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Tema 2: Educação

2.4. A modernidade líquida

Contemporaneamente, muitas daquelas características do início da modernidade – por vezes chamada de modernidade clássica – parecem ter se transfigurado e não ser mais completamente válidas ou, no mínimo, não ser mais tão importantes para o estado de coisas em que nos encontramos. Por isso, diversos teóricos têm optado por designar o período histórico em que vivemos por outra categoria, seja pós-modernidade, modernidade tardia, hiper-modernidade ou, como sugere Bauman (2001), modernidade líquida.

Para Bauman (1999; 2001), esta nova forma que a modernidade assumiu diferencia-se por duas características específicas: a desintegração da ilusão modernista de uma finalidade maior alcançável, uma sociedade justa e ideal, e a privatização dos serviços e tarefas que conduziriam a esta modernização. Com sua nova forma, a modernidade líquida faz com que indivíduos encontrem apenas outros indivíduos. Assim, a eles, resta apenas assumir total responsabilidade por suas decisões e as conseqüências das mesmas.

Uma importante característica desta nova fase da modernidade, portanto, diz respeito a uma gradual perda do sentido que se foi sentindo com relação à história, e a qual se foi expandindo até tomar a forma de um esvaziamento simbólico de nossa herança cultural. Este progressivo rompimento da junção entre passado, presente e futuro lançaria o sujeito moderno em um eterno sentimento de presente e imporia, portanto, uma fragmentação da experiência.

20 Muito embora os temas “trabalho” e “educação” atravessem um ao outro de maneira indissociável, uma

divisão didática está sendo realizada. A análise relativa ao trabalho será retomada em maiores detalhes no capítulo seguinte, quando houvermos discutido sua dimensão simbólica.

A incapacidade de articular passado, presente e futuro em um todo significativo estabeleceria uma ruptura entre a modernidade clássica, ou sólida, e a atualidade.

Para Bauman (2001), a modernidade sólida teria início com o advento de um conjunto estável de valores e modos de vida cultural e político. Daí a utilização de tal metáfora, a “liquidez”, para interpretar a sociedade contemporânea. Na modernidade líquida, as relações humanas são mais fluidas, a vida em conjunto, o convívio familiar, a vida a dois, os grupos de amigos, as afinidades políticas, e tudo mais, perdem a consistência e a estabilidade. Mais do que isso, tudo se torna “permeável”. Enquanto a modernidade sólida buscava a tudo destruir para reconstruir da forma mais sólida possível, a liquidez da modernidade contemporânea em nada colide duramente. Antes, contorna, adapta-se e “encharca” a todas as formas de sociabilidade, todas as diversidades culturais e todos os obstáculos econômicos.

No mundo líquido, explica Bauman (2001), a comunidade torna-se um mito e tem império a individualização radical, pois agora são todas as formas de sociabilidade que sugerem dependência mútua passam a ser vistas com desconfiança. Antes considerada uma ameaça, é agora a diferença que se torna uma exigência: todos devem forjar-se como indivíduos particulares, tarefa cuja conseqüência é de sua inteira responsabilidade. Na modernidade sólida, a identificação se dava por meio da conformação a uma determinada classe e, portanto, havia ainda um coletivismo construído através do sentimento de igualdade e conformidade. Hoje, a individualização não seria mais uma escolha, mas uma fatalidade a qual devem os indivíduos se afeiçoar.

Não surpreende que não mais se escrevam distopias nestes tempos: o mundo pós-fordista, “moderno-fluido”, dos indivíduos que escolhem em liberdade, não mais se ocupa do sinistro Grande Irmão, que puniria os que saíssem da linha. Neste mundo, no entanto, tampouco há espaço para o benigno e cuidadoso Irmão Mais Velho em quem se podia confiar e buscar apoio para decidir que coisas eram dignas de ser feitas ou possuídas e com quem se podia contar para proteger o irmão mais novo dos valentões que se punham em seu caminho; e assim as utopias da boa sociedade também deixaram de ser escritas. Tudo, por assim dizer, corre agora por conta do indivíduo. Cabe ao indivíduo descobrir o que é capaz de fazer, esticar esta capacidade ao máximo e escolher os fins a que essa capacidade poderia melhor servir – isto é, com a máxima satisfação concebível. Compete ao indivíduo “amansar o inesperado para que se torne um entretenimento.” (BAUMAN, 2001, p.74)

A essa exigência cultural de individualidade, soma-se o fator econômico do excesso de produtividade da modernidade clássica. Ocorre no século XX, como explica Severiano (2001), uma superprodução dos bens industriais em relação aos bens de consumo não

duráveis, ocasionando uma crise por parte da demanda, pois não havia consumidores com poder de compra para absorver a abundância dos objetos produzidos. Sob o risco de colapsar todo o sistema capitalista, os setores produtivos procuram se adaptar à situação através da criação de uma estrutura de consumo massificado. Configura-se assim, uma nova fase do capitalismo, centrado no consumo de massas.

Essa produção para o consumo, nos fala a autora, visava o escoamento da superprodução e, para isso, era fundamental gerar nas massas novos desejos, multiplicando o consumo para muito além das necessidades básicas. A organização da produção, que consistia na sistematização e padronização do trabalho, visando à máxima eficiência no processo produtivo com maior economia de tempo, por meio da linha de montagem, atinge um esgotamento por volta da década de 70. Apesar de a serialização se apresentar no ápice da rentabilidade, eram então os consumidores que exigiam novas e melhores coisas.

A demanda crescente por “personificação” [...] não mais conseguia ser suprida via produtos serializados. O design, a marca, ou qualquer outra coisa que diferenciasse os produtos, teriam que ser permanentemente renovados. Dessa forma, o “diferencial” do produto ganha destaque, assistindo-se ao início de um vertiginoso processo de competitividade na busca por novos mercados, surgindo daí a necessidade de “segmentação”. (SEVERIANO, 2001, p.77).

Também Severiano (2001), critica a glorificação ao individualismo narcisista como uma emancipação real do indivíduo, ao mesmo tempo em que reconhece o caráter extremamente simbólico do consumo, que é intensamente estimulado pelos meios de comunicação na contemporaneidade. A publicidade, em particular, atuaria por meio de discursos de sedução, usados para produzir ideais e para fetichizar esses objetos – no sentido de falsificar as relações implicadas em sua produção e de criar novas significações arbitrárias para o mesmo. A indústria publicitária, explica ainda a autora, conduziria a um reencantamento do mundo, onde os objetos de consumo prometem soluções imediatas. As inovações tecnológicas e os novos recursos da mídia possuiriam papel capital como promotores de bens simbólicos fabricados globalmente e consumidos não por seu valor de uso, mas por traduzir certos “estilos de vida”, associados a imagens de marca, e a partir das quais os indivíduos passam a se reconhecer e a se diferenciar.

Frente à instabilidade psíquica derivada do debilitamento dos antigos códigos nacionais, éticos, políticos e religiosos, a publicidade veio a constituir-se numa nova instância cultural de extrema significação na ação normativa social. Na qualidade de instância simbólica, a publicidade, além de passar a mobilizar intensamente o desejo do consumidor atomizado, conferindo-lhe certa estabilidade social [...] e

referência de identidade, também exerce a função legitimadora da estrutura produtiva e reprodutiva do capitalismo. Isso porque, efetivamente, promove o escoamento dos produtos que de outra forma não poderiam ser consumidos, além de veicular códigos de consumo que não são neutros: são códigos morais e éticos próprios de uma “cultura do narcisismo” [...] (SEVERIANO, 2001, p.18)

Baseando-se na obra de Lasch, a autora percebe ainda uma estreita relação entre a cultura do narcisismo que vivemos e o desenvolvimento da publicidade enquanto núcleo privilegiado de produção simbólica. Afinal, é com base nesse estado cultural em que cada indivíduo volta suas atenções acentuadamente a sua realização pessoal privada, ao invés de preocupar-se com ideais políticos coletivos, que pode existir tão francamente uma ligação entre seus desejos personalíssimos e as opções de consumo. “Beleza, juventude, a felicidade, o sucesso pessoal etc são cada vez mais reinvidicados pela indústria cultural como bens a serem adiquiridos através do consumo.” (SEVERIANO, 2001, p.19).

Para Severiano (2001), a perda dos referenciais de identidade da modernidade, tanto éticos, quanto religiosos e mesmo políticos, bem como o forte descompromisso social da sociedade contemporânea, teriam levado a uma fragilidade egóica dos indivíduos. Assim, eles passaram a demandar soluções particularistas para sua experiência da vida. E tais demandas foram respondidas, espetacularmente, pela publicidade enquanto instância produtora de ideais – no sentido de erigir objetos no ideal de ego dos indivíduos, constituindo modelos ideais a serem atingidos por meio do consumo e que, apesar de socialmente produzidos, são vividos como algo “próprio” de sua personalidade.21

Acrescenta ainda que a publicidade foi-se instituindo, gradualmente, como instância simbólica e cultural cujo objetivo é promover o modo de ser do capitalismo voltado ao consumo, agenciando uma nova subjetividade de acordo com os interesses do sistema. A socialização, produzida pela publicidade, associa ao consumo um caráter estatutário. Estimula o espírito gregário, a necessidade de aprovação exterior e a estetização da vida; condena, entretanto, qualquer atitude que pudesse contradizer uma suposta liberdade individual, como o espírito de poupança e o uso estritamente instrumental dos objetos.

Do ponto de vista da produção de subjetividades, porém, carece de sentido a naturalização de um ego que deve ser fortalecido – mesmo numa perspectiva psicanalítica,

21 Severiano (2001) empreende uma minuciosa análise do conceito de narcisismo desde a perspectiva clínica de

Freud até a teoria crítica de Marcuse e Adorno, base para sua análise da publicidade televisiva (no Brasil e na Espanha). Esta dissetação não aborda com o mesmo grau de detalhe o conceito de narcisismo, mas apenas o toma como um tipo de territorialização da subjetividade. O narcisismo corresponderia à uma territorialização da identidade mais fluida que aquela da modernidade sólida, na medida em que o território subjetivo do “eu” é constituído por sucessões de atos de “consumo” (através dos quais o indivíduo assim produzido se identifica e se gratifica).

como ressalta Alberti (1999), a neurose reside numa força exacerbada do ego. A subjetividade, como compreende Guattari (1993), porém, não está limitada à constituição de um ego, nem deriva da soma das forças dessas unidades individuais. A transição de agenciamentos “sólidos” para “fluidos”, para usar a expressão de Bauman (1999), produz alterações na forma assim constituída do indivíduo particular, mas isso não significa que a subjetividade se reduz às formações de individualidade.

Devemos lembrar de todo o processo necessário, como apontado por Bauman (1999; 2001), para que se produzisse uma individualização acentuada da subjetividade. Tão logo esse processo se instalou, o “indivíduo”, como forma produzida, passou a sentir esse vazio subjetivo ou essa “fragilidade egóica”. Apenas se sustenta a equação de que a sociedade reforça traços de personalidade narcisistas nos indivíduos quando se tomam o indivíduo e a sociedade como formas dadas – estabelecendo, conseqüentemente, uma relação dialética entre essas duas entidades “apriorísticas”.

Contrariamente, pensamos pautados em Guattari e Rölnik (1999), que a subjetividade é produzida em seus agenciamentos concretos, formando objetos e sujeitos concomitantemente. Isso implica que a subjetividade não está atrelada em definitivo ao indivíduo, nem é a somatória de forças individuais em si contidas, mas é um processo coletivo que pode vir a se individualizar completamente apenas em aparência.

Este pensamento, enfim, corrobora com a idéia de Guattari e Rölnik (1999) de que há, nas atuais máquinas do capitalismo, um investimento técnico que se empenha em reproduzir a subjetividade capitalística. Estes dispositivos de produção de subjetividade, que devem ser considerados em seus agenciamentos concretos – dentre os quais encontramos a mídia, os sistemas de crédito, a publicidade, o culto ao corpo, a cultura de auto-ajuda – e os quais tendem a reduzir a subjetividade a formações personológicas. Nas palavras de Guattari e Rölnik (1999, p.39):

O CMI22 afirma-se em modalidades que variam de acordo com o país

ou com a camada social, através de uma dupla opressão. Primeiro, pela repressão direta no plano econômico e social – o controle da produção de bens e das relações sociais através de meios de coerção material externa e sugestão de conteúdos de significação. A segunda opressão, de igual ou maior intensidade que a primeira, consiste em o CMI instalar-se na própria produção de subjetividade: uma imensa máquina produtiva de uma subjetividade industrializada e nivelada em escala mundial tornou-se dado de base na formação da força coletiva de trabalho e da força de controle social coletivo.

Isso significa que a subjetividade contemporânea, ao sofrer atravessamentos de tais equipamentos coletivos, que avançam em conexão com os diversos progressos tecnológicos, precisaria buscar linhas de fuga para escapar à profusão de seus contornos identitários. Na medida em que um mesmo vetor de subjetivação se reproduz por todo o globo, reduzindo toda a singularidade das relações humanas a uma mesma escala de valores, na qual se é o que se consome. Esse avanço da subjetivade capitalística é, em termos éticos e estéticos, uma perda extremamente significativa e são justamente processos diferenciados de apreciação ética e estética do mundo e de si que podem atuar como linhas de fuga dessa lógica redutiva da subjetividade contemporânea.