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2.3 Apologia da Kunstreligion em «Cartas para a minha família»

2.3.3 A dimensão comunitária da Kunstreligion

Em 1880, seria Richard Wagner quem iria dirigir à arte o incentivo provocatório de evoluir no sentido de se instituir como uma «‘Contra-Igreja’ estética» («ästhetische ‘Gegen- Kirche’»)252. Mas, segundo Fabian Lampart, quando Wagner desenvolve teoricamente a

sua conceção de drama musical, por volta de 1850, já então formula nos seus escritos uma reivindicação a que subjaz uma conceção de arte como religião, ou seja, uma conceção em

246 YON – Jacques Offenbach, p. 229. 247 Cf. HAWIG – Jacques Offenbach, p. 37.

248 «Si Offenbach était un redoutable homme d’affaires, s’il savait aller d’un éditeur à l’autre pour obtenir

jusqu’à 12 000 francs – voire beaucoup plus – pour une pièce en trois actes […]»: YON – Jacques Offen-

bach, p. 427.

249 Cf. HAWIG – Jacques Offenbach, p. 37

250 «Le musicien mourut à soixante et un ans, usé par le travail et par la goutte qui était remontée jusqu’au

cœur.»: YON – Jacques Offenbach, p. 417.

251Ibidem, p. 229.

79 que a arte se apresenta capaz de substituir as funções tradicionais da religião253. Neste sen-

tido – como salienta Marco Rispoli –, tanto Richard Wagner como Stefan George valori- zam a dimensão comunitária da Kunstreligion (religião da arte), esforçando-se por dar ao culto íntimo e individual uma representação pública, em conformidade com a natureza figurativa e sensorial da arte, que tende sempre para a exteriorização254.

Também é realçando essa dimensão comunitária da Kunstreligion (religião da arte) – que Richard Wagner e Stefan George valorizam – que Júlio Dinis, depois de já ter colocado ao mesmo nível a atividade do artista e o exercício do ministério sacerdotal, pode defender, na mesma «Carta literária» de 1868 em análise, que a Kunstreligion (religião da arte) também possui o seu próprio ‘templo’ – que para o nosso autor, da mesma forma que para Wag- ner255 ou para Balzac256, são ‘os teatros’ –, onde uma comunidade se pode reunir, para par-

ticipar na celebração do seu culto – como se pode aferir pela leitura da seguinte passagem:

A paródia nada respeita. Os mais belos tipos, as mais belas ideais concepções, as mais bri- lhantes imagens que tem concebido uma fantasia de poeta, de dramaturgo, de romancista, tudo ela abocanha e profana.

E não receiam que não volte ao templo assim profanado a arte que se preza?

253 Cf. LAMPART, Fabian – Kunstreligion intermedial : Richard Wagners Konzept des musikalischen Dra-

mas und seine frühe literarische Rezeption. In MEIER ; COSTAZZA ; LAUDIN, Hrsg. – Kunstreligion, Bd. 2, p. 59.

254 Cf. RISPOLI, Marco – Kunstreligion und künstlerischer Atheismus : zum Zusammenhang von Glaube

und Skepsis am Beispiel Wilhelm Heinrich Wackenroders. In MEIER ; COSTAZZA ; LAUDIN, Hrsg. –

Kunstreligion, Bd. 1, p. 127.

255 Segundo David Roberts, para Richard Wagner «the theatre of art» é «the temple of the people without

class distinctions»: cf. ROBERTS, David – The total work of art in European modernism. Ithaca, New York : Cornell University Press, 2011, p. 75.

256 Escreve Laubriet, sobre Balzac: «Pour préciser le second aspect de la mission de l’artiste, Balzac le rap-

proche une fois encore du prêtre : ‘il est un point où viennent se confondre le prêtre, l’artiste, le temple, le théâtre : c’est celui de la direction morale à donner aux hommes’. Cette comparaison de l’artiste et du prêtre est encore rappelée dans cette phrase de la Préface des Etudes de Mœurs : ‘Quant au droit que s’arroge de peintre de gourmander son siècle, d’en accuser les vices, d’en sonder le cœur, il est écrit sur toutes les chaires où montent les prédicateurs’. Ce doit être, pour l’artiste, le ‘but constant de ses efforts’, et c’est sa justifica- tion d’exister : ‘Si le poète ou le prêtre oublie qu’il n’a de valeur sociale, d’existence humaine possible, que lorsqu’il cherche à passionner ceux qui l’écoutent, dans un but utile au plus grand nombre, dès ce moment il cesse d’être’. Il s’écrie ailleurs, dans un élan de lyrisme, en parlant au nom des écrivains français : ‘Nous sommes les nouveaux pontifes d’un avenir inconnu, dont nous préparons l’œuvre’. Mais le rôle de l’artiste reste purement moral et son action s’inscrit uniquement dans le domaine des idées. Sa mission est d’ordre métaphysique ; il est ‘chargé de répandre les lumières qui brillent sur les hauts lieux’, de découvrir les causes et les principes ‘que les hommes minutieux prouvent, expliquent et commentent’. Balzac refuse à l’artiste toute participation à la politique. Devenir homme politique, ‘pour un poète, c’est abdiquer, déclare Modeste Mignon, la politique est la ressource des hommes positifs’»: LAUBRIET – L’intelligence de l’art, p. 196.

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Fechem antes os teatros, fechem-nos, porque os espectáculos assim não são os que civili- zam, corrompem; não educam, pervertem.257

É prestando culto à ‘arte que se preza’ e denegando a paródia ‘que nada respeita’– como se pode ler na passagem da «Carta literária» de 1868 acima citada – que a comunidade dos seus crentes a declara sagrada. Esta sagração da arte traz consigo o reconhecimento do que ela pode conter de santo – enquanto meio de civilização e educação. O artista, por sua vez, desenvolvendo estratégias de sacralização da arte – que estão dependentes da noção de santidade –, recorre a sistemas simbólicos religiosos, que permitem que a arte possa assu- mir funções culturais sagradas258.

Na sequência desse procedimento, o culto à arte também pode reverter em favor do seu ministro, ou seja, do artista-sacerdote (ou artista-profeta259), que é então concebido como

um ser humano superior, carismático, um santo260. Dessa forma, inaugura-se o culto ao artista261, que deriva, remotamente, da noção de génio estabelecida por Johann Gottfried

Herder, na sua obra Journal meiner Reise im Jahr 1769, segundo a qual «homem de gé- nio» («Mann von Genie») é aquele que resulta de uma educação concebida de forma a po- der engravidar com fecundas «sensações» («Sensationen») a «alma jovem» («Jugendsee- le»), que saberá manter-se para sempre nesse estado de juventude, sem cair na tentação das «abstrações» («Abstraktionen»)262.

257 DINIS – Obras, vol. 2, pp. 763-764.

258 Cf. BÖHM, Nadine Christina – Sakrales Sehen : Strategien der Sakralisierung im Kino der Jahrtausend- wende. Bielefeld : transcript, 2009, pp. 13-17.

259 Sobre este assunto, cf. KANDINSKY, Wasily – Über das Geistige in der Kunst. 10. Aufl., mit einer Ein-

führung v. BILL, Max Bill. Switzerland : Bern, [1952], pp. 39-44.

260 Já em 1846, Sören Kierkegaard (1813-1855) critica essa postura estética em Johann Georg Hamanns que,

na perspetiva do filósofo, confunde genialidade com santidade: cf. DEUPMANN, Christoph – Apostel und Genie : zu Johann Georg Hamanns eigensinniger Behauptung der Einheit von Kunst und Religion. In MEIER ; COSTAZZA ; LAUDIN, Hrsg. – Kunstreligion, Bd. 1, pp. 59-65.

261 No tempo hodierno, o culto ao guitarrista Jimi Hendrix ou o culto ao cantor Michael Jackson são apenas

dois exemplos (entre outros que poderíamos apresentar) deste culto ao artista que, como refere Schneider, se apresenta como uma herança, já em estado de degenerescência, da conceção romântica de génio: cf. SCHNEIDER – Geschichte der Ästhetik, pp. 13-14.

262 Cf. HERDER, Johann Gottfried – Journal meiner Reise im Jahr 1769. Historisch-kritische Ausgabe.

81 Assim sendo, para bem cumprir a sua missão, o artista também terá, ele próprio, de ter usu- fruído de uma educação que lhe permita manter viva a sua sensibilidade – que se espelhará na sua própria produção artística, revelando se ele é um ‘homem de génio’, ou não263.

Será nessa mesma sensibilidade, educada e viva, que – como salienta Júlio Dinis, na última passagem da «Carta literária» de 1868 anteriormente citada – deverá assentar a ‘fantasia de poeta, de dramaturgo, de romancista’ que é capaz de criar os ‘mais belos tipos, as mais belas ideais concepções, as mais brilhantes imagens’. Faltando ao artista essa sensibilidade, a arte já não poderá assumir funções culturais sagradas. Uma postura que é reforçada pelo nosso autor, quando, mais adiante, salientando o efeito nocivo que a ‘moda’ exerce na so- ciedade portuguesa do seu tempo, apresenta o quadro evolutivo da educação artística em Portugal, nos seguintes termos:

[…] nós hoje estamos em um período de educação artística, desfavorável à verdadeira arte […]

O gosto de uma nação corre fases como o gosto de qualquer indivíduo. Em criança, por exemplo, o teatro interessa-nos de uma maneira diversa daquela por que nos influi adultos. É o enredo do drama que nos comove e não as belezas literárias, não o mérito dos artistas que, se nos influem, é sem que o percebamos […]

Esta ingenuidade dissipa-se cedo; substitui-a mais tarde o gosto pelas belezas da composi- ção e da execução. Este, porém, forma-se mais lentamente do que se dissipa a primitiva ilu- são de que falámos. Daqui resulta haver um período de transição em que já não nos ilude o enredo como em criança nem ainda nos comovem as belezas literárias, como quando o bom gosto se formou em nós.

263 Num breve capítulo da sua obra Kunst und Kult (Arte e Culto) – intitulado («Teoria da arte enquanto estética do génio» («Kunsttheorie als Ästhetik des Genies») –, Alois Halder, refletindo sobre estética e filoso-

fia da arte, na passagem do século XIX para o século XX, defende que, nesse tempo, a teoria da arte trans- forma-se em fundamento da estética e, em consequência disso, o próprio artista começa a ser visto como «o tipo de ser humano estético, simplesmente» («der Typ des ästhetischen Menschen schlechthin»). Daqui resul- ta que o artista – o génio – começa a ser tomado como paradigma interpretativo do humano. Dessa forma, a «estética do génio» «Genieästhetik») é então incrementada segundo os pressupostos de uma subjetividade genial, que se instaura como conceção do mundo. No entanto, essa subjetividade já não é concebida, como até então, de forma absoluta, mas sim, como finita, numa perspetiva infinita. Assim, a filosofia da subjetivi- dade finita, enquanto subjetividade genial, apresenta-se como herdeira da conceção moderna do Ser: cf. HALDER – Kunst und Kult, pp. 27- 33.

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Nesse período frequenta-se o teatro com insensibilidade artística, apreciam-se tanto os in- tervalos como os actos, é indiferente perder uma cena inteira ou no princípio ou no fim e, se a moda pôs isso em costume, adopta-se o costume da melhor vontade.

Então aplaude-se tudo quanto a moda recomenda, o entusiasmo não é espontâneo, é de convenção e antes de saber se nos devemos arrebatar, perguntamos se o que vemos já ar- rebatou alguém que autorize o entusiasmo.

O nosso povo na sua educação artística está quase neste caso, acha-se neste antipático e estéril período de transição.

[…]

Mas, por infelicidade, o bom gosto não veio ainda ocupar o terreno para fazer florescer a arte. Não há ainda bastante amor e conhecimento dela para manter entre nós um teatro permanente.

Quem dá as leis, quem domina exclusivamente é a moda. Aplaude-se o bom e o mau, con- quanto a moda o recomende.264

Na opinião de Júlio Dinis, a nação portuguesa encontra-se, pois, no seu tempo, num melin- droso ‘período de transição’, no que concerne o gosto artístico, que necessita então de uma educação especialmente cuidadosa. Uma educação que os artistas têm obrigação de assu- mir, religiosamente. Sem artistas-sacerdotes – ou seja, sem pastores – que sejam capazes de ajudar a formar o ‘bom gosto’ no povo português, esse mesmo povo permanecerá como um rebanho de ovelhas que, perdidas na sua ‘insensibilidade artística’, adotam, como ‘cos- tume’ (ou norma) tudo o que a ‘moda’ estabelece.

Júlio César Machado, cronista de teatro e contemporâneo de Júlio Dinis,confirmando esta posição dinisiana, descreve, em tom humorístico, a vida teatral portuguesa265, nesse tempo

em que a seleção das peças levadas à cena dependia da moda ‘caprichosa e fugitiva’:

Em S. Carlos não ha surpresas. Sabe-se de cór as operas… e os camarotes.

264 DINIS – Obras, vol. 2, pp. 765-766.

265 Referindo-se à atuação da Geração de 70 em relação à vida teatral portuguesa da sua época, Ivo Cruz

afirma que o que ela trouxe para o teatro foi, «acima de tudo, um paradoxo» e que «a sua marca profunda fica aquém das outras áreas culturais», só se fazendo sentir por meio da «crítica e renovação doutrinária» empre- endida em iniciativas pontuais: as Conferências do Casino; As Farpas; vários textos dispersos, principalmen- te, de Oliveira Martins e de Eça de Queiroz: cf. CRUZ, Ivo Duarte – História do Teatro Português. [s. l.] : Verbo, 2001, pp. 180-181.

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Sabe-se que hão de ver-se certas pessoas do lado direito, certas outras do lado esquerdo, o nosso amigo fulano ao fundo.

Sabe-se que no segundo intervallo o sr. Sicrano faz uma visita ás senhoras Taes, e que a menina Esta vae no segundo acto para o camarote das suas amigas Est’outras.

Sabe-se quem é que não vae alli aos domingos. Quem tem uma prima doente.

Quem está de vestido novo. Sabe-se tudo […]

Nos teatros de declamação vivem sujeitas as peças á moda caprichosa e fugitiva. Tal as- sumpto que deu no goto a toda a gente em certa época, não se suporta n’outras…

Só é condão da musica escapar a esta lei. Porque?

Porque ha nas operas o que raras vezes se encontra nas peças declamadas – idealidade, poe- sia.266

Como esclarece Luís Francisco Rebello, a ópera, proveniente de Itália onde nasceu, é «tea- tro musical»; enquanto a opereta, chegada a Portugal em meados do século XIX, através da França – como, por exemplo, A Grã-Duquesa de Gerolstein, anteriormente referida por Júlio Dinis –, é «teatro musicado». A diferença que existe entre estas duas modalidades das artes do espetáculo assenta no «grau de intensidade» com que a música267 intervém em

cada uma delas, resultando daí que a ópera se aproxima mais da música do que da arte dramática em sentido estrito268.

Nessa diferença também se baseia a distinção que Machado estabelece entre a ópera, que a música impregna de ‘idealidade’ e ‘poesia’, e os teatros de declamação, em que as peças vivem sujeitas à moda, nesse ‘período de educação artística, desfavorável à verdadeira ar- te’ – como afirma Júlio Dinis, na última passagem da «Carta literária» de 1868 acima cita- da. Nesse período, ainda não seria possível ver-se concretizado, em Portugal, o ideal wag-

266 MACHADO – Os theatros, pp. 210-212.

267 Sobre este assunto, cf. BETZ, Otto – In Geheimnisvoller Ordnung : Urformen und Symbole des Lebens.

München : Kösel, 1992, p. 152.

268 Cf. REBELLO, Luiz Francisco – Três espelhos : uma visão panorâmica do teatro português do Libera- lismo à ditadura (1820-1926). Lisboa : IN-CM, 2010, pp. 359-361.

84 neriano, em que «a cena era o lugar predestinado para o florescimento da ‘obra de arte to- tal’ (Gesamtkunstwerk), em que todas as formas de expressão artística se fundiam e con- fundiam»269. Um ideal inspirado na Kunstreligion (religião da arte), que Richard Wagner,

tal como Júlio Dinis, defendia.