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Segundo o testemunho do próprio Júlio Dinis, o gosto das letras desperta cedo na sua vida, remontando à infância os primeiros factos da sua ‘existência literária’:

Os primeiros factos da minha existência literária remontam aos 11 anos. Não os recordo porque pretenda persuadir-te que efectivamente de algum valor eram já essas façanhas de criança, mas tão somente para me darem ensejo de fazer algumas reflexões sobre os moti- vos principais que podem actuar sobre a inspiração nascente e criar o gosto das letras; as- sim como, mais tarde, apreciar as causas que podem educá-lo em melhor caminho.

Permite-me que te recorde alguns factos da minha vida.

Sabes que aos 5 anos fiquei sem mãe, que a nossa vida de família…430

Infelizmente, o texto desta nota, «colhida de um livro manuscrito» – que integra Inéditos e

Esparsos –, chegou até nós incompleto. Por isso, não nos é permitido ter certezas acerca do

que Júlio Dinis considerava terem sido os principais motivos que o levaram a cultivar a sua vocação para as letras, assim como não podemos saber que causas foram essas que – poste- riormente – educaram e conduziram evolutivamente essa mesma vocação, que prematura- mente surgiu na vida do poeta.

Mesmo assim, no final da nota acima transcrita, é-nos fornecido um dado que se nos afigu- ra relevante, como ponto de partida da primeira dessas duas questões: a alusão feita à vida familiar e, sobretudo, a referência à morte da mãe. Uma referência que nos permite acredi- tar que a experiência dessa separação radical, na primeira infância, seria determinante no despertar das tendências literárias do jovem que – com o cultivo do ‘gosto das letras’ – tenta preencher o vazio afetivo que a separação da mãe provocara na sua vida de criança.

128 Esse é, aliás, um dado que surge reforçado na seguinte estrofe do poema «Hino da amiza- de» (composto em 20 de Outubro de 1861, e dedicado a seu primo e amigo José Joaquim Pinto Coelho):

No meio de estranhos eu vi-me sozinho, E assim na carreira das letras entrei. A mão que meus passos guiou com carinho A morte roubou-ma, eu só caminhei.431

Esta precoce tendência para as letras, que Júlio Dinis começa a partilhar, ainda na sua ju- ventude, com alguns colegas da Academia Politécnica do Porto432, também serviria de base

à criação de laços de amizade que perdurariam, tendo igualmente ajudado, ao longo dos anos, a atenuar o sentimento permanente de solidão que a morte prematura da mãe origina- ra na vida do poeta. Um sentimento que, em certos momentos, escalando, dá origem a es- tados melancólicos, como este que o poeta regista nas seguintes estrofes do poema «Me- lancolia» (composto em 1859):

Em paz, deixai-me em paz, meus pensamentos, Não me faleis nos tempos que lá vão.

De que serve pensar nesses momentos? Volvidos para sempre eles não estão? Oh! deixai-me esquecer o curto instante Em que mãe e irmãos no mundo vi!

Não achais triste e amarga ainda bastante, A amarga solidão que passo aqui?

……… Quase tudo que amava, emurchecido Pelo sopro da morte cair vi.

Como entre ruínas, mausoléu erguido, À destruição dos meus sobrevivi.

431 Ibidem, p. 296.

432 Júlio Dinis frequentou a Academia Politécnica do Porto, «conhecida nos seus começos por Academia de

Comércio e Marinha», entre 1853 e 1856 – ano em que dá entrada na «Faculdade de Medicina do Porto, conhecida então como Escola Médico-Cirúrgica»: cf. CRUZ – Júlio Dinis, pp. 24-25.

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E para quê, Senhor? Qual é meu norte? Que missão nesta vida hei-de cumprir? Oh! antes, antes me levara a morte, Pois que assim é tormento o existir. Sombra da campa! que te tema aquele, A quem ventura, ou um amor sem fim Da vida ao seio e do amor impele. Teu frio leito não me assusta a mim. Foi-me o passado instante de ventura, É-me o presente um século de dor; E o porvir, envolvido em noite escura, Que me reservará? Morte ou amor?433

Numa nota explicativa, Júlio Dinis acrescenta a este poema o seguinte comentário:

Só quem não soubesse nada da minha vida, me poderia pedir explicações desta poesia. Se, para uma produção desta natureza ter merecimento, bastasse ser escrita sob a impressão dos sentimentos que nela se exprimem, podia esta ser uma obra-prima. Infelizmente há mais algumas condições a satisfazer.434

Efetivamente, a tuberculose e a morte na sua sequência acompanharam o nosso autor, ao longo da sua vida. Essa doença contagiosa – que seria a causadora da sua própria morte – conduziria igualmente à morte os oito irmãos de Júlio Dinis, outros parentes chegados e alguns amigos. São, de todas as vezes, experiências dolorosas, que o fazem reviver a morte de sua mãe, conduzindo-o a estados esporádicos de melancolia.

Numa «Nota do Autor», posteriormente acrescentada ao poema «A morte do poeta» (com- posto em março de 1860, em memória de A. A. Soares de Passos), Júlio Dinis fornece-nos o seguinte esclarecimento:

Obedeci a um impulso irresistível escrevendo esta poesia. Admirei Soares de Passos duran- te a vida, como poeta, no seu livro; como homem, nas sempre lembradas noites em que, en- tre poucos mas escolhidos amigos, víamos em sua casa correrem as horas como instantes e

433 DINIS – Obras, vol. 2, pp. 466-467. 434 Ibidem, p. 468.

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passarem as longas noites de Inverno como um sonho delicioso e aprazível. Foi então que pudemos apreciar a pureza daquele carácter, aquela rigidez de princípios, que nesta época de indiferentismo e egoísta especulação, causava assombro a quantos o ouviam. Por isso, quando morreu, senti-o, como todos que prezavam as letras pátrias e como todos que res- peitam os caracteres elevados; mas senti-o também, como ninguém, pela dor que a sua morte deixava no coração de seu irmão, o mais sincero, desinteressado e generoso amigo que nunca hei encontrado. Tudo isto me levou a lamentar a sua morte, temerária empresa de onde me não podia sair bem.435

Como se pode aferir pela leitura desta «Nota do Autor» – que foi posteriormente acrescen- tada a um poema que Júlio Dinis tinha composto em memória do poeta Soares de Passos –, os tão importantes laços de amizade, anteriormente referidos, que o uniam a companheiros de estudos e de letras, eram fundados numa escolha rigorosa, unindo pessoas que se elege- ram mutuamente, por partilharem os mesmos ideais. Como ele próprio assegura: esses amigos eram ‘poucos mas escolhidos’.

O relato que Júlio Dinis faz dessas reuniões, que decorrem durante ‘as longas noites de Inverno’, em torno desse Poeta que – numa ‘época de indiferentismo e egoísta especula- ção’ –, como um verdadeiro mestre ensina os seus discípulos pelo exemplo – pela ‘pureza daquele carácter’, por ‘aquela rigidez de princípios’ –, transmite-nos a ideia da pertença a um círculo hermético436. Um círculo que expressa simbolicamente «o ideal da completu-

de»437, que se realiza na amizade que une, nesse tempo, uns poucos que ‘respeitam os ca-

racteres elevados’.

Pertencendo a esse círculo, Júlio Dinis não pode deixar de sentir o vazio central438 provo-

cado pela morte do Poeta – que cultivou ‘as letras pátrias’. Dessa forma, a separação radi- cal por que o nosso autor passara na primeira infância (originada pela morte prematura de sua mãe) – que também provocara um vazio essencial na sua vida – é revivida de forma

435 Ibidem, p. 249.

436 Sobre este assunto, cf. ÁLVAREZ LÁZARO, Pedro – Origen, evolución y naturaleza de la masoneria

contemporánea. In ÁLVAREZ LÁZARO, Pedro, coord. – Maçonaria, Igreja e Liberalismo : actas da sema-

na de estudos da Faculdade de Teologia – Porto – 1 a 4 de Fevereiro de 1994. Porto ; Madrid : Fundação

Eng. António de Almeida ; Universidade Católica Portuguesa ; Universidade Pontifícia Comillas, 1996, p. 42.

437 Cf. CENTENO, Yvette – Símbolos da totalidade na obra de Hermann Hesse. Lisboa : A Regra do Jogo,

1978, pp. 17-18.

438 Sobre este assunto, cf. JUNG, Carl Gustav – O símbolo da transformação na missa. Petrópolis : Vozes,

131 dolorosa: ‘Tudo isto me levou a lamentar a sua morte, temerária empresa de onde me não podia sair bem’.

É um longo poema, esse que Júlio Dinis compõe em memória do poeta Soares de Passos, onde apresenta essa figura central do círculo hermético a que pertencia como um ‘sacerdo- te’ que no templo da ‘poesia’ glorificou a ‘Deus’ e à ‘Pátria’, inspirado pela fé que profes- sava:

Morreu o teu cantor, ó firmamento! Teu sacerdote ardente, ó poesia! Ó Deus, ó Pátria, a última agonia Gelou a voz que hossanas vos sagrara! Crente inspirado, os brados do entusiasmo Não lhe esfriou dos homens a indiferença, E a venenosa taça da descrença

Dos generosos lábios arrojara! 439

Mas o grande poeta morreu, sem que o mundo fosse capaz de lhe reconhecer o valor, de nele acreditar, de confirmar o que a viva voz, religiosamente, apregoara, por meio da sua criação poética. Por isso, no seu último trajeto terreno, o poeta-sacerdote só é seguido por esses poucos que em vida o rodeavam. São só esses os que ‘ainda veneram o culto da poe- sia e pensamento’:

E um poeta morreu! Estas palavras Nada vos dizem, povos, que as ouvis? Não as há mais solenes, nem mais tristes. Oh! nelas reflecti um só momento! Não sabeis o que diz a morte do homem Que se encaminha à campa que lhe ergueram Seguido apenas dos que ainda veneram O culto da poesia e pensamento? Não ouvis esse dobre, que o lamenta? É como a voz do século que brada: – «Chorai, ó multidões, que na cruzada

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Da civilização vos alistastes,

Chorai, um dos soldados que há caído, Deus lhe dera a bandeira que vos guia, O estandarte da ideia, a poesia;

Mas vós na heroica empresa o abandonastes! «Lamenta, ó liberdade, o teu apóstolo! Amor, o coração que te entendia! Tu, Pátria, o filho que melhor podia Entre as nações da terra engrandecer-te! Religião, ai! Chora o sacerdote,

Que, entoando no templo os sacros hinos, Chamara os povos aos altares divinos E cultos sem iguais pudera erguer-te!» E tu, ó mundo, o vês quase indiferente! Curva a cabeça ante essa campa aberta, Ajoelha-te, e a fronte descoberta, Venera as cinzas que deixou na Terra; Os restos são da mais violenta chama, Que o fogo do Céu no mundo ateia; A chama ardente de inspirada ideia, Fogo que a mente do poeta encerra!440

O mundo mostra-se ‘quase indiferente’ à morte do poeta. No entanto, ‘a voz do século’ faz-se ouvir simbolicamente no dobrar dos sinos, que choram a partida do poeta-sacerdote. É um som que corresponde à profunda tristeza coletiva de uma Pátria que perde um ‘filho’ que poderia engrandecê-laentre as nações da terra’. Mas o valor desse filho não é devi- damente reconhecido pelos seus compatriotas, que abandonam esse ‘soldado’ que se alista- ra na ‘cruzada da civilização’, e a quem ‘Deus’ dera a bandeira que deve guiá-la: ‘O estan- darte da ideia, a poesia’.

Uma leitura atenta, por exemplo, do poema «O anjo da humanidade», de Soares de Passos – o poeta que, na nossa perspetiva, exerceu a primeira e decisiva influência na educação

133 ‘em melhor caminho’ do ‘gosto das letras’ de Júlio Dinis (como se pode ler na nota, «co- lhida de um livro manuscrito», anteriormente transcrita) –, já será suficiente para validar as afirmações que o nosso autor formula no poema em análise, não só em relação ao elevado valor441 que Júlio Dinis atribui ao poeta que foi seu mestre, mas também em relação à no-

ção de que a poesia cumpre uma missão religiosa, enquanto ‘estandarte da ideia’.

Que essa missão religiosa não caminha de mãos dadas com a religião oficial em Portugal, no tempo em que o poema é composto, é uma realidade que está bem patente, especial- mente, na última estrofe dessa sublime composição poética de Soares de Passos – onde o poeta, colocando-se numa posição que contrasta nitidamente com a da escatologia católica do século XIX442, expressa a sua convicção de que a missão salvífica no mundo se realiza

através do progresso social e económico, mobilizando o ‘anjo’, por meio da ‘voz’ do ‘Se- nhor’, a levar ‘ÁVANTE’ a ‘mesquinha humanidade’:

Depois continuando: «ó Deus, quem ha de «Sondar mysterios que teu seio esconde! «Tuas leis divinaes, tua vontade

«Cumprirei sobre a terra. Eia responde:

441 Elevado valor que Teófilo Braga também reconhece, quando afirma o seguinte: «[…] nos cinco volumes

da Grinalda, formados das estrofes de oitenta e tres poetas contemporaneos, desde as mais altas summidades litterarias, como Herculano e Soares de Passos, até ás modestas iniciaes, se póde vêr resumida a historia da poesia lyrica em Portugal desde os últimos restos da Arcadia, conservados por Bingre, até á imitação das odes revolucionarias de Victor Hugo, e da alliança da poesia com a philosophia»: BRAGA, Theophilo –

História da poesia moderna em Portugal : carta a J. M. Nogueira Lima, sobre a Grinalda. Porto :

Typographia da Livraria Nacional, 1869, p. 6.

442 Essa perspetiva escatológica clássica – a que o antigo Tratado dos Novíssimos (a doutrina das realidades

últimas) servia de base – viria, porém, a ser reconsiderada em meados do século XX, no contexto do Concílio Vaticano II. Foi dessa nova reflexão teológica que surgiu a «Constituição pastoral Gaudium et Spes : a Igreja no Mundo Actual», que já regista a redescoberta do valor da pessoa humana e a recuperação da dimensão histórico-escatológica do cristianismo. É nesse sentido que no referido documento conciliar é afirmado o seguinte: «Também na vida económica e social se devem respeitar e promover a dignidade e a vocação inte- gral da pessoa humana e o bem de toda a sociedade. Com efeito, o homem é o protagonista, o centro e o fim de toda a vida económico-social […] a Igreja, no decurso dos séculos e sobretudo nos últimos tempos, for- mulou e proclamou à luz do Evangelho os princípios de justiça e equidade, postulados pela recta razão tanto na vida individual e social como na internacional. O sagrado Concílio quer confirmar estes princípios, tendo em conta as condições actuais e dar algumas orientações, tendo presentes antes de mais as exigências do progresso económico» (GS 63) ; «A Igreja, que tem a sua origem no amor do eterno Pai, foi fundada, no tempo, por Cristo Redentor, e reúne-se no Espírito Santo, tem um fim salvador e escatológico, o qual só se poderá atingir plenamente no outro mundo. Mas ela existe já actualmente na terra, composta de homens que são membros da cidade terrena e chamados a formar já na história humana a família dos filhos de Deus, a qual deve crescer continuamente até à vinda do Senhor […] a Igreja […] caminha juntamente com toda a humanidade […] muito pode ajudar para tornar mais humana a família dos homens e a sua história» (GS 40): cf. CONCÍLIO ecuménico Vaticano II : constituições – decretos – declarações e documentos pontifícios. 11.a

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«Os passos da mesquinha humanidade «Aonde os levarei, Senhor, aonde?» Uma voz retumbou no céo radiante,

Que ao anjo respondeu, dizendo: – ÁVANTE! 443.

Júlio Dinis lamenta, pois, a morte prematura de Soares de Passos – esse poeta-sacerdote- soldado, ‘apóstolo’ da liberdade, que entoava no ‘templo’ da poesia ‘sacros hinos’. Contu- do, acredita que, semelhantemente à Fénix444 que renasce das próprias cinzas, assim tam-

bém o poeta renascerá das ‘cinzas que deixou na Terra’, porque elas são restos ‘da mais violenta chama’, que é ateada pelo ‘fogo do Céu’ – como se pode ler no poema anterior- mente transcrito. Assim, será desses ‘restos’ da poesia – a que dedicou toda a sua vida, cumprindo uma missão religiosa – que o poeta renascerá, sempre que eles sejam venerados pelo mundo.

Do poeta-sacerdote Soares de Passos, restam, pois, as suas composições poéticas, que as- sumem um papel religioso, por serem fruto do que Deus revelou à mente, fruto da poesia – que é ‘estandarte da ideia’, inspirada por Deus. Uma convicção que Júlio Dinis também exprime, ainda que de uma forma muito mais sintética, no breve poema que se segue:

VISÃO

………... Não és real. Para o seres Não foras, ó flor, tão bela; Se à mente Deus te revela, Não te cria o mundo, não. Vegetas no peito do homem, Mas não há viçoso prado Onde te beije embriagado O sopro da viração.445

443 PASSOS, A. A. Soares de – Poesias. 5.a ed. Porto : Em Casa de Cruz Coutinho, 1870, p. 84.

444 Marie-Luise von Franz afirma que, segundo o seu mestre – Carl Gustav Jung–, a Fénix é símbolo da res-

surreição de Cristo e dos mortos, logo, um símbolo de transformação: FRANZ, Marie-Luise von – Die Suche

nach dem Selbst : Individuation im Märchen. Übers. aus d. Engl. SCHOELLER, Gisela. München : Kösel,

1985, p. 181.

135 O poeta é, pois, um visionário; e a poesia, exprimindo o Belo, cria um mundo ideal que se distingue da realidade circundante, que nunca é ‘tão bela’. Esse mundo ideal, exemplar, o da ideia inspirada, só tem o seu lugar de existência na mente humana. É Deus quem o cria – e não o mundo –, revelando-o ao poeta, que escuta o desejo que vegeta ‘no peito do ho- mem’. É um desejo latente de perfeição, uma ânsia de Absoluto, por parte do homem que se vê rodeado de imperfeição, num mundo contingente.