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A miscigenação em Freyre e a construção do mito da igualdade racial

Como já dito anteriormente mesmo antes da abolição já se de- senhava o “problema do negro”, que para as nossas elites significava a composição racial brasileira como o grande obstáculo ao progresso nacional.

Tendo como direcionamento os valores civilizatórios europeus e a compreensão de progresso, completamente desarticulada de um mínimo de investimento em ações do Estado que visasse educação, regulação do trabalho entre outras medidas. Passamos a uma discus- são de desenvolvimento nacional que articulava de maneira imediata supostas características raciais a progresso e desenvolvimento.

Isso contribui para explicar porque a discussão racial tomou larga dimensão e o Estado construiu políticas de investimento na imigração como solução do “problema negro” e ao mesmo tempo do progresso (CARVALHO, 2002; ANDREWS, 1998). E por fim a democracia racial de muitos modos substituiu a discussão da demo- cracia política é como se pudesse ocorrer uma transposição, se exis- tisse uma democracia racial existiria uma democracia política, talvez não seja admirável que a síntese dessa ideia se dê em meio a um pe- ríodo de suspensão dos diretos políticos no período Vargas (HAN- CHARD, 2001).

A propósito, a concepção de democracia racial esteve balizada pelo fato de existir miscigenação racial. Daí conclui-se que é este um empecilho natural ao racismo. De certo modo, assim como a demo- cracia política foi vivida de modo quase esporádico ao longo da his- tória brasileira, a democracia racial não passou de um idílio baseado em algumas exceções que mais confirmaram a regra das injustiças calcadas no racismo.

Em 1933, Freyre lança Casa Grande e Senzala, que trouxe em seu bojo uma nova forma de discutir a questão racial. A obra de Freyre

centra-se na formação social brasileira, seu maior feito provavelmen- te foi colocar as três raças como construtoras da sociedade brasileira, afirmando que cada uma delas contribui com sua cultura para a for- mação social brasileira, e nos seus trabalhos posteriores continuou a desenvolver tais teorias (FREYRE, 1998).

Outro mérito da obra é a retomada histórica do Brasil pro- curando ressignificar os aspectos antes tidos como depreciativos da nação brasileira. É uma revalorização da nacionalidade, procurando exaltar as características nacionais, principalmente a ideia de um país em que as raças conviviam de modo harmonioso e que, diferente- mente dos Estados Unidos, não existia um violento conflito racial.

Ainda sobre a obra de Freyre, trata-se de um elogio ao mesti- ço – e a mestiçagem como estratégia – como o grande representante nacional, é ele o grande símbolo da democracia racial. É a fusão das três raças tanto em nível cultural quanto biológico que deu ao Brasil a sua nacionalidade. A questão é que mais uma vez tratou-se de uma armadilha, porque recai sobre a tese da miscigenação como resolução da questão racial nacional, e da questão do progresso nacional.

Ainda que de maneira diferenciada das teorias racistas adap- tadas à realidade brasileira, Freyre também colocava a miscigenação como resolução da questão racial no Brasil. É como se ao criar a fi- gura do mestiço o Brasil naturalmente resolvesse seu problema racial, pois as barreiras raciais não seriam rígidas no Brasil, e uma convivên- cia harmônica se estabeleceria. De certo modo não deixa de ser uma solução biológica, pois é o intercurso físico que cria o tipo brasileiro e que nos leva ao status societário acima mencionando (SISS, 2003).

Assim como ocorre a mistura racial ocorre para Freyre (1998) a mistura cultural, o sincretismo cultural compõe a nacionalidade. As culturas se imbricaram de tal maneira que este cruzamento em si é a cultura nacional, mas ao fazer esta colocação o autor, novamente, coloca a questão racial como algo solucionado, pois reconhece a par- ticipação das três culturas fundantes do Brasil e afirma que elas se

fundiram para formar a cultura brasileira. É mais uma saída apologé- tica para a situação real de discriminação racial no Brasil.

Assim a discussão Freyriana fez a proposição do intercurso se- xual entre senhores de escravos e mulheres negras escravizadas como símbolo da não existência de racismo (no sentido de aversão) àqueles considerados negros. A questão que parece ficar fora da discussão tem relação com qual o lugar reservado à mulher negra nessa narra- tiva e que, ao final, a miscigenação tem um curso - e este curso é o branqueamento dos brasileiros.

Outro ponto nevrálgico parece estar localizado no que tange à escravidão e ao nível de autonomia de uma pessoa escravizada sobre seu corpo, e qual a possibilidade de consentimento para esse tipo de relação que, por definição, já era completamente assimétrica (SILVA, 2006).

Ainda é preciso considerar a “confusão” entre intercurso se- xual e ausência de preconceito, Stolke (2006) citando Bastide, vai dizer que “sexo” sem casamento na ordem societária tanto no perío- do escravocrata quanto no momento em que Freyre esta escrevendo significa apenas o uso e abuso do corpo feminino, que não possuía nenhuma legitimidade para exigir nada.

Logo, essa mulher tornada escrava (e mesmo aquelas libertas), não é mais que um instrumento da satisfação desse homem branco europeu detentor de posse, obviamente houve exceções, mas elas não mudam o modo de organização vigente e as profundas marcas que este deixou. (SILVA, 2006)

Nesse sentido a própria masculinidade desse homem é reifi- cada através do abuso do corpo da mulher negra; é como se ao final fosse um atestado dessa masculinidade. Por outro lado, esse corpo é como o hospedeiro necessário à gênese de um novo ser: o “mulato” (SILVA, 2006).

Quanto ao “mulato”, “mestiço”, “pardo”, “moreninho” etc., seria, segundo o pensamento de Freyre (1998), o que com o tempo iria

tornar-se o branco dos trópicos, tanto pelos próprios processos de miscigenação que tornariam a população cada vez mais branca, como pela sua busca pelo status da branquidade.

Três meninas do Brasil, três corações democratas Tem moderna arquitetura ou simpatia mulata Como um cinco fosse um trio, como um traço um fino fio

No espaço seresteiro da elétrica cultura Deus me faça brasileiro, criador e criatura Um documento da raça pela, graça da mistura Do meu corpo em movimento, as três graças do Brasil

Têm a cor da formosura

(...) Serenatas do Brasil, eu serei três serenatas Uma é o coração febril, a outra é o coração de lata A terceira é quando eu crio na canção um desafio Entre o abraço do parceiro e um pedaço de amargu- ra...

(Moraes Moreira: meninas do Brasil http://letras. mus.br/moraes-moreira/47517/)

A despeito de ser um marco de reação às teorias biológicas de cunho racista, a perspectiva teórica de Freyre é um sistematizador do ideário da democracia racial, um modo de pensar que se instalou no imaginário nacional e que invisibilizou as desigualdades sociorraciais.

Por fim, gostaríamos de trazer um quadro síntese baseado no texto de Joel Rufino dos Santos (1984) onde o autor situa algumas das manifestações mais usuais de racismo no Brasil:

“Racismo à brasileira”

As classes populares no Brasil são de modo geral visto como animais (lembrando que no Brasil, pobres são em sua maioria negros, segundo o Atlas Racial Brasileiro [2005] 65% dos pobres e 70% dos indigentes são negros.)

Os Brancos são melhores que os demais grupos raciais.

Tudo que é negro tem valorização negativa (“vala negra”, “ovelha negra”, “peste negra”) Apagamento da cor de referências negras, vide Machado de Assis, Dalva de Oliveira dentre outros.

A introjeção do racismo no corpo dos sujeitos negros e a ojeriza aos seus traços físicos, bem como a aversão por relações com aqueles que são “iguais”, muitas vezes é utilizada como o racismo do negro com o negro, sem considerar que a estética negra, jamais é vista como bela no máximo serve para uma “trepada exótica”. A brancura e a branquidade representam sempre a pureza, a limpeza.

A relação direta entre fenótipo e características de comportamento ou sentimentos etc., (judeus são avaros, índios são preguiçosos, negros são marginais)

Ninguém é racista no Brasil (segundo pesquisa do instituto Datafolha 87% dos não brancos não viam problemas em frases de cunho racista, embora apenas 10% tenham se colocado como racistas [FERNANDES,1995, p.3])

É o povo - leia-se os não brancos pauperizados - os culpados pelo Brasil não ter o nível de “progresso” desejado pelas elites nacionais.

Fonte: Santos, 1984.

Essa breve síntese nos ajuda a situar algumas formas clássicas de manifestação do racismo, nos auxilia a compreender o racismo ambiental e institucional e como estes contribuem no ciclo de iniqui- dades impetradas contra a população negra.

Rupturas e continuidades no racismo hoje: