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2 PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO, CIÊNCIA E SITUAÇÃO DAS MULHERES

2.3 A MULHER COMO NÃO SUJEITO 31 /SEGUNDA ORDEM

Há um princípio bom que criou a ordem, a luz e o homem, e um princípio mau que criou o caos, as trevas e a mulher.

Pitágoras [s.d.] apud Beauvoir (1970, p. 7)

Eu disse como esse livro [O segundo sexo] foi concebido; quase fortuitamente, querendo falar de mim, percebi que precisava descrever a condição das mulheres […] Tentei pôr em ordem no quadro, à primeira vista incoerente, que se ofereceu a mim: em todo caso, o homem se colocava como o Sujeito e considerava a mulher como um objeto, o Outro. […] Um dos mal-entendidos que meu livro suscitou foi que se pensou que nele eu negava qualquer diferença entre homens e mulheres: ao contrário, ao escrevê-lo medi o que os separa; o que sustentei foi que essas dessemelhanças são de ordem cultural e não natural. Contei sistematicamente como elas se criam, da infância à velhice, examinei as possibilidades que este mundo oferece às mulheres, as que lhes são recusadas, seus limites, suas oportunidades e faltas de oportunidade, suas evasões, suas realizações.

Simone de Beauvoir (apud CYFER, 2014, p. 59)

A dualidade no pensamento e na ação e a oposição entre feminino e masculino é questão que se desenvolve há muito no campo da filosofia e da ciência e no próprio cotidiano das pessoas. Muito do pensamento oposicionista entre os sujeitos do masculino e do feminino se constitui a partir das diferenças biológicas, que, justificaram o estabelecimento de capacidades mais valorizadas de um em detrimento do outro.

De facto a divisão sexual masculino/feminino diferencia os seres vivos, introduzindo no estudo dos mesmos a categoria da alteridade. Os filósofos não ignoraram tal distinção e foi a partir do seu olhar que se estabeleceu o cânon, a norma, melhor dito, a escolha de um pólo dominante e regulador, susceptível de gerir a oposição em causa. Na aparente neutralidade do binómio masculino feminino, fruto da observação dos fenómenos da vida, paulatinamente se foram estabelecendo valorações, afirmando-se um elemento forte e um elemento fraco, um pólo que domina e outro que obedece, algo que representa a norma e algo que personifica a divergência. A hierarquia instala-se, pois, um dos pares categoriais coloca-se como modelo a seguir enquanto o outro é visto como negação ou falha. Na inicial complementaridade insinua-se a diferença. A questão “o que é o homem?” que desde Sócrates atravessa toda a filosofia parece anular tal diferença postulando uma unidade – a do ser humano. O uso do termo “homem” para designar a totalidade dos humanos não perturbou a maior parte das pessoas. Também não perturbou os filósofos que até meados do século XX a usaram sem quaisquer problemas de consciência. Só que esta homogeneidade de designação não é inocente. No que respeita à filosofia ela significa um modelo

31 A produção feminista é ampla, diversificada e com matrizes teóricas que partem de bases que não são unívocas. Sendo assim, há discussões que colocam a mulher, enquanto sujeito do feminismo, já que, as pautas de movimento e da teoria foram balizadas pelas reivindicações destas. Existem correntes contemporâneas que questionam este sujeito do feminismo e que situam amplas possibilidades de se constituir enquanto “ser mulher”. A perspectiva do “não sujeito” está relacionada às construções desiguais na relação entre os sexos, e a posição de subalternidade em que foi colocada a mulher.

que se impõe, um modelo masculino pois foi pensado por homens e teve os homens como destinatários. Face a tal modelo a mulher aparece como desviante, ou numa hipótese mais moderada como diferente ou como “outro”. (FERREIRA, 2007, p. 139).

Beauvoir (1970) desenvolveu em seu livro O segundo sexo reflexões que exemplificam o processo de construção social do sujeito feminino como consequência das relações sociais, culturais, econômicas que se estabelecem. As elaborações sobre a mulher como não sujeito, ou como objeto na relação com o homem, são recentes e partem de uma localização específica situada nos marcos do pensamento feminista, que se espraiam na história, na filosofia, na sociologia.

As definições sobre mulher, feminino, feminilidade passam por características concretas que vão se alinhavando socialmente. Para as “mulheres de verdade” a representação da “Amélia32” como àquela que cumpre socialmente todas as obrigações estabelecidas, destinadas, comandadas – consciente ou inconscientemente – não desvia, é “boa” mãe, “boa” esposa, “boa em todas as prescrições”. Para isso desenvolve o elemento do feminino – na espécie humana há seres do sexo feminino e masculino, contudo nem todos do sexo feminino são mulheres – e da feminilidade quando constrói o universo necessário ao exercício e atribuições do ser mulher.

As narrativas míticas, religiosas fazem uso da oposição entre os sexos utilizando o rebaixamento da mulher como algo fundante, fático, justificado pelas diferenças biológicas, em que a fraqueza de estrutura muscular, os hormônios, a menstruação, a maternidade, sempre comparada aos homens a levam a lugares de menor classificação, como sendo seres de segunda ordem, de menos capacidade de razão, naturalmente condicionadas a objeto.

A mulher tem ovários, um útero; eis as condições singulares que a encerram na sua subjetividade; diz-se de bom grado que ela pensa com suas glândulas. O homem esquece soberbamente que sua anatomia também comporta hormônios e testículos. Encara o corpo como uma relação direta e normal com o mundo que acredita apreender na sua objetividade, ao passo que considera o corpo da mulher sobrecarregado por tudo o que o especifica: um obstáculo, uma prisão. "A fêmea é fêmea em virtude de certa carência de qualidades", diz Aristóteles. "Devemos considerar o caráter das mulheres como sofrendo de certa deficiência natural". E Sto. Tomás, depois dele, decreta que a mulher é um homem incompleto, um ser "ocasional". É o que simboliza a história do Gênese em que Eva aparece como extraída, segundo

Bossuet, de um "osso supranumerário" de Adão. A humanidade é masculina e o homem define a mulher não em si mas relativamente a êle; ela não é considerada um ser autônomo. "A mulher, o ser relativo...", diz Michelet. E é por isso que Benda afirma em Rapport d'Uriel: "O corpo do homem tem um sentido em si, abstração feita do da mulher, ao passo que este parece destituído de significação se não se evoca o macho... O homem é pensável sem a mulher. Ela não, sem o homem". Ela não é senão o que o homem decide que seja; daí dizer-se o "sexo" para dizer que ela se apresenta diante do macho como um ser sexuado: para êle, a fêmea é sexo, logo ela o é absolutamente. A mulher determina-se e diferencia-se em relação ao homem e não este em relação a ela; a fêmea é o inessencial perante o essencial. O homem é o Sujeito, o Absoluto; ela é o Outro. (BEAUVOIR, 1970, p. 10).

A autora demarca um lugar constituído e legitimado pela humanidade, cuja elaboração deste “outro” encontra-se justificada na generalização da relação com os atributos das diferenças naturais, o corpo como lugar de contraste, em que a mulher é subordinada aos interesses de seu contrastado.

É importante destacar o aspecto da objetividade masculina em contraste a subjetividade feminina no poder atribuído a esses corpos sexuados. A “boa” mulher deve manter o controle de seu corpo, a representação da pureza virginal, se colocando num lugar oposto ao viril, forte, resistente.

Esse lugar do “outro” é muito característico de relações que se estabelecem, em algumas podem ocorrer parcerias; em outras concorrências, desigualdades. As desigualdades do “outro”, mulher, ser feminino, só pôde ser problematizada pelas próprias mulheres, conscientes das desigualdades postas nas relações.

A mitologia, a teologia, as religiões cumpriram um papel cristalizador da figura da mulher como não sujeito na história, apesar de existirem outros não sujeitos como negros, judeus, indígenas, proletários como bem apontado pela própria Beauvoir, as relações com estes outros foram estabelecidas com bases em contextos culturais, econômicos. No caso da soberania sexual há um desafio de compreensão sobre o reconhecimento da não reciprocidade e a subordinação de um sexo ao outro sem que necessariamente haja justificação que não seja, como partida, a natural.

2.4 AS FILÓSOFAS, AS CIENTISTAS: ONDE ESTIVERAM? ONDE ESTÃO? COMO