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A precariedade das identidades coletivas se manifesta, em Laclau e Mouffe (2004), através do movimento das diferenças, da impossibilidade de sua constituição plena. A impossibilidade das identidades como objetividades, ou seja, como diferenças plenamente constituídas, constitui experiência de limite colocado pela presença do antagonismo.

O antagonismo se configura pela presença do outro: “[...] la presencia del Otro me impide ser totalmente yo mismo” (MOUFFE; LACLAU, 2004, p. 168). O antagonismo expressa os limites da objetividade, deste modo, a experiência da impossibilidade de uma unidade ou totalidade do social. O limite do social não é uma fronteira criada, ele ocorre internamente, por um antagonismo que o subverte.

No social o antagonismo pode emergir em diversos pontos, como antagonismos particularistas, em diferentes espaços políticos, e criar pontos de ruptura. Cabe atentar que o particularismo apela a princípios universais para construção de sua identidade (LACLAU, 2001). Deste modo, os antagonismos colocam “[...] em questão o poder hegemônico, seus objetivos e regras” (MUTZEMBERG, 2002, p. 39).

A hegemonia é uma lógica de articulação, que atua no campo aberto e incompleto do social, através da presença de forças antagônicas e de sua instabilidade. É a possibilidade de articulação dos elementos flutuantes implicados nas relações de poder que constitui a prática hegemônica (LACLAU; MOUFFE, 2004).

Em geral as lutas pela terra são lutas entre identidades antagônicas, entre os que não podem se afirmar como camponeses ou trabalhadores rurais por não serem proprietários das terras em que trabalham, por sua expulsão da terra, por discriminação ou pelo seu não reconhecimento como trabalhador rural. Este é o caso de muitas mulheres e uma das causas abraçadas pelo MMT; durante muitos anos as mulheres lutaram para ter acesso à posse da terra legalmente, como mais um componente de sua afirmação como mulheres trabalhadoras rurais.

Para a SNQC, a luta pela legalização da posse das “terras de preto”, terras quilombolas, significa afirmar sua identidade afrodescendente, conforme afirma a Carta dos Quilombos Contemporâneos de abril de 1995:

A sociedade brasileira tem uma dívida de 500 anos com a população Afro-Brasileira. É inadmissível que o Estado persista em sua omissão, desconhecendo o seu dever de fazer valer a lei e garantir aos remanescentes de quilombos a titulaçãode suas terras.

A luta pela terra para os descendentes dos quilombolas ocorre entremeada a uma dupla negação, a negação da identidade afrodescendente e a negação como trabalhadores rurais em uma comunidade forjada pela etnia. É pela negação de sua identidade étnica que o acesso à propriedade da terra é inviabilizado.

A luta pela terra também significa para as quebradeiras de coco do MQCB sua afirmação como trabalhadoras rurais, imbricada com o livre acesso aos babaçuais, para o desenvolvimento de sua atividade extrativista, conforme afirma uma das entrevistadas:

[...] é sobre o babaçu que a gente luta, para ter ele livre, porque antes a gente não tinha acesso a este babaçu, ele era preso e agora em muitos lugares ele está sendo livre e a gente já teve um bom êxito neste momento em que a gente já conseguiu algumas área, que mesmo tendo os donos, não sendo das quebradeiras, a gente conseguiu isso, ele livre.

No caso das quebradeiras de coco babaçu, há um confronto com os proprietários da terra, a própria propriedade da terra é questionada, no sentido de seu uso para extração do coco babaçu. Mais do que sua afirmação como quebradeiras, o antagonismo se expressa na subversão da propriedade da terra, não para tomar posse integralmente da terra, mas para ter a posse de seus frutos, através da extração do coco babaçu.

A questão ecológica/ambiental acrescenta algumas interfaces relevantes na luta social do campo, especialmente no tocante à preocupação com o combate e o controle da devastação. Este combate à devastação está presente na vida das quebradeiras de coco – inclusive a preservação do manancial de plantas medicinais entra em pauta em outros momentos –, conforme se vê no seguinte depoimento:

“Sim, porque a gente não luta só pelo babaçu, mas também pelas árvores, que a gente luta para que elas sejam preservadas e também não seja devastada.”

Pode-se pensar que a preservação das palmeiras é algo óbvio, pois sem palmeiras não há quebradeiras de coco, no entanto, essa consciência não é automática. Há muitas atividades extrativistas por parte da população que devastam, como, por exemplo, a extração de madeira da Mata Atlântica para produzir carvão, sem haver esta preocupação com sua própria existência; às vezes o que conta é a sobrevivência imediata. No caso das quebradeiras, elas desenvolveram uma forma de colher o babaçu que não ameaça a vida da palmeira.

Para a CEAPA a questão ambiental diz respeito a um processo educativo junto aos agricultores familiares, de modo a combater a contaminação do meio ambiente, mas principalmente para melhorar a alimentação das suas famílias; à mudança da mentalidade agrícola para uma convivência com o potencial nativo da região e a geração de renda, através dos produtos orgânicos. Deste modo, gerando um modelo produtivo antagônico ao modelo produtivo capitalista. Um entrevistado relata como se desenvolvem essas ações:

[...] nós temos um projeto de educação ambiental onde fizemos alguns cursos de multiplicadores em educação ambiental, estamos executando esses cursos a nível das comunidades em que já foram feitos esses cursos multiplicadores nas regiões. [...] nós vamos implantar em torno de 50 a 70 hortas orgânicas no estado para que os agricultores tenham primeiramente o que comer, garantir a alimentação na sua casa e também que essa horta gere renda para ele [...] aonde vamos produzir algumas mudas no viveiro do Genipapo, mudas nativas daquela região e também da caatinga, pra gente trabalhar com os agricultores na questão de algumas espécies nativas.

A importância da produção de alimentos orgânicos para consumo das famílias e geração de renda significa romper com a lógica produtivista, na qual o que conta é a quantidade de produtos para venda no mercado consumidor e o lucro oriundo disso, não a qualidade e a preservação da vegetação nativa.

O MOPEC se posiciona em relação ao modelo produtivo propondo a luta por um novo modelo de desenvolvimento, com base no ecodesenvolvimento, que preconiza, entre outras coisas, a redução dos riscos ambientais com o desenvolvimento de

empreendimentos econômicos, como esclarece o documento Análise do Modelo de

Desenvolvimento de Sergipe na Ótica do Eco-Desenvolvimento:

Eles até poderiam ser realizados com sucesso do ponto de vista da causa ecológica, se a sociedade definisse democraticamente quem arcaria com os custos dos investimentos, que os riscos ambientais fossem drasticamente reduzidos a um mínimo aceitável, que as leis ambientais fossem cumpridas, que a melhoria da condição de vida fosse assegurada, com melhores salários (com participação nos lucros), com benfeitorias sócio-básicas cumpridas (saneamento, luz, água, reciclagem do lixo etc.) e o exercício da cidadania fosse pleno para todos sem discriminação social ou racial, pois esses são os pilares básicos do eco-desenvolvimento.

A proposta do ecodesenvolvimento implica numa inversão quase total do modelo de desenvolvimento capitalista. O que o MOPEC, assim como outros movimentos ecológicos, questiona é o modelo de desenvolvimento fundado sobre a primazia do mercado, o esgotamento dos recursos naturais e a degradação da qualidade de vida, especialmente para as camadas mais pobres da população.

Ainda com referência a questões ecológicas/ambientais, o MOPECE aponta os projetos de desenvolvimento que produzem desequilíbrio ambiental. O PRODETUR, criado para desenvolver o potencial turístico dos estados litorâneos do Nordeste, é questionado por estimular a expansão do turismo sem o devido controle sobre a depredação do meio ambiente, a descaracterização do litoral, e por deteriorar a vida das comunidades dos pescadores, causando por vezes sua expulsão. O MOPECE aponta que o turismo sem a devida regulamentação, sem educação ambiental e monitoramento, produz a especulação imobiliária (hotéis e residências), descaracterizando o meio ambiente e provocando a contaminação do biótipo natural litorâneo.

O combate à pesca predatória não diz respeito apenas à preservação da fauna litorânea, mas a um padrão de pesca que elimina gradativamente o pescador artesanal, pela falta do pescado. A agressividade da pesca predatória interrompe, por vezes, a reprodução natural dos peixes, posicionando em lados opostos a pesca artesanal e a pesca industrial. Um pescador entrevistado relata uma das ações contra a pesca predatória:

[...] de todas as coisas que estavam acontecendo no litoral do Ceará, principalmente a questão da especulação imobiliária, que os pescadores estavam sofrendo e da pesca predatória. [...] Então, todas essas associações de pescadores dessa área, elas se uniram

nessa Caravana e o que aconteceu foi que tivemos realmente uma redução da pesca predatória. Mas não tanto pela fiscalização, em si, mas pela ação dos pescadores.

Mais uma vez o modelo de atividade produtiva mercadológica se opõe a um preservacionista, não apenas pela consciência dos efeitos da pesca industrial sobre o biótipo marinho, mas pela sua ameaça à própria existência da pesca e do pescador artesanal, comprometendo a vida de uma comunidade inteira, principalmente em seus aspectos culturais, econômicos e sociais.

A vida comunitária também pode ser comprometida pela existência do racismo, da discriminação racial. Este é um elemento primordial para a SNQC – o combate ao racismo e à discriminação racial. O racismo é a negação do outro, neste caso da etnia afrodescendente. Decorre desta negação o desconhecimento pela própria população afrodescendente de sua história e de sua importância para a construção de lutas libertárias no Brasil, a exemplo da Balaiada, que foi resgatada pela SNQC e pelo Centro de Cultura Negra (CCN), em projeto educativo organizado em 2001, denominado O Negro Cosme e a Balaiada no Maranhão, implantado nas escolas.

Na escola, por exemplo, a criança recebe diariamente estímulos negativos em relação a sua cultura e, sobretudo, à sua personalidade cultural e étnica. Dessa forma a criança negra é levada a concluir que sua realidade cultural, social e familiar não é adequada e nem pode ser incorporada em outras relações sociais e grupais. Neste contexto, a atividade aqui apresentada objetiva superar o preconceito e combater atitudes discriminatórias, pois acreditamos que a escola é um local onde se possa desenvolver o diálogo, mudar mentalidades e formar opiniões, promovendo a cidadania entre os diversos grupos culturais existentes (p. 2).

O combate ao racismo é uma ação afirmativa da identidade negra, que passa pelo fortalecimento da comunidade afrodescendente e de sua auto-afirmação, de modo a romper com o ciclo do preconceito. É, portanto, uma relação de dupla afirmação e de rompimento, a auto-afirmação da identidade negra pela comunidade afrodescendente e sua afirmação frente a outras identidades, cujo movimento de subversão se manifesta em seu interior e exterioridade.

De modo parecido pode-se compreender a luta em defesa da homossexualidade por parte do Dialogay. O movimento busca dar visibilidade à discriminação dos que expressam sua diferença em termos de orientação sexual. O movimento traz à tona

a marginalidade em que vivem os homossexuais como conseqüência do preconceito, conforme artigo na revista Krion nº 1, do qual extraí o trecho abaixo:

Essa discrição é exigida a cada dia na família e sociedade aracajuana, que cobra uma postura viril de seus filhos e maridos. Quebrar essa regra é o mesmo que banhar-se em um mar de lama, autorizando a todos enxergar como alvo de críticas, chacotas, insultos e rejeição.

Os homossexuais, assim como outros grupos – lésbicas, travestis, bissexuais –, são obrigados a levar uma vida dupla, escondendo, disfarçando sua orientação sexual, para serem respeitados socialmente. O que os expõe a situações de risco, pois a maioria acaba buscando espaços inseguros para a vivência de sua sexualidade. Embora com caráter diferenciado, a luta pela democratização dos meios de comunicação empreendida pelo movimento das Rádios Comunitárias é uma luta por igualdade de condições, com as emissoras comerciais, para realizar a comunicação com maior espectro de alcance. A ARCLs, na luta pela democratização da comunicação, busca se realizar plenamente naquilo que a origina – a comunicação na comunidade e em prol dela.