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Adolescência e juventude na publicidade: licencioso consumo

Tema 15: Felicidade

4.3. Adolescência e juventude na publicidade: licencioso consumo

A publicidade tem se mostrado capaz de interpenetrar, com seu discurso polissêmico e quase onipresente, todos os tipos de mídia e de linguagens midiáticas, sugerindo incontáveis bens e serviços para o consumo dos jovens, ou mesmo revestidos de juventude e para o consumo de todos. Aparentemente, essas produções se expandem cada vez mais para além das fronteiras consideradas como tipicamente adolescentes, contagiando as crianças, que desejam ser adolescentes até mais do que desejam ser adultas, e os próprios adultos, que com freqüência abandonam sofrivelmente o modo de vida juvenil.

É notório que a indústria publicitária que promove signos da juventude não está relacionada apenas a produtos específicos, tidos como essencialmente adolescentes (calças

jeans, refrigerantes e novas tecnologias etc), de modo similar ao que ocorrera no processo

inicial de segmentação de um mercado “jovem”. Há também produções diversas e em número crescente que procuram territorializar a juventude e a adolescência, ao relacioná-las a beleza, saúde, jovialidade, independência, “atitude” e “rebeldia”, bem como à posse ou usufruto dos mais variados objetos ou serviços. Hoje, podemos facilmente observar que não há praticamente nenhum tipo de bem de consumo no qual a publicidade que não relacionar à juventude ou à adolescência.

O “consumo” destas imagens, entretanto, não se dá de forma meramente individual. O que se afigura mais comum, até porque muito mais intensamente reforçado por estratégias mercadológicas, é o consumo de certo visual, ao qual se associam uma insodável “atitude” e os valores que a compõem (muito embora não fique claro o que, exatamente, constituem tais “atitudes” e o que seus valores implicam num contexto mais amplo). Esses visuais também são comumente associados a interesses estéticos que os caracterizariam ou dado estilo musical, tido como próprio daqueles que os compartilham (e daí falar-se em tribos de

metaleiros, funkeiros, regueiros, punks, emos etc). Aliás, é conveniente que assim o seja, para

que se obtenha lucro, pois o mercado do consumo exige sobretudo massificação, mesmo que de forma segmentada e especializada num ou noutro visual.

Os adolescentes [...] se reúnem em grupos que podem ser mais ou menos fechados, mas sempre apresentam ao mundo uma identidade própria, diferente do universo dos adultos e dos outros grupos. No mínimo, são comunidades de estilo regradas por traços de identidade claros e definidos, pois os membros devem poder pertencer a elas sem ter de coçar a cabeça se perguntando: "Mas o que será que os outros querem para me aceitar?" Os grupos têm portanto em comum um look (vestimentas, cabelos, maquiagem), preferências culturais (tipo de música, imprensa) e comportamentos (bares, clubes, restaurantes etc.). (CALLIGARIS, 2000, p.57)

No consumo de certo estilo de ser jovem ou de ser adolescente, o corpo parece ser o mais adorado objeto, justamente porque nele se pode vestir roupas, adereços e apetrechos carregados de significações, dando-se, assim, a impressão de que esses acessórios podem, ao modo das tatuagens, definitivamente compor nossa pele e nossa personalidade – com a vantagem de que, diferente do espaço íntimo, esses signos são imediamente reconhecíveis. E, de fato, é exatamente assim que as próprias tatuagens tornam-se um objeto de consumo. Contudo, a adesão a tal ou qual estilo não se limita ao corpo e aquilo que o reveste de valor. Quase qualquer coisa hoje poderia marcar um dado estilo, e aí se incluem também as experiências culturais. Assim, formam-se grupos juvenis (embora não exclusivamente compostos por jovens) como os otaku, consumidores de filmes, desenhos e quadrinhos da cultura japonesa, ou geeks, consumidores de novas tecnologias, jogos eletrônicos e de tabuleiro etc.

Quando focamos apenas a variabilidade e a mutabilidade dos estilos a serem seguidos e compartilhados, é possível julgar os efeitos da globalização da economia e da mundialização da cultura juvenil como fatos imanentemente singularizantes (e isso independeria do fato de que esse mercado é movimentado justamente pelo lucro). Encontramos, seguindo esse pensamento, a existência de subjetividades individuais que tenderiam a um constante processo de reinvenção de si mesmas por meio de sua experiência em universos cambiantes e mutáveis, aprendendo a curtir a própria juventude (ou a reconquistá-la), tornando seus corpos mais belos e mais saudáveis. Logo, tanto a criação individual quanto a coletiva estariam ocorrendo mais profusa e mais profundamente que antes, delineando novas cartografias de forças e, portanto, novas maneiras de ser jovem e viver o mundo a partir dessa juventude.

Essa compreensão do consumo como fundamentalmente singularizante foi apresentada muito claramente na análise de Lipovetski (1989). Esse autor compreende que, ao se consumir um objeto ou um serviço qualquer, deseja-se o desfrute narcisista e hedonista do mesmo e não apenas seu valor de uso racional. O prazer, que se conquista com a ludicidade, a novidade e as qualidades estéticas do produto, atuaria como uma espécie de valor de uso “subjetivo” que

ultrapassaria, em muito, a importância de suas propriedades “objetivas”, como conforto, segurança e eficiência. Se assim ocorre, podemos compreender que juventude passa a constituir uma qualidade subjetiva a ser produzida e consumida para a realização dos desejos individuais narcisistas. Para sentirem-se jovens, os indivíduos demandariam bens que os satisfaçam, que os façam viver o máximo de seu vigor, de sua beleza, de sua sexualidade, de sua jovialidade...

Para Lipovestki (1989), mesmo essa oferta de produtos associados às qualidades subjetivas, como juventude e beleza, obedeceria a esse insaciável desejo de gozo que se desenvolveu nas subjetividades dos indivíduos contemporâneos – os quais são extremamente narcisistas e, na mesma medida, altamente independentes do julgamento alheio. Assim, a produção industrial se veria forçada a atender tais finalidades, estetizando e diversificando cada vez mais seus produtos, como meio para atingir a lógica dessa demanda de diferenciação pessoal e conseguir lucro. Em outras palavras, o mercado se curvaria ao indivíduo.

Assim, Lipovetski (1988) afirma que a identidade do indivíduo pós-moderno pode ser encontrada no narcisismo. Seria o culto a si mesmo que melhor caracterizaria suas relações com os outros, consigo mesmo, com o corpo e com o mundo. Despolitizado e desesperançoso das grandes causas sociais, este indivíduo contenta-se em zelar pela própria saúde e situação material. Vive em função do presente e em busca do novo, e não mais se enraíza em tradições, territorialidades arcaicas ou pertença a determinada classe social. Não se trataria exatamente de conquistar individualidade através da liberdade de escolha no diversificado mundo dos objetos, mas de manifestar o gosto pessoal, a própria individualidade, através de tal opção. E isto é possível porque os consumidores buscariam apenas a satisfação pessoal e indiferente a críticas alheias. Nas palavras de Lipovestky (1989, p.175):

O neonarcisismo reduz nossa dependência e nosso fascínio em relação às normas sociais, individualiza nossa relação com o standing; o que conta é menos opinião dos outros do que a gestão sob medida de nosso tempo, de nosso meio material, de nosso próprio prazer.

A justiça do sistema capitalista, portanto, se faria porquanto as propriedades dos objetos, sejam objetivas ou subjetivas, seriam efetivamente conquistadas e experimentadas por seus consumidores, mesmo porque os bens são ofertados igualitariamente a todos os sujeitos e porque estes são livres para escolher o que desejam. Dessa maneira, ao exercer sua liberdade e seu gosto pessoal, os indivíduos poderiam criar seus próprios estilos de consumo e

personalizar sua própria maneira de ser – incluindo sua própria maneira de ser jovem ou de ser adolescente.

Ainda segundo Lipovetski (1988), presenciaríamos um esvaziamento do campo político, típico dos Estados-nações da modernidade, a que se refere Bauman (1999), e a fundação, com base em um individualismo narcisista, de uma Era que substitui a coerção pela comunicação, o interdito pela fruição e a massificação pela personalização, pois tudo é feito sob medida. Viveríamos também uma época em que até mesmo as instituições legais mais repressivas procuram humanizar sua imagem e não impor uma Lei una e coercitiva – como vemos na publidade 16, das Forças Armadas.

Hoje, para o autor, nem o consumidor estabeleceria mais uma relação de encantamento com os objetos, nem a publicidade tenderia mais a convencer – muito embora possam existir algumas poucas propagandas que buscam persuadir. A publicidade, desse modo, não serviria à lógica do poder burocrático, nem manobraria o comportamento do consumidor, mas buscaria simplesmente entretê-lo, fornecer a ele argumentos plausíveis e, de certo modo, seduzi-lo por meio do espetáculo e do divertimento.

Para Lipovestki (1989), o ideal publicitário renunciaria ao poder totalitário, pois não se empenha em refabricar, de cabo a rabo, os pensamentos e as atitudes dos indivíduos, nem visaria reformar o homem e ou seus costumes, mas o tomaria “tal como ele é”. A publicidade simplesmente se empenharia em estimular o desejo de consumo que já existe e de difundir normas e ideais aceitos por todos, mas que seriam insuficientemente praticados. A publicidade, portanto, seria insignificante para os indivíduos em suas vidas e em suas escolhas profundas. Nesse sentido, podemos nos perguntar, seria possível dizer que a publicidade não produz subjetividade?

Seria, para o autor, uma lógica da sedução sem limites o que regeria as relações interpessoais, o consumo e a organização social como um todo. Talvez, para Lipovestki (1988), os gritos de libertação dos jovens dos anos 60 e 70 tenham finalmente triunfado, tornando os tempos atuais um espaço de liberdade e de diversidade sem iguais. Com vistas a saciar os desejos individuais, o consumo de produtos de beleza poderia, objetivamente, evitar ou reduzir os sinais de envelhecimento da pele, por exemplo. Ao mesmo tempo, o consumo de uma composição qualquer de vestimentas, logomarcas, maquiagens e adereços poderiam inserir qualquer indivíduo em um visual juvenil e, portanto, no modo de ser adolescente de sua preferência.

Para Lipovetski (1989), a questão fundamental para compreender-se tal organização social, do progresso das tecnologias e da sucessão material incessante, foi a insurgência da

subjetividade moderna que cultua o individualismo e consagra a novidade. Teriam sido o surgimento de tais valores e significações, que dignificam particularmente o novo e a expressão da individualidade que teriam tornado possível o nascimento e o estabelecimento do sistema de moda e de consumo. Em outras palavras, teriam sido as subjetividades modernas – ao mesmo tempo individualistas e frívolas – que permitiram a organização do sistema econômico-social sob a forma da sociedade de consumo (e não a necessidade econômica de um escoamento de mercadorias).

Esse pensamento nos conduz também à apreciação que Maffesoli (2000) faz da formação de “tribos urbanas” na modernidade, a qual assume um sentido similar em vários pontos ao de Lipovetski (1989). Para Maffesoli (2000), com a pós-modernidade, ocorreu a morte do indivíduo burguês como o conhecíamos, o que significa o fim da moral universal e castradora da modernidade clássica. A diferença entre os pensamentos de ambos os autores está na elaboração por Maffesoli de um sentido coletivo para esta identificação e este narcisismo (que Lipovestki reconhece como eminentemente individual).

Os valores dominantes e gerais que deveriam ser aceitos por todos na modernidade, para Maffesoli (2000), corresponderiam a uma lógica da identidade, a qual teria chegado a um estado de saturação, na contemporaneidade. Por esta lógica, entende-se um modelo individualista em que a identidade é completamente estável e conhecida, e na qual uma vez que o indivíduo houvesse a constituído, esta seria permanente. Contraposta a esta moral moderna, o autor distingue uma insurgente ética de estética, na qual não há obrigação ou sanção, e a experiência, ou melhor, “o experimentar junto” constitui o fator máximo de sociabilidade. Nesta ética pluralista e tolerante à diferença, a lógica da identidade seria substituída pela lógica da identificação, de natureza coletiva. A realização desta estética pluralista, assim, se daria na relação com o outro e seria baseada na cultura e no sentimento de atração por interesses comuns, na qual o corpo e a aparência assumem a função de máscaras variáveis, permitindo a transposição dos sujeitos entre valores diversos.

Dois pontos são particularmente relevantes na apreciação deste fenômeno por Maffesoli (2000). Primeiro, seu conceito de tribos urbanas se assemelha bastante ao de grupos em processo de singularização, criado por Guattari, embora também uma ressalva seja necessária quanto a isto. Apenas haverá uma correspondência de sentido aqui se essas tribos forem capazes de desenvolver uma autonomia com relação aos vetores dominantes de subjetivação. Isto quer dizer que haverá realmente uma singularidade, na medida em que tais grupos veicularem, de fato, seu próprio sistema de valores, pois nesta mesma medida eles assumirão uma autonomia relativa aos vetores de subjetivação capitalística e demais vetores

dominantes da subjetividade. Além disso, se, para Maffesoli, “a sociedade do contato se exime de uma perspectiva social e política, Guattari [...] aposta na gestão de novas práticas sociais, onde o conteúdo político não está ausente”. (MIRANDA, 1996, p.66-67)

O segundo ponto a se pensar com relação à idéia de tribos urbanas é sua relação com a adolescência e a juventude. A julgar pelo senso comum e pela forma como a mídia e a publicidade associam os jovens às tribos, a conexão aqui seria inextrincável, como se fora um dado natural. Bom, muito embora o jovem não seja “naturalmente” propenso a se organizar em pequenos grupos, é isso mesmo o que encontramos concretamente nas escolas, nos

shoppings e em locais públicos hoje em dia. Estas “tribos” adolescentes compartilham signos,

possuem seus próprios rituais de identificação, circulam nestes espaços e trocam experiências culturais, que apreendem do seu cotidiano e, talvez de forma mais intensa, da mídia.