar- se a conhecer aos outros, que utilizariam esse novo conhecimento do negro em substituição do «velho» estereótipo. Os negros deveriam deixar de ser encarados como um problema para a sociedade americana:

Of all three voluminous literature on the Negro, so much is mere external view and commentary that we may warrantably say that nine- tenths of it is about the Negro rather than of him, so that it is the Negro problem than the Negro that is known and rooted in the general mind.89

O editorial de Locke faz uma verdadeira celebração do new negro e do seu novo espírito. «The younger generation is vibrant with a new psychology; the new spirit is awake in the masses».90 Esta nova

percepção social, de acordo com Locke, dar-se-ia ao nível das duas raças, a branca e a negra, que abririam canais de comunicação e comunhão intelectual entre si, por forma a enriquecer as artes e letras americanas. Uma das premissas do conceito do new negro de Locke era o desenvolvimento das interrelações raciais entre as «more advanced and representative classes».91

89 Alain Locke, «Foreword», in The New Negro, ed. Alain Locke, p.xv.

90 Alain Locke, «Enter the New Negro» (1925), rpd. The Critical Temper of Alain Locke, p.7.

Locke dividia dicotomicamente a existência do negro entre vida interior - constituída pela lealdade e pelo sentimento de pertença à comunidade - e vida exterior em harmonia com os ideais da democracia e instituições americanas.

The Negro today is inevitably moving forward under the control largely of his own objectives. What are these objectives? Those of his outer life are happily already well and finally formulated, for they are none other than the ideals of American institutions and democracy. Those of his inner life are yet in process of formation, for the new psychology at present is more of a consensus of feeling than of opinion, of attitude rather than of program [...] Up to the present one may adequately describe the Negro’s “inner objectives” as an attempt to repair a damaged group psychology and reshape a warped social perspective.92

São duas categorias perfeitamente conciliáveis que contrastam claramente com as insolúveis categorias mentais bi-partidas de «twoness» e de «double consciousness» de W.E.B. Du Bois, pois estas últimas mantinham o afro-americano na constante ambivalência de ser americano ou de ser negro. Na leitura do ensaio de Locke esta ambivalência não existe de forma insolúvel, sendo possível viver positivamente os dois estados, aliás como Horace Kallen também teorizara. 93

92 Ibid., p.9.

93 Catherine Kerr defende que esta dicotomia é herança do pluralismo cultural de Horace Kallen, formulado dez anos antes de Locke. Kallen legitima o emigrante existencialmente dividido numa pessoa que vive interiormente a sua cultura de emigrante e vive também nas estruturas exteriores americanas, in Race in the Making

of American Liberalism, p.114. Horace Kallen afirma em 1915: «The immigrant group is

still a national group, modified, sometimes improved, by environmental influences, but otherwise a solidary spiritual unit, which is seeking to find its way out on its own social level. This search brings to light permanent group distinctions and the immigrant ... is thrown back upon himself and his ancestry. Then a process of dissimilation begins. The arts, life and ideals of the nationality become central and paramount; ethnic and national differences change in status from disadvantages to distinctions. All the while the immigrant has been uttering his life in the English language and behaving like an American in matters economic and political.» in Culture

Outra das premissas enunciadas no editorial da Survey Graphic é o apelo à verdade dos factos através da observação científica e sociológica do negro e da sua comunidade:

The Negro today wishes to be known for what he is, even in his faults and shortcomings, and scorns a craven and precarious survival at the price of seeming to be what he is not, even by his own, and to being regarded a chronic patient for the sociological clinic, the sick man of American Democracy.94

Locke estava, assim, a afirmar a independência do negro face aos estereótipos, defendendo uma nova maturidade social e psicológica assente no auto-respeito e orgulho da identidade racial. O afro- americano apresentava-se como um elemento de direito na democracia americana, contribuindo para ela de forma criativa. Na leitura de todo o editorial é possível constatar a nova imagem do negro, positiva e iluminada, cheia de fé nas capacidades criativas da comunidade negra em geral, e na geração mais nova em particular, ou pelo menos na comunidade intelectual negra da Harlem Renaissance, que acabaria, segundo Locke, por assumir o seu lugar próprio na vida institucional e social americanas.

Locke, num texto também integrado na edição da Survey Graphic, «Negro Youth Speaks», apresenta também um novo modelo do jovem artista e pensador independente que substitui (e à qual, de certa forma, se contrapõe) a imagem gasta do líder racial e dos seus seguidores, tal como Du Bois e Washington a tinham assumido. Os pioneiros da literatura afro-americana como Du Bois, Charles W. Chesnutt, Paul

94 Alain Locke, «Enter the New Negro» (1925), rpd. The Critical Temper of Alain Locke, p.9.

Lawrence Dunbar (1872-1906), e James Weldon Johnson falavam «for the Negro», procurando interpretar o conceito de raça pelos outros; a nova geração expressava-se «as Negroes» mostrando a todos a vida afro- americana.95 Locke consegue, assim, argumentar de forma convincente

que o negro pode e deve ser visto como diferente, mas uma diferença sempre positiva.

A chave de todo o movimento é uma clara aposta numa nova visão da raça, ou seja, numa identidade racial orgulhosa das suas especificidades próprias observadas de um ponto de vista inequivocamente positivo, e diferente das experiências dos outros grupos que constituíam o mosaico étnico americano.

E, contudo, tanto Locke, como Johnson e até o próprio Du Bois, pretendiam que estas novas manifestações artísticas tivessem um mesmo objectivo: transmitir a imagem de refinamento e sofisticação da comunidade negra; as imagens de vulgaridade como «nitty-gritty music, prose, and verse» não eram bem vistas.96

Apesar da fé lockiana no new negro permanecia a ambivalência da identidade cultural. Em The Autobiography of an Ex-Colored Man (editada com pouco sucesso em 1912 e reeditada em 1927 já com grande êxito) James Weldon Johnson vai, precisamente, equacionar a dificuldade dos artistas afro-americanos se inserirem quer na comunidade branca, quer na comunidade negra, representando-a no dilema de identidade do protagonista negro que, após fazer-se passar

95 Alain Locke, «Negro Youth Speaks», in The New Negro, ed. Alain Locke, p.48. 96 David Levering Lewis, When Harlem Was in Vogue, p.95.

por branco nessa mesma comunidade, pretende casar-se com uma mulher branca:

Up to this time I had assumed and played my role as a white man with a certain degree of nonchalance, a carelessness as to the outcome, which made the whole thing more amusing to me than serious, but now I ceased to regard “being a white man” as a sort of practical joke....

Then began the hardest struggle of my life, whether to ask her to marry me under false colors or to tell her the whole truth.97

A ambivalência da identidade do negro reflecte-se, igualmente, na pluralidade dos objectivos do movimento, que podiam ser vistos, tal como o poeta Claude McKay descreve, como a renascença «of talented persons of an ethnic or national group working individually or collectively, in a common purpose.» Mas existia uma outra tendência, que McKay também observa, pois muitos dos «talented Negroes regarded their renaissance more as an uplift organization and a vehicle to accelerate the pace and progress of smart Negro society.» 98 São estas

duas posições face aos objectivos e aproveitamento político do movimento que criariam o debate em redor daquilo que se procurava definir como a identidade do afro-americano: uma identidade cultural e artística distinta e original ou uma identidade moldada pelos padrões e valores da classe dominante branca.

97 James Weldon Johnson, The Autobiography of an Ex-Colored Man (1912) rpd. The

Norton Anthology, p.856.

98 Claude McKay, «The New Negro in Paris», in A Long Way From Home (1937) rpd. The

2.6. Responsabilidade social e comunitária v. liberdade