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2.1 A transição paradigmática

2.1.2 A modernidade como projeto inacabado

A profunda mudança social provocada pelo cenário descrito gera uma crise de perspectiva que coloca no centro da reflexão a própria modernidade e as tradições teórico-metodológicas que se desenvolveram para explicá-la. Portanto, aciona a crítica à proposição de triunfo final e definitivo do capitalismo e ao liberal-positivismo que o sustenta, concomitante à crítica ao socialismo, cujo colapso catalisa a crítica à tradição marxista, matriz teórica com estreitos e profundos laços no pensamento social e político progressista e de esquerda do século XX.

Parte da crítica desenvolvida na e pela tradição marxista tem como ponto de convergência a crença no projeto de modernidade; os pontos divergentes geram

análises e soluções diferentes para a problemática da modernidade – o pós- estruturalismo e o pensamento reflexivo.

Em crítica ao triunfo final do capitalismo, a tradição marxista alega que como modo de produção o capitalismo está historicamente condenado à transitoriedade (BORÓN, 1995). Therborn (1995) apóia esta idéia com a construção de dez teses, entre elas a de que a vida do capitalismo é ciclicamente constituída de crises que geram a reformulação do padrão de acumulação. Argumenta que a “contradição atual é mais ideológica do que econômica”, sua evidência se manifesta na destruição social.

O componente ideológico também se apresenta na crise de legitimidade das construções ideopolíticas da experiência socialista, que afetam sobremaneira a tradição marxista; atribui-se a crise do socialismo, em parte, ao marxismo que o referencia. Conforme Netto (1993), esta assertiva tem suas razões, pois apesar do pensamento plural e problemático da tradição marxista, as tensões internas que a mobilizam foram insuficientes para impedir a institucionalização no Estado-Partido soviético de uma tendência exclusivista – o marxismo-leninismo. O empobrecimento da teoria marxista pela tendência leninista é também abordado por Laclau e Mouffe (2004, p. 9): “Esto debe ser afirmado sin ambages: el efecto teórico perdurable del leninismo ha sido un brutal empobrecimiento del campo de la diversidad marxista.” Simultaneamente em crítica e defesa da tradição marxista, o reconhecimento da apreensão determinista redutora e maniqueísta do marxismo-leninismo, a partir da obra marxiana17, causa da sua vulgarização pela autocracia stalinista, possibilita revitalizar a tradição a partir de profícuo embate intelectual. O debate no interior da tradição marxista intenciona resguardar a validade/legitimidade da matriz teórico- metodológica, ao tempo em que revela os elementos opressores do comunismo e suas conseqüências para os rumos do projeto socialista.

O mesmo esforço crítico para recuperar a credibilidade do arcabouço teórico marxista é empreendido para alçar o projeto socialista. Blackburn (1993) credita à renovação democrática nos países comunistas ou socialistas a possibilidade de refazê-lo em tempo real, associado à criação de novo programa capaz de nos levar

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a superar o capitalismo, já que o sistema econômico que sustentou o socialismo real

teve pouca contribuição teórica.

Sem um sustentáculo substancial para a criação de uma economia socialista, a experiência transcorre de modo empírico, a partir da tentativa e erro. A primeira e mais forte expressão da economia socialista foi a extensão máxima da propriedade pública como meio de controle da produção econômica.

O aparelho partidário, que ocupava e dominava o Estado, valeu-se de uma mistura de planejamento em estilo militar, imposta pela cúpula, e de uma mobilização de quadros proveniente das bases, para forçar o estabelecimento da economia dirigida. (BLACKBURN, 1993, p. 135).

A experiência ainda contava com o isolamento comercial, contudo, a ausência de democracia tornou-se o elemento primordial de sua estagnação econômica, pois impediu o intercâmbio científico e a inovação e o desenvolvimento tecnológico. A repressão expulsou direta ou indiretamente muitos cientistas locais, impedindo o diálogo externo e interno entre os cientistas. A prática política repressiva se estendia ao tecido social, impedindo que outras iniciativas autônomas e culturalmente plurais se expressassem.

Assim, a queda do comunismo foi também a queda de um tipo de formação social que dava pouca margem à iniciativa popular e ao pluralismo, à auto-identificação e à auto-atividade (coletiva ou individual), seja na vida econômica, na política ou na cultura. (BLACKBURN, 1993, p. 195).

O contexto de supressão extrema da iniciativa popular contrasta com a opção pelo sujeito histórico, proposta marxiana, sujeito da transformação social. O projeto de transformação social da tradição marxista cujo ápice é a revolução – movimento contra-sistêmico que visa remover a institucionalidade a partir de violenta subversão, da ocorrência de rupturas que levam algum tempo para se enraizar, com novas formas de convivência (BERMAN apud SANTOS, 2002) – ocorre parcialmente. O sujeito tolhido em sua capacidade de Ser não pode mesmo chegar às últimas conseqüências, rumo à sociedade socialista. A destruição do Estado burguês não foi capaz de criar algo totalmente novo em termos de Estado socialista e de sociedade, no lugar da sociedade burguesa. A luta social – luta de classes –, ao invés de

eliminar as classes sociais (proposta do marxismo) como parte fundamental deste processo de mudança social, criou uma nova classe social, a burocracia stalinista. O impeditivo econômico está novamente associado ao político; sem indivíduos ativos a força social criadora não pode emergir, não pode contribuir com alternativas de desenvolvimento para o sistema comunista.

Uma outra vertente do socialismo, a social-democracia, projetou-se como força social na Europa. Tendo origem na tradição marxista com diferenciais significativos, propõe minar o capitalismo por dentro, a partir de reformas que visam à transformação social, alterando de forma gradual sua própria institucionalidade. Os processos de democratização do Estado, com a prática de descentralização de recursos e de poder, são propostas social-democratas. O ponto chave é a disputa do poder a partir do sistema eleitoral, de modo a modificar a cultura política hegemônica e legitimar, gradualmente, na sociedade, um contrapoder, até que este novo poder se transforme em poder hegemônico.

O pensador Antonio Gramsci, na tradição marxista, inspirou o desenvolvimento da social-democracia, a partir de noções como guerra de posições18 e da teoria da hegemonia, que implica numa reforma intelectual e moral, ou seja, uma reforma no campo das idéias e da cultura, construção de uma nova visão de mundo que busca o consentimento ativo da maioria da sociedade na conquista da direção político- ideológica.

A estratégia é gerar uma “vontade coletiva” que respalde a transformação das relações entre as forças sociais que formatam o poder na sociedade. A transformação social é, neste caso, um processo cultural histórico especifico, cujo terreno em que se move é a luta política e cultural na sociedade civil. Para Gramsci (1988, 2001) é a luta cultural e educativa disseminada socialmente, capaz de gerar a constituição de um consenso social em torno da passagem do reino da necessidade (reino das contradições de classe) para o reino da liberdade (reino da superação dessas contradições), gerando a transformação social.

Contudo, a fissura aberta na sociedade pela reestruturação capitalista e o fracasso do socialismo enquanto experiência fermentam a crítica à modernidade na busca de 18

Guerra de posições implica considerar os processos históricos, sociais, políticos e culturais, que revelam o movimento das forças sociais em luta.

compreender o novo cenário que se desenha. A crítica à tradição marxista é parte deste processo, e o pós-estruturalismo emerge como uma delas. A crítica à tradição marxista a partir de seus fundamentos tem um efeito de enfraquecimento sobre os conceitos e suas pretensões absolutistas (LACLAU, 1992). O pensamento pós- estruturalista se coloca como “proceso de reapropiación de una tradición intelectual, como de ir más allá de esta última” (LACLAU; MOUFFE, 2004, p. 9-10).

O pós-marxismo se desenvolve a partir do reconhecimento de que muitos aspectos da sociedade contemporânea não podem ser explicados por categorias marxistas, gerando a busca por novas análises do social, que arejem seus conteúdos. Dissemina-se em muitas formas analíticas que se posicionam de modo diferenciado perante a modernidade.

Isto implica, por um lado, numa nova atitude frente à modernidade: não de ruptura radical, mas uma nova modulação de seus temas; não de abandono de seus princípios básicos, mas sua hegemonização por uma perspectiva diferente. (LACLAU, 1996, p. 11).

O pensamento pós-estruturalista questiona, sobretudo, a existência de um fundamento do ser, o ser como sujeito histórico pré-determinado que persegue um destino também pré-determinado. Por essa razão, a democracia é um conteúdo importante para os pensadores pós-estruturalistas. Para Laclau e Mouffe (2004), a capacidade de abertura e de preenchimento que a democracia possui pode ser aprofundada a partir de uma perspectiva pluralista radical como proposta de transformação social na luta por uma nova hegemonia. Os autores sustentam a importância do conflito, do antagonismo para uma política pluralista e democrática, ponto de divergência com o pensamento habermasiano.

Habermas (2002), tendo como eixo condutor a filosofia, percorre os discursos da modernidade para reexaminá-la. Os vários discursos apontam uma filosofia da consciência o tempo todo em questão, ora como reflexão sobre a consciência de si (auto-reflexão) ora como consciência para si (ação no mundo), enfim, a problemática da razão centrada no sujeito como questão principal. Habermas afirma que há um esgotamento do paradigma da filosofia da consciência, defendendo sua substituição por um paradigma do entendimento recíproco19.

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O entendimento recíproco para Habermas está contido na sua teoria do agir comunicativo, que tem como fundamento a linguagem.

Da discussão da modernidade como rompimento com o passado, portanto, propondo seguir sem modelos sua abertura ao futuro, Habermas afirma a modernidade numa dinâmica de se autonormatizar continuamente, como auto- reflexão que, através da razão, mantém o fluxo inovador que a movimenta.

A razão habermasiana da modernidade funciona como lógica que ordena a comunicação e possibilita o entendimento recíproco, o consenso entre os que se comunicam, porque a comunicação contém a verdade – a fala ideal – e a verdade faz inexistir o conflito. A democracia, portanto, é decorrente da dinâmica da comunicação pública, dinâmica que se coloca como centro reflexivo que desenvolve um saber e permite uma atuação da sociedade sobre si mesma.

Por esse motivo , as socied ades moder nas, ampla mente descentralizadas, mantêm na ação comunicativa cotidiana um centro virtual de auto-entendimento, a partir do qual até mesmo os sistemas de ações funcionalmente especificados, na medida em que não ultrapassem o horizonte do mundo da vida, permanecem a um alcance intuitivo. (HABERMAS, 2002, p. 499).

O fim dos antagonismos sociais, a partir do agir comunicativo, encontrado em Habermas, também está presente em Ulrich Beck e Anthony Giddens, em suas exposições sobre a modernidade reflexiva20. Beck (1997) expõe que não existem mais clarezas atuais da política enquanto prática política, as fronteiras são tênues entre direita e esquerda, conservador e socialista, o que não significa o desengajamento, mas um outro tipo de engajamento, que considera múltiplo

contraditório – no fundo é uma consideração à ambigüidade do ser humano.

Neste caso, a transformação social não é produzida por um agente, um sujeito, mas resulta do processo próprio de modernização, se autoconstitui por entre as ambigüidades humanas, e pelos múltiplos engajamentos políticos possíveis.

A modernização altera as práticas sociais rotineiramente, segundo Giddens (1991), o que também modifica qualquer possibilidade de controle sobre a ação social. Este processo se denota por um conjunto de fatores, assim elencados pelo autor: 1) a apropriação do conhecimento não é homogênea; 2) o conhecimento muda os

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A modernidade reflexiva dos autores é uma radicalização da modernidade, que age sobre si mesma e se transforma.

valores; 3) o conhecimento não prevê todas as conseqüências para a vida social; e 4) essa dinâmica impede um conhecimento total da vida social moderna.

A meu ver a tese da radicalização da modernidade, da transformação pela modernização, reverencia o conhecimento como causa e é displicente com a prática social, com a experiência. A experiência é uma faceta do conhecimento, portanto, também influencia a ação social.

Para Bauman (2001, p. 33), “as causas da mudança vão mais fundo, estão enraizadas na profunda transformação do espaço público e, de modo mais geral, no modo como a sociedade moderna opera e se perpetua.” A transformação do espaço público, para o autor, também se relaciona com a modernização; a diferença da sociedade do século XXI para a do século XX é a compulsão pela modernização, por um aperfeiçoamento constante dos projetos, da produtividade e competitividade. O autor em questão enfatiza uma crescente individualização em atividade na sociedade moderna, ao mesmo tempo em que há da parte dos indivíduos a reformulação e renegociação das relações em sociedade – uma rede de entrelaçamentos. E propõe que a transformação da sociedade e do espaço público passa pela transformação da individualização em questões coletivas.

É assim o espaço público está cada vez mais vazio de questões públicas. Ele deixa de desempenhar sua antiga função de lugar de encontro e diálogo sobre problemas privados e questões públicas. Na ponta da corda que sofre as pressões individualizantes, os indivíduos estão sendo, gradual, mas consistentemente, despidos da armadura protetora da cidadania e expropriados de suas capacidades e interesses de cidadãos. (BAUMAN, 2001, p. 50).

Na modernidade leve, líquida, como denomina Bauman (2001), o peso está no encontro entre as questões privadas e públicas, de modo a reconectar o indivíduo ao cidadão. Esta é uma das tarefas para o paradigma de transformação social.