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2 PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO, CIÊNCIA E SITUAÇÃO DAS MULHERES

2.2 A EXCLUSÃO DAS MULHERES DA PRODUÇÃO SOCIAL E DO SABER CENTÍFICO

Não só a ciência se constitui como espaço masculino (CHASSOT, 2011), mas, outras esferas da vida como as artes, a filosofia, as religiões, os espaços de poder (governos/política), os esportes, o mundo do trabalho. Esta constatação ainda é muito visível e presente.

O mundo das artes, de uma forma geral, representa uma gama de possibilidades e expressões, mas, se nos concentrarmos nas artes plásticas, na pintura, escultura, não houve legitimidade da produção feminina como destaque. Nos museus mais famosos (considerando aqui a Europa como referência26), as obras expoentes são produzidas homens, Leonardo Da Vinci, Vicent van Gogh, Pablo Picasso, Salvador Dali.

A história de Camille Claudel27 é um exemplo do contexto da compreensão do elemento de gênero no mundo das artes, já que, seu envolvimento com Rodin legou a sua produção uma marca de julgamento que negava sua capacidade artística, e, apesar da grandiosidade de suas esculturas foi colocada à margem do mundo das artes.

Os governos e a esfera da política são também espaços ocupados predominantemente por homens, na pólis grega, o direito de cidadã não era designado aos escravos e mulheres.

Se saltarmos para a contemporaneidade, dos 193 países28 que compõem o globo terrestre, há como governantes uma média de 18 mulheres29, o que representa

26 Apesar de compreender que existem museus e centros de produções artísticas muito importantes pelo mundo, infelizmente, a visão eurocêntrica ainda prevalece em grande medida como referência para certas questões. É importante deixar claro que, neste trabalho, isso se faz de maneira ilustrativa, considerando também a importância da autocrítica.

27 Camille Claudel, 1915. Bruno Dumont. França. Filme biográfico. Há muitas nuances na obra que refletem os aspectos a época na sociedade Parisiense, inclusive sobre o julgamento social do relacionamento entre Rodin e Camille, a relação com a mãe, a construção da loucura que legou uma vida de isolamento e degradação manicomial, o estabelecimento do descarte da condição humana, inclusive e principalmente pela justificativa da loucura, sem relacioná-la aos elementos de poder que estavam presentes na relação com o irmão. Camille foi por muito tempo acusada de ter roubado as obras de Rodin, já que foi sua aluna e seus traços superavam os do seu mestre, o que com o tempo indica que o contrário ocorreu. (DUMONT, 2013).

28 Levando em consideração o estabelecido pela Organização das Nações Unidas (ONU, 2017). 29 “Atualmente, há 10 países com chefes de Estado mulheres (Chile, Croácia, Estónia, República das

menos que 10% dos países. Na história da república do Brasil, ou seja, em 128 anos, somente uma mulher chegou ao cargo de governante maior, e isto compreende um cenário que demanda análises que associam a chegada ao cargo a figura masculina de seu antecessor, além, das inúmeras justificativas por parte da mídia, dos pares e do senso comum sobre as inabilidades para governar o país, não à toa foi impedida de finalização do seu segundo mandato que seria cumprido 2015-2019.

Encontramos também na filosofia e nas religiões maneiras de interpretação do mundo, com pontos de vistas diferenciados. Nas religiões, calcadas em dogmas e explicações divinas, existem normas e leis que regulam a vida de maneira a situar funções diferentes aos sexos. O cristianismo no ocidente é um grande exemplo. As lideranças são somente masculinas, a mulher pela sua designação de “impura” e “pecadora” carrega um status de subordinação na hierarquia eclesial e no campo moral da vida.

Outra esfera de reprodução de desigualdades se apresenta através dos esportes como atividades que estimulam a competição, às vezes capacidade de força, potência, concentração. Desde a inspiração nos jogos olímpicos com corridas, saltos e lutas, que são muito antigas, não houve possibilidade para a presença das mulheres. Se situarmos o Brasil, quando uma menina adquire habilidades para futebol – já que este é considerado “paixão nacional” – ela vai ser julgada por ser atividade para “menino”. As seleções femininas e masculinas têm tratamentos diferenciados e desiguais quanto a incentivos, apoios, divulgação, salários, e, em inúmeras modalidades as mulheres que praticam esportes sofrem com preconceitos, assédios e até violência.

No mundo do trabalho, com as influências e transformações do capitalismo, as mulheres conseguiram acesso a postos que não se restringem somente ao doméstico, mas essas transformações implicam em duplas, triplas, quadruplas jornadas – dentro e fora de casa – com salários menores do que os dos homens, posições rebaixadas e descrédito em suas competências para liderança.Sendo assim, o papel conhecimento e da ciência, enquanto alteradores de permanências, deve contribuir

primeira-ministra (Alemanha, Bangladesh, Namíbia, Noruega, Polónia, Reino Unido e Escócia). Na Suíça, é também uma mulher que lidera o Conselho Federal. (REIS, 2017).

com formas de relações mais justas. Nesse sentido, parte-se da compreensão de ciência como:

[...] construto humano – logo falível e não detentora de dogmas, mas de verdades transitórias – e, assim, resposta as realizações dos homens e das mulheres [...] pode ser considerada como uma linguagem [...] para explicar nosso mundo natural. Assim, a ciência é um dos mentefatos –há outros como as religiões, os mitos, o senso comum, o pensamento mágico, os saberes primevos – para a leitura do mundo. (CHASSOT, 2008 apud CHASSOT, 2011, p. 28).

É na transitoriedade das formas de interpretar e dar respostas às questões do mundo que, o conhecimento científico e as maneiras de produzi-lo devem interferir sobre pontos que historicamente cristalizados e potencializadores de desigualdades nas relações sociais e de gênero, portanto, a necessidade de colocar em questão um conhecimento que se comprometa com os fatos do mundo da vida de maneira reconstruir posições de hierarquia.

2.2.1 As influências da tríplice ancestralidade que explicam a masculinização da

ciência, a partir das ideias de Atico Chassot

Assim como a pobreza e a desigualdade social foram30 justificadas como destinos, como fim em si mesmo, a condição de subalternização feminina também se justificou (justifica) pela remissão à natureza das coisas, a função que lhe foi atribuída pela herança das explicações fundadas em mitos, filosofia, cultura, religiões.

A herança grega cumpriu um papel de explicar a ordem das coisas através dos mitos. Em Pandora, foi construída a representação feminina, que manifesta a origem do castigo de Zeus aos humanos.

A primeira mulher se chama Pandora e traz consigo uma caixa fechada, de onde deixará escapar, estupidamente, todos os males que pesam sobre os homens. Isto é, uma primeira mulher, Pandora [...], põe a perder o mundo idílico, pois determina a cisão entre os seres hermafroditas, pela necessidade de possuir um homem. Como consequência se desencadeiam novas cisões e novos rearranjos de pares agora homens e mulheres. (CHASSOT, 2011, p. 68).

30 A depender das influências morais, da visão de mundo e dos juízos que se constituem pela junção de ambos, ainda é possível se ouvir dizer que “foi Deus quem quis”, “nasce pobre, morre pobre”, “quem nasceu para cangalha, nunca dará para sela”, entre outros reforços naturalizadores de questões que são “sociais”.

Do ponto de vista das explicações científicas também na Grécia, Aristóteles demarca a posição das mulheres pela ótica das imperfeições, da negação ao homem.

Aristóteles (1995), no livro X da Metafísica, diz que um gênero – genos – compreende os dois sexos. Um genos é uma linhagem de machos ou de fêmeas capaz de se perpetuar, mas, apesar da existência empírica de dois gêneros, ele afirma que uma forma – a do pai – se transmite num geno. E prossegue o autor da Metafísica, há duas maneiras de definir características dos corpos femininos: a analogia e a inferioridade aos corpos masculinos [...] Aristóteles (1993) ensinava – e essas concepções se sustentaram até o final da Idade Média – que a semente masculina estaria dotada de todas as características que teria o novo ser. Qualquer imperfeição que a nova criatura viesse a ter era responsabilidade da mulher, que não alimentava adequadamente a semente perfeita que lhe fora depositada pelo homem no vaso nutridor. Se da semente masculina nascesse uma fêmea, isso se devia a uma impotência de seu pai que então geraria um ser impotente: uma fêmea; assim, a mulher é ela própria um defeito. (CHASSOT, 2011, p. 104). (CHASSOT, 2011, p. 69).

Essas heranças são ainda responsáveis por inúmeras cargas de valor que se depositam sob a responsabilidade feminina, na maternidade, na idade reprodutiva, na sombra que ronda a gestação, criação, formação e cuidados de um novo ser humano saudável.

Outro componente estabilizador da mulher como inferior está conformado nas explicações religiosas – de influências judaicas “[...] a narrativa da criação que está em Gênesis (livro Bíblico) marca fortemente a tradição judaica, posteriormente incorporada pela cultura cristã ocidental. A mulher é produzida do homem, e criada a partir de uma costela”. (CHASSOT, 2011, p. 73).

Estas interpretações bíblicas sobre a origem e papel da mulher estão formadas pelo processo negativador do pecado cometido por Eva, já que caiu em tentação causando a expulsão do paraíso e gerando uma série de consequências desiguais para atribuição das funções entre os sexos, inclusive, do ponto de vista do trabalho como responsabilidade e fardo para os homens e as dores do parto, submissão e obrigações morais para as mulheres.

O acesso à cultura letrada para os homens também foi uma marca de algumas religiões, no caso o judaísmo, “[...] as mulheres não são iniciadas no hebraico, sendo que devem se dedicar aos trabalhos domésticos para facilitar que os homens possam se dedicar aos estudos dos textos sagrados”. (CHASSOT, 2011, p.77). Elementos como esses confluem para o distanciamento feminino do conhecimento.

Neste aspecto, as religiões compõem o conjunto de elementos que formam o legado cultural de uma sociedade. Assim, os padrões estabelecidos e herdados funcionam como calibres de medição da ordem instituída, alicerçada pelo machismo. O lugar do homem justificado pelas capacidades positivas são lugares de altura, garantidor do bom funcionamento das estruturas: na casa, na política, nas instituições, nas igrejas.

Questionar um conhecimento produzido e instituído por matrizes religiosas/científicas unilaterais, constitui riscos que historicamente se apresentaram pela eliminação/aniquilação daqueles que ousaram desafiar a ordem vigente, como na inquisição.

Talvez assim se possa entender por que as mulheres que eram parteiras, as que conheciam o poder curativo dos chás, as que sabiam sobre a fertilidade ou a esterilidade das sementes, as que conheciam o ciclo de reprodução de animais domésticos, as que dominavam a arte de fiar, as que tinham os segredos da cozinha, as que geravam, amamentavam e educavam crianças com competência, as que preparavam poções para que os atos sexuais não fossem meros atos para a reprodução, mas também prazerosos, estavam realmente detendo poderes que os homens não tinham e por isso eram condenadas como bruxas perversas. Ora! Eva já infelicitara o homem uma vez, fazendo-o perder o Paraíso e ter que trabalhar. Não se poderia repetir que a árvore do conhecimento e do discernimento voltasse a ser propriedade da mulher. Eliminá-la era justificado. (CHASSOT, 2011. p. 92).

Mais contemporaneamente, nos países ocidentais, considerando-se a ameaça representada pela possibilidade de acesso ao saber, muitas legislações que até algumas décadas ainda vigoravam, legitimavam a tutela da mulher para seu pai ou marido, a proibição de acesso à educação formal, atestavam a sua incapacidade civil, não à toa a luta pela condição de cidadania pelo voto, foi uma das primeiras a serem levantadas pelo movimento de mulheres.

A negação e consequente exclusão das mulheres na produção do saber científico refletem padrões ideoculturais de desigualdade forjados em heranças machistas, patriarcais. Portanto, é necessário enxergar a ciência, a partir de uma perspectiva histórica, portanto mutável, que supere modelos e formas conservadoras e que contribua para a quebra e superação de preconceitos que se mantém ao longo do tempo.