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2.3 Apologia da Kunstreligion em «Cartas para a minha família»

2.3.4 Feminismo e Kunstreligion

Firmada por um nome feminino – Diana de Aveleda –, a crítica que Júlio Dinis empreende, na «Carta literária» de 1868 em análise, à música da opereta A Grã-Duquesa de Gerolstein, composta por Jacques Offenbach, denuncia uma posição que está em concordância com a forma como, na segunda metade do século XIX, na Alemanha, música e feminismo se in- terligam, do ponto de vista ideológico. Laurie McManus analisa essa interligação que então se verifica entre os movimentos progressistas na área da música e na área dos direitos das mulheres, na Alemanha. Toma como exemplo a atuação da feminista, autora de textos de ópera, poeta, romancista e ensaísta Louise Otto (1819-1895) – fundadora da associação

Allgemeiner Deutscher Frauenverein, que visava a reivindicação de melhorias no direito

de família e no acesso das mulheres à vida profissional – como alguém que soube reconhe- cer similitudes entre os objetivos do movimento de emancipação das mulheres270 e a Músi- ca do Futuro (Zukunftsmusik): termo cunhado pela Nova Escola Alemã, fundada pelos

compositores Franz Liszt e Richard Wagner.

Na Alemanha, foi principalmente a classe média que assumiu essa dupla luta pelo progres- so dos direitos das mulheres e da Música do Futuro, intentando mudanças que pareciam ao mesmo tempo radicais e assustadoras às estruturas sociais e artísticas coevas. Fiel defenso-

269 Ibidem, p. 359. O «total work of art» (Gesamtkunstwerk) – o termo alemão foi cunhado por Richard Wag-

ner no contexto das revoluções de 1848 – exprime a vontade de «to recover and renew the public function of art», como esclarece Roberts, acrescentando que essa síntese das artes ao serviço da regeneração social e cultural foi um sonho especificamente alemão: cf. ROBERTS – The total work, pp. 1; 70-76.

270 Como McManus esclarece, o movimento de emancipação das mulheres, na Alemanha, correspondeu a um

desejo cultural – que se foi expandindo desde as revoluções de 1848-49 até o final do século – de promoção ocupacional e educacional das mulheres, numa sociedade em que ainda lhes era negada uma voz instituciona- lizada no sistema político. Em alternativa, foram trilhados caminhos de luta que passaram por intervenções sociais, domésticas e literárias – onde se incluem as realizadas a nível da cena musical e da crítica musical. Assim, neste período, a dedicação particular à música – fosse como intérprete, crítico, colunista, professor, mecenas ou elemento do público de concertos – também teve, por vezes, um significado ideológico e políti- co: cf. MCMANUS, Laurie – Feminist revolutionary music criticism and Wagner reception : the case of Louise Otto. In 19th-Century Music. 37:3 (2014), pp. 161-162.

85 ra de Wagner e da música da Nova Escola Alemã, Louise Otto, vendo na música uma pos- sibilidade de as mulheres poderem progredir na área das artes do espetáculo, alia-se, com a sua escrita, à complexa rede dos defensores das ideias de Wagner que também apoiavam os direitos das mulheres. Dessa forma, os escritos de Otto tornam-se em alvo de crítica acérrima por parte dos espíritos mais conservadores desse tempo, que consideravam, tanto o radicalismo musical wagneriano como a mulher emancipada, uma ameaça social271.

Como já mencionamos anteriormente272, a defesa da verdadeira imagem da Mulher foi o

principal motivo que, já em 1863, levou o nosso autor a enviar uma primeira «Carta literá- ria» à redação do Jornal do Porto e a criar o pseudónimo Diana de Aveleda, com que tam- bém assinou outras «Cartas literárias» como, por exemplo, esta em análise, ou «Impressões do Campo: A Cecília» – em cuja parte III273, redigida em janeiro de 1865274, Júlio Dinis

alia essa defesa à educação e à produção musical, em Portugal.

Com efeito, na parte III da última «Carta Literária» acima referida, o nosso autor, assu- mindo uma identidade feminina fictícia (Diana de Aveleda) e dirigindo-se a uma amiga igualmente imaginária (Cecília), põe ironicamente em questão o tipo de educação que, em Portugal, é idealmente concebido para o género feminino, relacionando criticamente essa conceção com a possibilidade que é dada às mulheres portuguesas de se filiarem nas lojas maçónicas:

Reconheço-me, em desenvolvimento intelectual, muito aquém de todas as mulheres da ge- ração nova, que falam francês com uma acentuação de parisiense pur sang; copiam a dois

crayons cabeças de Julien e discutem Meyerbeer, Rossini com um desplante admirável. Ùl-

timamente parece que até se filiam nas lojas maçónicas – pelo menos assim mo afirmaram. Não sei se tu também estarás já iniciada nos mistérios do Grande Oriente.

Agora sim, acredito na regeneração da pátria, Çà irà.

Mas em todo o caso, bem sei que eu não posso discutir música contigo; nem é essa a minha tenção.275

271 Cf. Ibidem, pp. 161-187.

272 Sobre este assunto, cf. o item 2.1 deste estudo. 273 Cf. Dinis – Obras, vol. 2, pp. 732-738.

274 No cabeçalho, encontra-se a seguinte informação adicional: «Fragmento de uma carta que não era para ser

publicada»; «Publicada no ‘Jornal do Porto’ em 11 de Janeiro de 1865».

86 Na passagem acima citada, a alusão feita a essa possibilidade real que, já nesse tempo, as mulheres portuguesas têm de ser iniciadas ‘nos mistérios do Grande Oriente’, filiando-se numa sociedade secreta276 – alusão que é seguida de um comentário à crença na ‘regenera-

ção da pátria’ que é ironicamente associada à predominância da ‘moda’, importada da frança, onde o termo conheceu a sua origem –, põe em questão o tipo de educação que é idealmente concebido para o género feminino, em Portugal. Uma crítica que é formulada num contexto em que Júlio Dinis contrapõe as opiniões dessas duas amigas fictícias – Dia-

na de Aveleda e Cecília – acerca da música, e do seu estado de desenvolvimento, em Por-

tugal. A posição dinisiana é clara, quando, escrevendo pela pena de Diana de Aveleda, afirma:

Não digais, pois, aos nossos compositores: Escrevei óperas nacionais. – Isso é exigir-lhes o impossível – mas dizei-lhe: escrevei trovas, escrevei canções, escrevei cantigas… porque deveras não sei por que se há-de pôr de parte esta palavra e esta coisa tão genuinamente portuguesa – a cantiga – deveras que não sei.

Vós que falais em romanzas, em cavatinas, em rondós, em barcarolas, sentis um certo es- crúpulo de mau gosto em falar de cantigas.

Pois eu, se estivesse no vosso lugar, legisladores do gosto, não o sentiria; eu havia de dizer desafogadamente aos nossos talentos artísticos: Fazei música para cantigas inspirando-vos do gosto popular, subireis depois às composições líricas ligeiras e mais tarde, no futuro, os nossos netos aplaudirão a verdadeira ópera nacional – antes disso tentá-lo é absurdo. As artes têm todas a sua infância. E Deus nos livre de crianças assenhoradas que é a mais antipática espécie de Preciosas ridículas que eu conheço.

Mas atendei a que não é só dos compositores que depende a reforma.

Alguns têm feito as primeiras tentativas, mas como lutar entre a tremenda potestade que se chama a moda?277

276 «Throughout the eighteenth century Freemasonry was – and is now – a supposedly secret society. Yet,

paradoxically, the lodges flourished distinctively in the eighteenth century among men – and women – who defined themselves as polite and enlightened, hence open to people of different religions or professions. In any lodge people could be found who had no other reason for being present than their interest in ceremony and the ideals taught by the Masonic creed»: JACOB, Margaret C. – Polite worlds of Enlightenment. In FITZPATRICK, Martin ; JONES, Peter ; KNELLWOLF, Christa ; McCALMAN, Iain, ed. – The enlighten-

ment world. Oxfordshire ; New York : Routledge, 2004, p. 282. 277 DINIS – Obras, vol. 2, p. 737.

87 Como se pode aferir pela leitura da passagem acima citada, a ‘ópera nacional’ portuguesa – o alvo artístico a atingir, no campo da música – pode vir a ser uma realidade futura. No entretanto, porém, encontrando-se Portugal num estado infantil, no que concerne à produ- ção musical, melhor será que os compositores portugueses comecem por produzir peças musicais de mais fácil composição – privilegiando a composição de ‘música para canti- gas’–, inspirados no ‘gosto popular’, que melhor exprime o que é genuinamente português. Uma opinião muito semelhante à hegeliana, sobre «les chansons populaires»278, que Char-

les Bénard comenta, no seu «Essai analytique et critique sur l’Esthétique de Hegel, par le traducteur» – anteriormente referido279 –, nos seguintes termos:

Quant aux espèces particulières de la chanson, on doit citer, comme les principales, les

chansons populaires, qui renferment les exploits et les événements nationaux, dans lesquels

le peuple conserve ses souvenirs, ou qui expriment les sentiments, les situations des divers classes de la société, etc; les chansons qui appartiennent à une culture plus riche et plus va- riée. Tantôt expression d’une gaieté joyeuse, tantôt plus sentimentales, elles rappellent les scènes de la nature et les diverses situations de la vie humaine280.

Na opinião de Diana de Aveleda, também é partindo dessa base nacional – que não se en- contra contaminada pela ‘moda’ – que, algum dia, as composições musicais portuguesas, evoluindo, poderão atingir um estado de maturidade artística que permitirá o surgimento da ‘ópera nacional’ portuguesa.

Para Júlio Dinis, um dos aspetos mais relevantes da religiosa missão que a arte deve cum- prir na sociedade traduz-se, pois, na defesa da verdadeira imagem da Mulher, que, nessa época, nem sempre era devidamente preservada, sobretudo no contexto da cena teatral – como testemunha, no seu tom sempre humorístico, Júlio César Machado, o cronista de teatro contemporâneo de Júlio Dinis, já anteriormente referido:

Pelo genero de peças que alli se representam – e era occasião de empregar uma malícia, e attribuir o caso tambem um pouco ao temperamento dos accionistas, quem sabe? – o theatro da Trindade tem sido entre nós o mais parecido com o que se chama lá por fóra theatro de

mulheres. Actrizes bonitas, e comparsas que não sejam inferiores ás actrizes; tal é o pro-

278 Sobre este assunto, cf. HÉGEL – Système des Beaux-Arts, pp. 60-62. 279 Cf. o item 2.3 deste estudo.

88

gramma, que, n’um paiz como este em que as formosuras escaceiam, não póde, talvez, ser levado completamente a effeito.281

Desta imagem ironizada que Machado nos apresenta da realidade do seu tempo se pode aferir que o teatro em Portugal, no período da Regeneração, longe de cumprir a sua missão de educar e civilizar – uma missão que, em Portugal, só começaria a ser cumprida com «o Teatro Livre em 1904 e o Teatro Moderno em 1905»282 –, se tornava em palco de deprava-

ção e comércio, quando estava dependente dos interesses económicos e pessoais dos seus acionistas. Mas os interesses políticos também não se encontrariam ausentes desses espetá- culos283, que serviam para cultivar a ilusão de um mundo estável e despreocupado, em

tempos de crise e constantes mutações.

Quando, na «Carta literária» em análise, Júlio Dinis defende a Kunstreligion (religião da

arte) – situando essa defesa no contexto da cena teatral portuguesa oitocentista, que censu-

ra –, também tem em mente, por certo, todos esses interesses menos honrosos que envolvi- am a produção teatral portuguesa oitocentista, e que Júlio César Machado ressalta na pas- sagem anteriormente citada. Interesses esses que denegriam a verdadeira imagem da Mu- lher, muito particularmente a da mulher artista, profissional de teatro284, mas também a da

mulher espectadora285.

Por isso, na «Carta literária» em análise (assinada por Diana de Aveleda, em 1868) o nosso autor, assumindo o papel de uma mulher casada e mãe de duas filhas, dirige-se a um supos-

281 MACHADO – Os theatros, p. 197.

282 Sobre este assunto, cf. REBELLO – Três espelhos, pp. 209-272. 283 Cf. Ibidem, p. 96.

284 Um desprestígio que também influenciava a opinião pública, sobretudo a da camada da população menos

ilustrada. Esta opinião pública depreciativa acerca das comediantes é registada por Júlio Dinis, por exemplo, no romance Uma Família Inglesa, quando no capítulo XXIV a personagem «Sr.a Josefinha de Água Benta»,

em diálogo com a «senhora Antónia» – diálogo em que é bisbilhotada a vida de Carlos, o filho de Mr. Ri- chard Whitestone –, afirma o seguinte: «– Diz que aí com uma comediante de teatro gastou ele contos de réis

do pai. Até o velho quis mandá-lo para Inglaterra.»: DINIS – Obras, vol. 1, p. 794.

285 Note-se como esta posição dinisiana contrasta com a de Eça de Queirós, quando – numa passagem de um

texto escrito em outubro de 1872 que foi integrado, mais tarde, em Uma Campanha Alegre – afirma: «Dê-se á mulher um alto interesse domestico, e dá-se-lhe uma virtude invencivel. Dê-se-lhe uma casa a governar, uma família a dirigir, e ella encontrará no seu coração mais valor para ser virtuosa do que nós encontramos razões no nosso espirito para sermos honrados. – Ora agora se o marido faz da sua mulher uma amante

mignonne e luxuosa, se a torna um pequenino mimo e um gosto de voluptuosidade, se faz d’ella um ornato de

teatro e quase um embelezamento publico, se a quer como uma sultana da Georgia, que se transporta nos braços – n’esse caso está mal, e então o risonho Offenbach adianta-se com a sua batuta e o seu couplet garo- to, e aconselha-o a que nunca entre em casa – sem prevenir.»: QUEIROZ, Eça – Uma Campanha Alegre :

89 to marido («Gustavo»286), explicando-lhe que essa ida ao teatro correspondera a uma «re-

solução» que a autora da carta tinha formado para satisfazer um desejo que as «pequenas» («Ernestina» e «Luísa») tinham exprimido, através de um olhar eloquente. Desejo eloquen- te, aliás, que fez eco na mente materna, porque também a mãe das jovens – depois de uma temporada no campo, que deixara as filhas «ansiosas pelas distracções da cidade» – sentia já saudades do «elegante teatro», e o «título Grã-Duquesa» andava-lhe nos ouvidos «como um zumbir de importuno mosquito». Mas, malgrado a popularidade adquirida, a opereta A

Grã-Duquesa de Gerolstein, revela-se um espetáculo musical de inferior qualidade artísti-

ca que leva a autora da carta a confessar que foi «com desgosto, com tédio, com indigna- ção, duvidando do progresso da arte» que deixara o «teatro de São João», aonde acorrera com tanto entusiasmo287.

Júlio Dinis conclui, então, a «Carta literária» de 1868 em análise, apelando em favor da ‘arte nascente’ nacional, que os ‘homens de letras’, do Portugal do seu tempo, deveriam possuir a coragem de defender, frente às profanas tentações, importadas:

Custa-me ver que, reconhecendo o mal que está corrompendo entre nós a arte nascente, não se organize entre os nossos homens de letras uma cruzada leal e corajosa, tendo por divisa a arte e combatendo sem quartel nem misericórdia o mau gosto que nos vem do es- trangeiro de mistura com os chignons e os mais artigos da moda.288

Um final suficientemente esclarecedor, que nos permite compreender as principais razões que teriam conduzido o nosso autor no sentido de adotar a Kunstreligion (religião da arte) que, interagindo com uma realidade social que se encontra sujeita a constantes mutações, desenvolve competências específicas que lhe possibilitam intervir na construção dessa mesma realidade social. Esta apologia que Júlio Dinis faz da Kunstreligion (religião da

arte) – enquanto conceção estético-filosófica –, a nível programático, é concretizada pelo

nosso autor na sua própria produção literária: nos seus poemas compostos numa segunda fase poética; nos seus contos (ou novelas); assim como nos seus romances. Nestas compo-

286 Curiosamente, este marido imaginário de Diana de Aveleda tem o mesmo nome próprio (em versão por-

tuguesa) do crítico de teatro Gustave Bertrand, que – como vimos anteriormente (cf. o item 2.3.2 deste estu- do) – redige o artigo publicado no jornal francês Le Ménestrel, em 21 de abril de 1867, onde a opereta de Offenbach a que Júlio Dinis se refere na «Carta literária» em análise também é avaliada criticamente. Tratar- se-á de uma coincidência?

287 Cf. DINIS – Obras, vol. 2, p. 761. 288 Ibidem, p. 767.

90 sições literárias, como ainda veremos289, são, consequentemente, desenvolvidos temas on-

de ecoam preocupações de ordem ecológica e socioambiental, ético-social, sociocultural, sociopolítica, socioeconómica e ético-religiosa. Desta forma, Júlio Dinis assume, com a sua produção literária, uma posição interventiva na sociedade portuguesa – num tempo em que essa sociedade apresenta fortes indícios de uma secularização manifesta –, pretenden- do, assim, afirmar a presença da arte no espaço público e a sua capacidade de substituir a influência da religião oficial «nas esferas dos valores políticos, económicos, éticos e estéti- cos»290.

Redigida em setembro de 1868, esta «Carta literária» de Júlio Dinis – intitulada «Cartas para a minha família»–, que analisámos, apresenta-se como um vivo testemunho do cul- minar de um longo processo de diferenciação funcional por que arte e religião passam des- de o século XVIII até à segunda metade do século XIX, quando o conceito de Kunstreligi-

on (religião da arte), radicalizando-se, começa a exprimir uma relação de concorrência

entre arte e religião.