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2.3 Apologia da Kunstreligion em «Cartas para a minha família»

2.3.1 A missão social das belas artes na sociedade secularizada

Como ainda veremos209, Júlio Dinis assevera que já Soares de Passos – o poeta-sacerdote –

defendia a conceção de civilização apontada no item anterior, que se relaciona diretamente com uma noção de arte como religião. É neste sentido que o nosso autor defende que é à arte que compete a educação moral e cívica do povo português – quando a religião oficial já não se mostra capaz de cumprir devidamente as funções que até aí lhe eram próprias, na sociedade portuguesa da segunda metade do século XIX. Uma sociedade que vive um ace- lerado processo de secularização – que se revela, principalmente, na progressiva diminui-

208 Sobre este assunto, cf. Ibidem, pp. 228-236. 209 Sobre este assunto, cf. o item 3.1 deste estudo.

67 ção de influência moral, social e política da esfera religiosa na esfera secular, sobretudo, nos sectores urbanos mais intelectualizados210.

As transformações socioeconómicas da segunda metade do século XIX, que conduzem à sistemática expropriação dos bens da Igreja, também contribuem de forma significativa para este enfraquecimento do catolicismo, numa grande parte das suas competências, so- bretudo em termos de afirmação ideológica e institucional211. Esta é uma realidade que

Júlio Dinis regista no início do capítulo IV de uma das suas Crónicas da Aldeia – A Mor-

gadinha dos Canaviais –, quando descreve a ‘casa do Mosteiro’, relatando um pouco da

sua história, de forma não isenta de uma certa ironia crítica em relação ao alcance das refe- ridas medidas governamentais:

A casa do Mosteiro, com a quinta anexa à casa, como o dava a entender o nome, pelo qual o povo a conhecia, tinha pertencido em tempo a uma ordem monástica.

Era um destes conventos campestres, que hoje ou se encontram em ruínas ou transforma- dos em solar de alguma ‘notabilidade’ provinciana. Ao de que falamos coubera o último destino.

Incluído, depois do acto ditatorial de 1834, na lista dos bens nacionais, fora, por insignifi- cante preço, vendido a um modesto proprietário das imediações, mais arrojado do que os vizinhos, ou mais convencido da estabilidade da nova ordem de coisas políticas, que se inaugurava no País.

E em tão auspiciosa hora lhe acudira aquela inspiração, que, em pouco tempo, lhe restituía a quinta o capital empregado, regalando-o todos os anos com não calculados juros, e ele,

210 Referindo-se à história do ‘intelectual’, Rui Ramos esclarece que a mesma «não começa com a simples

existência de letrados numa certa sociedade, mas quando esses letrados se concebem a si próprios como uma elite política com uma missão específica». Foi o que aconteceu com os principais escritores da geração de 1865-1872, que «pensaram-se e tenderam a actuar como um grupo (uma ‘escola’) definido, não pela simples profissão das letras, educação ou origem de classe, mas pela missão de resgataram [sic] o país da incerteza e estagnação em que jazia depois de a revolução liberal ter destruído a tradição católica e monárquica que dera um sentido à vida colectiva durante séculos. Por isso, toda a sua literatura tem um assumido sentido de crítica política e social. Comportaram-se como uma intelligentsia, no sentido que os escritores russos deram à pala- vra no século XIX»: cf. RAMOS, Rui – A formação da intelligentsia portuguesa (1860-1880). In Análise

Social. XXVII:116-117 (1992), pp. 484 ; 527. Como vimos anteriormente, os estudiosos desta matéria tam-

bém reconhecem esta dimensão política que a Kunstreligion (religião da arte) assumiu na segunda metade do século XIX. Sobre este assunto, cf. o item 1.3 deste estudo.

211 Nas palavras do autor que estamos a seguir neste momento: «A partir de 1860 começou uma nova onda de

expropriações de bens dos conventos, colégios, misericórdias ou seminários. Justificavam-se estas expropria- ções com os efeitos positivos para o progresso geral da agricultura, a obtenção de maiores rendimentos e a melhoria do mercado financeiro»: DIX, Steffen – As esferas seculares e religiosas na sociedade portuguesa. In Análise Social. XLV:194 (2010), p. 12.

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sem intermitências, cresceu daí por diante em prosperidade a ponto de deixar, ao morrer, a família no número das mais abastadas da terra.212

Tendo sido declarado no artigo 17 da Constituição de 1822 a religião oficial da nação por- tuguesa, o catolicismo em Portugal vai, porém, degenerando durante o século XIX213, a

ponto de o próprio clero ter, nessa altura, um aspeto bastante secular214. Esta é uma reali-

dade que Júlio Dinis também regista, por exemplo, no capítulo XIX da Crónica da Aldeia acima referida, quando descreve a figura do ‘missionário’, nos seguintes moldes:

O confessionário de onde ela se afastara, abriu-se, enfim, e às vistas, que para ali se volta- ram, mostrou um padre gordo, corado, de olhos e fronte pequenos, cabelos grisalhos, rom- pendo-lhe a um dedo das sobrancelhas. O homem parou algum tempo a fitar o auditório. Espalhou-se no templo um sussurro particular; um movimento comum animou aquelas ca- beças todas, quando este homem apareceu.

Era o missionário.

A sua passagem para a sacristia foi uma passagem verdadeiramente triunfal. Curvaram-se até ao chão as beatas, beijando-lhe a mão ou as borlas da batina, e pedindo-lhe a bênção, que ele distribuía com profusão […]

212 DINIS – Obras, vol. 1, p. 269.

213 Num artigo intitulado «Desacato á religião», publicado em 1853, na Revista Universal Lisbonense, Deme-

trio Ripamonti, critíca a forma como são celebradas, nesse tempo, as cerimónias religiosas na cidade de Lis- boa. Na origem desta crítica encontram-se as recentes ocorrências «em algumas freguezias durante os offi- cios da Semana Santa», «onde se cometteram escandalos que reclamam a immediata intervenção não só da autoridade civil, afim de serem rigorosamente punidos aquelles individuos, que esquecendo o alto respeito que devem ao sanctuario de Deus se arrojaram premeditadamente, segundo parece, a promover naquelle recinto assuada e tumulto; como da auctoridade ecclesiastica, para que tomando conhecimento dos factos e das causas que lhes deram logar, evite para o futuro a renovação de iguais escandalos». Estas cerimonias religiosas – que «por zelo e dedicação de algumas Irmandades» são celebradas com «pompa e esplendor» – atraem uma considerável multidão de espíritos curiosos que, não sendo movidos por um «verdadeiro senti- mento religioso», se encontram quase sempre na origem das «irregularidades praticadas». São estes os escân- dalos que devem futuramente ser evitados – como salienta Ripamonti na passagem acima citada, apelando, nesse sentido, à intervenção do ‘sr. Cardeal Patriarca, como chefe do clero’. Uma intervenção que se revela urgentemente necessária, porque os ‘abusos’ que têm sido introduzidos nas ‘funções religiosas’, por parte de ‘algumas Irmandades’, colidem com o que ‘a civilização de hoje’ aprova. Redigido em 1856, o conteúdo deste artigo inserido na Revista Universal Lisbonense é bastante esclarecedor, no que concerne a atuação do clero regular em Portugal. Uma atuação que, como salienta Ripamonti, já não se coaduna com os valores da civilização moderna – ou seja, não está em consonância com os valores por que se rege nesse tempo a socie- dade portuguesa, que já apresenta fortes indícios de uma secularização manifesta: cf. RIPAMONTI, Deme- trio – Desacato à religião. In REVISTA universal lisbonense : jornal dos interesses phyisicos, moraes e litte-

rarios por uma sociedade estudiosa. 5:38 (1853), p. 456. 214 Cf. DIX – As esferas seculares, pp. 10-11.

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Apesar do exemplo de Sterne, que não duvidou entressachar nas páginas humorísticas da

Vida e opiniões de Tristam Shandy, um sermão sobre a consciência, eu não ouso transcre-

ver para aqui o modelo de eloquência sacra, recitado pelo missionário naquele dia. Ainda se eu pudesse transmitir aos leitores o tom rouco de voz, a extravagância de gestos, o decomposto dos movimentos com que o orador acompanhava a recitação dos descosidos períodos daquela indigesta prática, talvez me animasse à empresa, para lhes dar um exem- plo da vigorosa eloquência, com que se anda atrasando a civilização do povo e prejudican- do a verdadeira religião, a despeito dos bons sacerdotes, [sublinhado nosso]215 cuja voz é

abafada por aquela gritaria.

As mais tétricas e pavorosas imagens adornavam o discurso.

Era o enxofre a ferver […] O tribunal de Deus foi arvorado em tribunal de santo Ofício, onde os autos-de-fé, os potros, e cavaletes aguardavam os delinquentes arrastados até ali; eis o resumo da oração […]

Na escultura de Cristo, obra rude do buril popular, mostrava o vulto de um acusador, sur- gindo ali a pedir vingança, e não o do Redentor sublime a implorar e prometer perdão.216 Como se pode verificar pela leitura da passagem acima transcrita, o sermão proferido pelo missionário – ‘padre gordo’ e ‘corado’, que passa do ‘confessionário’ para a ‘sacristia’ de forma ‘verdadeiramente triunfal’, distribuindo bênçãos ‘com profusão’ às ‘beatas’ da al- deia – é alvo da crítica irónica de Júlio Dinis. Uma intenção pedagógica que o nosso autor expressa logo à partida, quando menciona as ‘páginas humorísticas’ da obra de Sterne, onde é introduzido ‘um sermão sobre a consciência’. Uma alusão muito significativa, que alerta o leitor para as intenções de Júlio Dinis que, com a crítica religiosa que expõe ironi- camente ao longo do referido capítulo XIX de A Morgadinha dos Canaviais217, pretende

que esta sua Crónica da Aldeia assuma uma função social moralizante. Daí que o nosso autor esclareça que tanto o padre – com o seu ‘tom rouco de voz’, a sua ‘extravagância de gestos’ e o ‘decomposto’ dos seus ‘movimentos’– como o sermão que ele profere – um discurso que corresponde a uma ‘gritaria’, onde ressaltam as ‘mais tétricas e pavorosas imagens’ – constituem um exemplo negativo de propagação religiosa, atraiçoando a men-

215 Como de pode verificar, Júlio Dinis contrapõe aqui a ‘verdadeira religião’ e os seus ‘bons sacerdotes’ – ou

seja, a Kunstreligion (religião da arte) e os verdadeiros artistas – ao catolicismo.

216 DINIS – Obras, vol. 1, pp. 441-443. 217 Cf. Ibidem, pp. 437-448.

70 sagem evangélica e, consequentemente, a ‘verdadeira religião’ (instituída pelo ‘Redentor’) e os seus ‘bons sacerdotes’. Esta ‘indigesta prática’ religiosa (ironicamente apelidada de ‘modelo de eloquência sacra’), ministrada de forma imperativa e inquisitorial, intenta so- mente propagar o temor a um falso deus, que o povo da aldeia, e sobretudo as beatas – na sua credulidade ingénua – identificam na pessoa do missionário, que, pela forma como é apresentado pelo narrador, espontaneamente surge na imaginação do leitor como uma figu- ra mundana e rude, ávida de honras e poder. Um poder que o missionário exerce de forma despótica sobre o povo da aldeia, manipulando-o no sentido dos seus próprios interesses pessoais. É com exemplos como este que fornece o missionário – de ‘vigorosa eloquência’ – que ‘se anda atrasando a civilização do povo’, nessa segunda metade do século XIX em que Júlio Dinis compõe as suas Crónicas da Aldeia.

Conjeturando sobre a importância dos conceitos de cultura e civilização, para a consolida- ção da autoimagem do sujeito moderno, Caio Moura defende que, no final do século XVIII, começa a surgir uma nova autorrepresentação do homem – que já não se vê somen- te como «sujeito de conhecimento», mas também como «sujeito moral» e «sujeito estéti- co». Esta autoimagem do homem moderno corresponderá então à instituição de uma nova ordem – «pensada como progresso material e moral, reino dos fins e horizonte das realiza- ções artísticas e intelectuais», na qual moral, estética e conhecimento se interligam, origi- nando que «os conceitos de civilização e cultura sejam circunscritos ao plano do sujeito e constituídos como o fundo de uma nova identidade universal», que distancia o homem da barbárie218.

Mesmo que a evolução histórica dos referidos conceitos de civilização e cultura – com os quais se conjugam os de progresso e educação –, durante o século XIX, seja complexa e a sua relação nem sempre tenha sido pacífica219, é, porém, ainda na sequência dessa consoli-

dação da autoimagem do sujeito moderno, que Moura refere, que Júlio Dinis pode afirmar, na passagem da «Carta literária» de 1868 anteriormente citada, que as ‘belas artes’ têm

218 Cf. MOURA – O advento dos conceitos, pp. 171-172.

219 Sobre este assunto, cf. BOLLENBECK, G. – Zivilisation. In RITTER, Joachim ; GRÜNDER, Karlfried ;

GABRIEL, Gottfried, Hrsg. – Historisches Wörterbuch der Philosophie. Darmstadt : Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 2004, Bd. 12, pp. 1365-1379 ; cf. FISCH, Jörg – Entstehung des modernen Kultur- und Zivilisationsbegriffs im 18. Und im Frühen 19. Jahrhundert. In BRUNNER, Otto ; CONZE, Werner ; KO- SELLECK, Reinhart, Hrsg. – Geschichtliche Grundbegriffe : historisches Lexikon zur politisch-sozialen

71 ‘uma missão social a preencher’. Assim sendo, e porque a arte é uma religião, então o ar- tista pode assumir o papel de mediador entre Deus e os seres humanos, revelando verdades e apontando caminhos de redenção – como esclarece Bernd Auerochs220.