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A questão da institucionalização no Brasil, nos anos 1990, mobilizou o campo teórico dos movimentos sociais. As abordagens strictu sensu, conforme Gohn (1997), que os localizam como ação coletiva num espaço não-institucionalizado, negam o movimento enquanto tal, quando ele se institucionaliza.

Gohn (1997) problematiza esta argumentação com uma acepção mais ampla de movimentos sociais, que se refere às lutas sociais dos homens, alertando sobre as generalizações empíricas, que podem produzir equívocos, quanto a considerar como movimento tudo na esfera não-institucional.

Na abordagem de Mouffe (2003), o reconhecimento da multiplicidade de elementos que compõe as identidades possibilita enfrentar sua porosidade, no sentido de acomodar outras identidades, ao que denomina de hibridismo. O hibridismo é uma atuação sobre os próprios limites da identidade, que os torna vulneráveis e desestabiliza as definições exaustivas (SANTOS, 2002).

Esta abertura identitária ao outro gera vulnerabilidade nos limites e nas definições acerca das identidades. O hibridismo possibilita pensar a institucionalização dos movimentos como elemento que penetra a identidade coletiva dos movimentos sociais populares, deslocando suas fronteiras. Significa pensar esta institucionalização não como totalidade, mas como uma dimensão da identidade, que denomino como institucionalidade, por tratar de aspectos organizativos e estruturadores, que não anula a capacidade de ação coletiva, mas a modifica.

A partir de meados dos anos 1990, a cooperação internacional, que financia vários movimentos sociais populares no Brasil, inclusive a maioria dos que compõem a amostra deste estudo, em função da mudança geopolítica mundial, dos conflitos étnicos e do agravamento da pobreza no mundo decorrente da globalização e do neoliberalismo, redefine suas políticas de parceria e financiamento.

Estas redefinições geram duas principais tendências nos movimentos sociais em questão: 1) a criação de alternativas de sustentabilidade – como se tornar capaz de se auto-sustentar; e 2) a criação de entidades jurídicas (geralmente associações) para dar suporte institucional e captar recursos junto a fontes diversas, inclusive órgãos públicos.

Dentro da primeira tendência, formas alternativas de sustentabilidade são elaboradas. No caso das associações, em teoria as contribuições dos sócios deveriam sustentá-las, mas na prática não é bem isso o que ocorre. A CEAPA, o MMT e a FAMCC apontam a dificuldade das associações manterem seus compromissos e, conforme um dos entrevistados, não é possível sobreviver das mensalidades dos sócios:

Não conseguiu trabalhar a auto-sustentação. Sempre foi para a FAMCC um desafio a questão da mensalidade dos sócios, não consegue organizar e nem ter uma proposta clara capaz de que esta receita seja importante dentro da FAMCC e de garantir a atividade e tudo mais.

Alguns movimentos vão em busca de contribuições dos parceiros, doações, fazem bingo, festa para arrecadar fundos, mas tudo isso ainda é insuficiente. A grande maioria ainda depende da cooperação internacional e entrou em crise financeira quando a reestruturação deste segmento deslocou seu foco.

O MMT está trabalhando em solução para a auto-sustentabilidade; comprou um sítio no município de Pirpirituba, sede do movimento, e está construindo um hotel e restaurante, que pode servir também como centro de treinamento para transformar este investimento em recursos para o movimento. No ano de 2000 o MMT não conseguiu a aprovação de nenhum projeto estruturador enviado à cooperação internacional, apenas recursos para atividade.

A auto-sustentabilidade também é o caminho perseguido pela ARCLs. Neste caso específico a situação é diferenciada, pois o movimento, por sua própria natureza, pode oferecer serviços de comunicação, com acesso a uma tecnologia que, embora baixa, contribui para sua sustentação. Segundo entrevistado:

Em parcerias e, além disso, estamos buscando auto-sustentabilidade, com aluguel de som, de estúdio, vendas de serviços de som. Nós somos entidades que não buscamos ter lucro, pensamos em garantir

a sustentabilidade do trabalho que a gente tem, pra que isso possa fazer um trabalho de qualidade melhor. Nós pensamos também alimentar nossos parceiros que gastam fortunas em aluguéis de som, com aluguel de estúdio, com uma série de coisas, e a gente pensa que além de alimentar nossos parceiros em oferecer um preço baixo.

O acesso a fundos públicos foi uma alternativa para alguns casos. O Dialogay, por exemplo, desenvolve trabalhos educativos sobre DST/AIDS, com recursos do Ministério da Saúde; o MOPEC desenvolve ações de monitoramento da Mata Atlântica com recursos do Ministério do Meio Ambiente. A relação com recursos públicos exige uma institucionalidade, uma organização reconhecida juridicamente, capaz de realizar a atividade, programa ou projeto, e de prestar contas do trabalho desenvolvido. Com o propósito de construir uma institucionalidade criaram associações os seguintes movimentos: MMT, Quebradeiras de Coco, MOPEC, MH2Oce, Quixabeira, ARCLs, Dialogay, SNQC, AEEC.

O fato de se tornar uma entidade associativa não implica a perda de identidade de movimento, sua capacidade mobilizatória e de ação política continua ativa e presente na vida das pessoas.

Para uma definição apropriada de identidade, precisamos levar em consideração tanto a multiplicidade de discursos e a estrutura de poder que a afeta, como a dinâmica complexa de cumplicidade e resistência, que acentua as práticas nas quais essa identidade está implicada. (MOUFFE, 2001, p. 420).

Partindo do pressuposto de que a identidade é relacional, como até agora vim desenvolvendo, as relações que as identidades estabelecem se dão num campo multifário, as relações com estruturas de poder como as instituições públicas, assim como com uma institucionalidade auto-referente – em forma de associações –, são aberturas na identidade dos movimentos sociais populares, para acomodar outras identidades, tornando-as híbridas.

Não há incompatibilidade entre ambas, a institucionalidade associativa criada pelos movimentos não anula a identidade de movimento, ao contrário, lhe é constitutiva, dá margem a um rearranjo identitário, afirmando uma identidade ainda mais complexa e contraditória. O movimento da Quixabeira, por exemplo, se posiciona acerca da institucionalidade como um elemento que passa a compor sua existência, conforme relata entrevistado:

Minha organização, a gente começamos trabalhando avulso, mas fomos obrigado a registrar o movimento porque até para angariar recursos em outras entidades existe as exigências. A burocracia que existe no Brasil obriga a gente se registrar, então aí foi obrigado a se organizar melhor porque falando que existe um movimento sem que seja registrado no papel, sem ter nossa forma registrada, a gente ficava como uma ferramenta sem corte, ou uma coisa sem guia e aí nós fomos obrigados a se organizar em documentos.

Em nenhum dos casos verifica-se a associação e a institucionalidade que dela deriva como o que dá sentido ao movimento, mas como instrumento que o apóia para fazer pulsar a ação coletiva, que ajuda a estruturar o movimento e possibilita novas alternativas de sobrevivência.