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O movimento feminista e a luta contra a desigualdade de gênero

Os movimentos sociais são um dos espaços de luta e resistência que possibilitam a organização política dos sujeitos que buscam, em suas bandeiras de luta, o reconhecimento e legitimação de direitos. No caso da desigualdade de gênero, o movimento feminista foi um dos grandes expoentes a denunciar ainda em 1930, no Brasil, a si- tuação das mulheres em relação aos direitos sociais, políticos, civis e econômicos.

De acordo com Osterne (2008), o feminismo brasileiro se ori- ginou em meados do século XIX, reivindicando principalmente a cidadania às mulheres, que, conforme a sociedade tradicional, de- veriam permanecer confinadas à esfera privada e excluídas da esfera

pública, não tendo nem mesmo seus direitos políticos resguardados5.

Durante o século XX, surgem no cenário nacional três diferen- tes correntes do feminismo. A primeira sofreu influência de Bertha Lutz, que, durante a fase inicial do feminismo no Brasil, foi um nome de grande expressão, por centrar a luta na inclusão das mulheres como cidadãs. A segunda corrente, denominada feminismo difuso, era composta pelas mulheres pertencentes à ala considerada culta, com participação de feministas professoras, escritoras e jornalistas, que expressam suas manifestações através da imprensa, principalmente nos jornais feministas da época (OSTERNE, 2008).

Tais mulheres defendiam um leque mais amplo de direitos, como, por exemplo, o acesso à educação. Explicitavam temas até mesmo considerados polêmicos para a época, como o divórcio e a sexualidade. Essa vertente também sinalizava temáticas concernentes à dominação masculina. Já na terceira corrente, as mulheres advi-

5 É necessário destacar a posição de algumas feministas negras sobre o processos de luta e organização do movimento feminista no Brasil. Sueli Carneiro (2001, p. 05-06) traz em suas pesquisas e análises a diferença de organização e pautas reivindicativas entre os movimentos feministas negro e branco. Como afirma a autora: “Nós, mulheres negras, fazemos parte de um contingente de mulheres, provavelmente majoritário, que nunca reconheceram em si mesmas esse mito, porque nunca fomos tratadas como frágeis. Fazemos parte de um contingente de mulheres que trabalharam durante séculos como escravas, nas lavouras ou nas ruas, como vendedoras, quituteiras, prostitutas... Mulheres que não entenderam nada quando as feministas disseram que as mulheres deveriam ganhar as ruas e trabalhar! Fazemos parte de um contingente de mulheres com identidade de objeto. Ontem, a serviço de frágeis sinhazinhas e de senhores de engenho tarados. Hoje, empregadas domésticas de mulheres liberadas e dondocas, ou de mulatas tipo exportação. [...] Portanto, para nós se impõe uma perspectiva feminista na qual o gênero seja uma variável teórica, mas como afirmam Linda Alcoff e Elizabeth Potter, que não “pode ser separada de outros eixos de opressão” e que não “é possível em uma única análise. Se o feminismo deve liberar as mulheres, deve enfrentar virtualmente todas as formas de opressão”. A partir desse ponto de vista, é possível afirmar que um feminismo negro, construído no contexto de sociedades multirraciais, pluriculturais e racistas – como são as sociedades latino-americanas – tem como principal eixo articulador o racismo e seu impacto sobre as relações de gênero, uma vez que ele determina a própria hierarquia de gênero em nossas sociedades”.

nham do movimento anarquista e do Partido Comunista Brasileiro e tinham como principal luta a libertação da mulher e pautavam o fim da exploração do trabalho feminino.

Nos anos de 1930, os direitos políticos foram regulamentados, oportunizando acesso à profissionalização. Nesse período, a cidada- nia era reconhecida a partir da atividade produtiva desenvolvida, as mulheres que se dedicavam às atividades domésticas, por exemplo, não entravam nesse grupo, pois esse tipo de trabalho não era conside- rado produtivo. Os/as que não se encaixavam nessa condicionalidade eram tidos/as como pré-cidadãos.

Se não eram consideradas cidadãs, não poderiam exercer e go- zar de todos os direitos civis e políticos. Votar e ser votada foi a prin- cipal bandeira de luta dessa época que teve como marco expressivo o Estado do Rio Grande do Norte, que, em 1927, na pessoa do então presidente, Juvenal Lamartine, por meio das articulações junto aos parlamentares estaduais, elaborou uma lei para que o referido Estado legitimasse o voto feminino. Com a lei sancionada, muitas mulheres recorreram à Justiça para que fosse legalizada na prática, porém, so- mente em 1932 o Código Eleitoral brasileiro incluiu-as como votan- tes e possíveis candidatas.

As mulheres organizadas no movimento feminista sofriam grandes rebatimentos da sociedade e do Estado, eram consideradas de má índole e prejudiciais a ordem e a família. Em 1937 a Ditadura Varguista tenta reprimir o movimento, porém, mesmo nesse cenário adverso, foi possível uma margem de resistência, tanto que em 1949 criaram o Conselho Nacional de Mulheres, que objetivou fortalecer a luta das mulheres (OTTO, 2004).

Com maior expressividade, o movimento feminista ressurge na cena pública no período da Ditadura Militar no Brasil, em que se insere na luta contra o regime e os valores tradicionais que subordi- navam a mulher. Mesmo com as configurações do Estado brasileiro sob o comando do governo militar, caracterizado pela supressão dos

direitos políticos, censura, perseguições, desaparecimento e torturas de líderes e militantes de esquerda, o movimento feminista não su- cumbe, surgindo novamente na cena pública, na década de 1970, na luta por legislações igualitárias, pela anistia, contra a discriminação e em prol da democratização do Estado (OSTERNE, 2008).

Esse feminismo, que se fortalecia no cenário brasileiro, recebeu influências das experiências feministas europeias e norte-americanas. Conforme Sarti (2004, p. 36), o feminismo brasileiro se configurava em diferenciadas manifestações, contudo.

Embora o feminismo comporte uma pluralidade de manifestações, ressaltar a particularidade da articula- ção da experiência feminista brasileira como momento histórico e político, no qual se desenvolveu é uma das formas de pensar o legado desse movimento social, que marcou uma época, diferenciou gerações de mulheres e modificou formas de pensar e viver. Causou impacto tanto no plano das instituições sociais e políticas, como nos costumes e hábitos cotidianos, ao ampliar definiti- vamente o espaço de atuação pública da mulher, com repercussões em toda sociedade brasileira.

Esse impacto nos hábitos e costumes da época remonta ao final dos anos de 1960 e início dos anos de 1970, período em que as mu- lheres estiveram na luta armada contra o regime ditatorial brasileiro. Tal expressão não se resumia à luta contra os anos de chumbo, mas significou o rompimento e a negação do papel que era designado à mulher, legitimado pelos valores e atributos tradicionais.

Existiram momentos importantes que fortaleceram as lutas das mulheres, como a definição de 1975, pela Organização das Nações Unidas (ONU), como o Ano Internacional da Mulher. No Brasil, ocorreu um evento em comemoração ao referido ano, promovido pelo Centro de Informação da Organização das Nações Unidas (ONU). A temática era O papel e o comportamento da mulher na realidade bra-

sileira. Essas discussões e encaminhamentos impulsionaram a criação

do Centro de Desenvolvimento da Mulher Brasileira.

De acordo com Sarti (2004), a legitimação do Ano Interna- cional da Mulher contribuiu para a eclosão do feminismo brasileiro na década de 1970. No Ano Internacional da Mulher, os movimen- tos que ainda atuavam na clandestinidade se fortaleceram e influen- ciaram a criação de outras organizações. Citando o exemplo de São Paulo, Sarti (2004) exemplifica o Brasil Mulher, o Nós Mulheres e o

Movimento Feminista pela Anistia.

Outro momento similar aconteceu em 1978 com a produção das Cartas às mulheres, para serem entregues aos candidatos à eleição, que continham reivindicações mais gerais referentes à anistia ampla, geral e irrestrita, o fim da carestia e a realização de eleições livres e diretas, além de outras mais específicas concernentes à criação de creches nas empresas, áreas de lazer, igualdade salarial e condições mais dignas de trabalho.

Nesse período, o feminismo se expande como movimento so- cial, organizando-se conjuntamente com as camadas populares, as organizações de bairro, a Igreja Católica e os partidos políticos. As organizações feministas se fortaleceram como segmento do trabalho pastoral baseado na Teologia da Libertação.

Conforme Sarti (2004), as articulações do feminismo com tais segmentos tinham como bandeira de luta comum a extinção do re- gime militar. As divergências no interior desses movimentos não se explicitavam publicamente. Questões relativas ao aborto, à sexuali- dade e ao planejamento familiar aconteciam no âmbito privado do movimento através de restritos grupos de reflexão. Corrêa (2001, p. 14) retrata esse período da seguinte maneira:

[...] várias das iniciativas mais organizadas do mo- vimento estavam vinculadas à Igreja ou ao Partido – embora houvesse um permanente ponto de fricção nessa aliança com a Igreja, que era a defesa do aborto

feita pelas feministas. Também havia fricções com os militantes comunistas, mas por outras razões: no caso deles tratava-se de dar prioridade à “luta mais ampla” em detrimento das reivindicações feministas e o ata- que à participação de lésbicas no movimento foi uma das táticas utilizadas para tentar impedir a realização de um congresso feminista [...].

Outro fator pertinente apontado por Sarti (2004) é a forma como os movimentos sociais no Brasil se instituíam nessa época. Eles conseguiam enraizar-se nos cotidianos das populações, pois tinham como fundamento as bases locais, alcançando os/as moradores/as das periferias que, através dessas organizações, questionavam suas condi- ções e dirigiam suas demandas ao Estado.

No caso das mulheres, o formato dessas organizações pro- porcionou sua participação nos movimentos de bairro, propiciando outras experiências para além do espaço doméstico, fazendo-as par- ticipar de discussões que pautavam a condição da mulher e sua iden- tidade de gênero.

Mesmo com as contradições do movimento feminista e a fra- gilização que sofreu no período do regime militar, ele conseguiu, es- pecificamente no período de reabertura democrática, entre 1975 e 1985, pautar suas reivindicações junto à sociedade civil, incomodan- do o poder político estabelecido.

Com a reabertura política, alguns grupos de mulheres decla- ram-se feministas, tanto oportunizando reivindicações no âmbito das políticas públicas como desencadeando uma reflexão mais apro- fundada da desigualdade de gênero e do lugar social da mulher, o que contribuiu para consolidar a noção de gênero como referência de análise da situação da mulher no cenário nacional.

Em 1979, ano de concessão da anistia aos exilados e exiladas políticas, as mulheres que estavam no exílio iniciam seu retorno ao Brasil. Traziam consigo a experiência política que passaram durante os anos de chumbo e também influências do movimento feminista

europeu e da vivência em outros países de culturas diversas, em que presenciaram organizações familiares e privadas diferentes das tradi- cionais e patriarcais brasileiras.

Em 1980, surgiram nacionalmente várias organizações de apoio à mulher em situação de violência, cabendo o pioneirismo ao SOS Mulher de São Paulo, que oferecia um espaço de reflexão as que estavam vivenciando situações de violência.

Já entre 1980 e 1990, surgem as Organizações Não Governa- mentais (ONG) feministas que não necessariamente nasceram a partir da militância dos movimentos sociais. As organizações eram compos- tas por mulheres de condições variadas, mulheres rurais, prostitutas, negras, em situação de violência, acometidas com o vírus da AIDS.

O surgimento das ONGs compostas por grupos do movimento feminista acarretou o enfraquecimento da luta desse movimento, pois esses setores passaram a limitar suas pautas apenas na disputa por orça- mentos governamentais para a efetivação de políticas para as mulheres. A institucionalização de uma parte significativa do movimento rebateu na organização deste, no seu caráter contestatório e de mobilização. Vale ressaltar que, no início do surgimento das ONGs, o movimento feminista faz desse espaço um lócus de captação de recursos para a implementação de inúmeras ações e pautas do movimento.

As ONGs, na década de 1960, possuíam como prio- ridade o assessoramento aos movimentos sociais e, inclusive, angariavam recursos para os mesmos. São, nesse momento, grandes aliadas, na condição de for- talecedoras dos movimentos sociais. Essa perspectiva de atuação é radicalmente modificada nos anos 1980 e 1990, décadas nas quais essas instituições proliferam em dimensões gigantescas. É válido relembrar que o contexto histórico proporcionador da “onguização” é marcado pelo neoliberalismo, articulado ao enfraque- cimento e à desmobilização dos movimentos sociais classistas (CISNE, 2013, p. 185).

Aliado a esse contexto, surgem às várias críticas ao movimento que se caracterizava por mulheres de classe média, brancas, intelectu- ais e heterossexuais, não incluindo em suas pautas as mulheres negras e de orientações sexuais diversas. O que passou a explicitar a hetero- geneidade do movimento feminista.

Mesmo com algumas divergências teóricas e políticas o mo- vimento feminista foi, e ainda é, um grande expoente na luta contra a desigualdade de gênero. Historicamente propiciou a discussão de elementos primordiais para se repensar a condição de vida e trabalho das mulheres na sociedade brasileira. Pautou questões referentes à distinção entre a esfera pública e a esfera privada, uma vez que esta última era designada âmbito natural da mulher; discutiu temas con- cernentes à família, à sexualidade feminina, à relação com o corpo, às condições do trabalho doméstico e à divisão sexual do trabalho.

O movimento feminista foi o grande impulsionador das polí- ticas para as mulheres no Brasil. Suas reivindicações e bandeiras de lutas determinaram a criação dos serviços e instituições destinadas às mulheres, sendo inegável sua influência na criação e fortalecimento dessas políticas. Trouxe, também, uma considerável contribuição aos estudos de gênero, desnaturalizando as relações sociais, opressões e hierarquias. Gênero se torna uma categoria analítica e histórica in- fluenciando as Ciências Humanas e Sociais. O tópico a seguir se des- tina a discussão conceitual das relações de gênero, compreendendo- -as como um elemento chave para o entendimento das desigualdades