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2 PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO, CIÊNCIA E SITUAÇÃO DAS MULHERES

2.1 AS UNIVERSIDADES COMO ESPAÇO DE SABER CIENTÍFICO

Investigar, como o acesso ao ensino superior pode contribuir para a contestação de paradigmas historicamente determinados por múltiplos processos de desigualdades no contexto da vida de mulheres com deficiência, pressupõe compreender o acesso ao ensino superior, no contexto brasileiro, enquanto um direito que, na história, foi sistematicamente negado às “classes subalternas”24 (dentre as

24 “O legado da tradição gramsciana que nos vem por meio dessa noção prefigura a diversidade das situações de subalternidade, a sua riqueza histórica, cultural e política. [...]. Por isso mesmo, obriga- nos a fazer indagações sobre a reprodução ampliada da subalternidade, sobre a multiplicação diferençiada dos grupos subalternos. Obriga-nos a ter em conta que as esperanças e lutas dos diferentes grupos e classes subalternos levam a diferentes resultados históricos, porque desatam contradições internas, que não são apenas contradições principais do desenvolvimento do capital, a oposição burguesia-proletariado. Nessa perspectiva, a subalternidade ganha dimensões mais amplas, não expressa apenas a exploração, mas também a dominação e a exclusão econômica e política” (MARTINS, 1989, p. 98, grifos do autor apud YAZBEK, 2003, p. 68).

quais a mulher aparece como sujeito em destaque), alijando-as das possibilidades de acesso e compartilhamento do saber. A educação, durante séculos, foi propriedade de nobres, membros do clero, frações da classe burguesa, ou seja, das camadas mais abastadas da sociedade. Apenas muito recentemente – mais precisamente, a partir da promulgação da primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, ainda na década de 1960 e, especialmente, com a Constituição Federal de 1988 – o direito à educação pôde ser ampliado às “classes subalternas”, a partir de processos de intensas lutas e reivindicações para que o Estado viesse a reconhecer tal demanda, enquanto um direito civil. Assim, o direito à educação, conforme afirmamos, antes de tudo, sofre um recorte de classe, na medida em que foi negado à classe trabalhadora o seu acesso, enquanto um direito básico e fundamental.

Ao recorte de classe social somam-se outras categorias que, juntas, contribuem para pensarmos algumas particularidades de grupos sociais específicos, a exemplo das categorias “gênero” e “deficiência”. Se ser “trabalhador(a)” e “pobre” é uma condição significativa e, em alguns aspectos, determinante para a ampliação das barreiras de acesso à educação, o que dizer quando se é “trabalhadora”, “pobre”, “mulher” e “deficiente”? A literatura nacional – e mesmo internacional – fala muito pouco acerca desta relação de mulheres com deficiência e seu acesso à educação. O fato de ser mulher, em sociedades dominadas pela cultura patriarcal – a exemplo do Brasil – onde os papeis femininos e masculinos estão previamente definidos, determinados pela sociedade e que, na grande maioria das vezes, são desfavoráveis à mulher, nos revela que superar os padrões culturais, sociais, políticos e econômicos estabelecidos durante o processo histórico nestas sociedades, não foi e nem é tarefa fácil, em particular, para as mulheres. A história está repleta de exemplos e situações que revelam as resistências, ou mesmo, as fortes e conservadoras reações que o sistema de poder vigente estabelecia para punir, deter e dissuadir aquelas que ousassem questionar os valores e regras sociais impostas à época.

Se para as mulheres em condições de ausência de deficiência, tais circunstâncias já eram por demais desfavoráveis, para as mulheres com deficiência, tentar romper a “dupla desconfiança”, constituía-se e constitui-se em algo ainda mais desafiante e desigual. A tradicional e cultural incapacidade que se atribui à mulher acaba por se potencializar em função de sua deficiência, segregando-a, impondo e negando a estas mulheres direitos fundamentais, especialmente à educação superior,

a qual compõe um nível de educação – estruturado e regulamentado em lei – e realizado através de instituições de ensino. Contudo, é preciso mencionar que, o que compreendemos hoje, enquanto ensino “superior”, carrega elementos constitutivos da história da construção do saber científico no ocidente.

A produção do saber científico, ao longo da história da humanidade, vinculou- se (e ainda permanece vinculada, em certa medida, a tais estruturas) às relações sociais que os seres estabeleciam com a natureza, desde as formas mais simples e tradicionais, baseadas em observações, intuições e dogmas, até as formas mais complexas, a partir de métodos de experimentação e comprovação. Sendo histórico, o conhecimento se dá a partir das relações sociais e, portanto, é produto de uma elaboração teórica, produzida a partir destas relações. Assim, conforme Brandão (2011, p. 4): “[...] toda teoria do conhecimento [...] se apoia, implícita ou explicitamente, em uma determinada teoria da realidade e pressupõe uma determinada concepção da mesma, que influenciam toda uma forma de conhecer e de pensar a natureza e a sociedade”.

A razão, como princípio que norteia a “idade das luzes” e constituição da ciência moderna, é um imperativo que conduz, em grande parte, à constituição do conhecimento científico como, o conhecemos no mundo contemporâneo, conforme nos aponta Bazzanella (2010, p. 21):

Aquilo que convencionamos denominar ciência moderna marca uma tensão ontológica e epistemológica em relação ao mundo antigo e medieval. Isto significa que a ciência moderna se estabelece a partir dos esforços civilizatórios empreendidos ao longo dos tempos, na busca de causas e princípios explicativos para os fenômenos naturais, para a existência. Ampliando e aprofundando pressupostos e perspectivas herdados do mundo antigo e medieval, uma nova visão de mundo começa a se estabelecer, uma visão de mundo que ultrapassa a física das qualidades, elevando à condição primeira uma física das quantidades, pautada em pressupostos de quantificação e mensuração, de natureza, de corpos[...] A ciência deixa de ser uma interpretação contemplativa da natureza, para tornar-se experiência ativa, numa relação de objetividade om objetos materiais e forças físicas que compõem o mundo. (BAZZANELLA, 2010, p. 21).

Nesse sentido, o autor também pontua que, com o advento da ciência moderna no século XVIII, os princípios da ciência experimental (principalmente os conhecimentos da física) passam a influenciar e fundamentar as ciências humanas, já que é neste século que a ciência "triunfa". Inúmeras descobertas e suas aplicações

modificam o cenário deste tempo. São exemplos: a eletricidade, o telefone, as vacinas, ferrovias, etc.

Ainda em Bazzanella (2010), temos a informação de que, os modelos referênciais de balizamento para a ciência moderna estão fundamentados na matemática e na física, com a constituição dos conceitos de leis naturais como condição e "garantia" de compreensão das formas universais de conhecimento, estando estas vinculadas à idéia de verdade, presente no universo que pode revelar- se, de forma inquestionável, ao conhecimento humano. Essa relação com a verdade, explicada através de métodos exatos, encontra eco na formulação de René Descartes, quando este propõe um pressuposto de modelo de um “mundo máquina”, ou seja, dimensionar para as esferas mais gerais do conhecimento, a positividade cartesiana das ciências exatas.

Estes apontamentos são importantes e necessários para se estabelecer uma relação direta da própria constituição da ciência, ao longo do tempo, enquanto "patrimônio social". Tal patrimônio elaborado por quem detinha legitimidade e poder hegemônicos, constituiu-se através de uma marca de exclusão da participação das mulheres nesta construção. De igual legitimidade e reconhecimento, no mundo contemporâneo, são as universidades que representam institucionalmente o lugar legítimo de produção dos saberes socialmente construídos. Desse modo, vemos que:

Com a crescente polarização das esferas pública e doméstica, a família deslocou-se para a esfera doméstica privada, enquanto a ciência migrava para a esfera pública da indústria e universidade. Coloco esta ênfase sobre a Revolução Científica dos séculos XVII e XVIII porque foi nessa época que as modernas instituições e ideologias limitando a participação das mulheres na ciência tiveram lugar. As instituições científicas - universidades, academias e indústrias - foram estruturadas sobre a suposição de que os cientistas seriam homens com esposas em casa para cuidar deles e de suas famílias. (SCHIEBINGER, 2001, p. 69).

A autora exemplifica a negação da inserção da mulher ao mundo do conhecimento pela via da constituição do que, esquematicamente, costuma-se caracterizar como divisão sexual de papéis, pautada na divisão social do trabalho25, o

25 A condição da mulher, nas sociedades de classes, tem sido vista por numerosos estudiosos como resultado da injunção de fatores de duas ordens diversas: de ordem naturalizada e social. Dentre os primeiros, o mais sério diria respeito ao fato de a capacidade de trabalho da mulher sofrer grande redução nos últimos meses do período de gestação, bem como, no primeiro tempo que se segue a

que era específico para homens (espaço público) e o que era específico e destinado para mulheres (espaço privado). Essa divisão não é natural, vindo a se constituir a partir da nossa “[...] tríplice ancestralidade greco-judaico-cristã”. (CHASSOT, 2011, p. 64).

Para ilustrar isto, tomamos como ponto de partida as formulações aristotélicas sobre a superioridade masculina que sustentou suas explicações até o final da Idade Média, mas que também não foi superada na modernidade:

Entre os animais, é o homem que tem o cérebro maior, proporcionalmente ao seu tamanho, e, nos homens, os machos têm o cérebro mais volumoso que o das fêmeas. [...] São os homens que têm o maior número de suturas na cabeça, e o homem tem mais do que a mulher, sempre pela mesma razão, para que esta zona respire facilmente, sobretudo o cérebro que é maior. (ARISTÓTELES, 2010, p. 79).

A subalternização da mulher e grande parte das discriminações presentes em nossa cultura contemporânea podem ser fundamentadas, a partir do ponto de partida presente nas explicações da realidade fundada nos moldes mitológicos, religiosos e da própria ciência à época, presentes, inclusive, nos dias atuais.

No medievo a ciência se encontrava sob a tutela da teologia, cujo paradigma central se assentava na fé e no dogmatismo, traduzidos pela autoridade da Igreja. Aqueles que produzissem conhecimento que se contrapusesse aos dogmas que tal instituição elegeu como científicos e, portanto, verdadeiros, poderiam pagar com a própria vida. Somente homens celibatários podiam ter acesso ao conhecimento científico (MACIEL, 1999), isso fez com que 82% do meio milhão de pessoas que foram queimadas nas fogueiras da Inquisição, fossem mulheres (PULEO, 2002). O discurso sobre as bruxas foi uma oportuna justificativa para eliminar as curandeiras que competiam com a emergente classe médica masculina. “Aos homens, quando realizavam investigações, se dava o rótulo de sábios ou de cientistas, enquanto às mulheres se interpretava como tendo associação com o demônio e eram tidas como bruxas e muitas terminaram na fogueira”. (CHASSOT, 2003, p. 66 apud SANTOS, 2012, p. 73).

Esse cenário desigual – que se constitui em amplos aspectos da vida cotidiana, reproduzido como fenômeno de longa duração – representa uma negação de direitos, no que diz respeito às possibilidades e potencialidades femininas para ocupar

ocorrência do parto. O aleitamento tornaria ainda mais insubstituível a mãe junto à criança pequena. Estes fatos biológicos são, muitas vezes, utilizados para justificar a inatividade e baixa produtividade profissional das mulheres – as quais seriam ainda maiores e frequentes em contexto de alta taxa de natalidade – durante toda a sua existência, onde, por vezes, tem-se consequências extremamente desastrosas, quer seja para o equilíbrio da personalidade feminina, seja para a socialização dos filhos, ou ainda para as relações matrimoniais. (SAFFIOTI, 2013, p. 85).

espaços que estivessem para além do doméstico ou que não se limitassem às pré- condições estabelecidas socialmente por sua constituição biológica. Algumas mulheres conseguiam manter certa rebeldia contra a ordem vigente e, por isso, eram punidas pela mesma ordem, inclusive, com a própria vida. Inicialmente, a consciência coletiva reivindicatória das mulheres só se expressa, a partir de finais do século XVIII (COSTA; SARDENBERG, 2008), influenciadas por mudanças no desenvolvimento das forças produtivas e do modo de produção capitalista, bem como, de alterações no padrão ideológico, cultural e político em alguns países da Europa.

Para a entrada nas universidades, as mulheres, primeiro desencadearam uma luta pelo acesso a escolarização, a ter direito de ler e escrever. Mesmo considerando a classe social, havia uma restrição deste acesso aos espaços da casa para reproduzir os letramentos com os filhos. Em países da Europa e nos Estados Unidos, as mulheres tiveram acesso às instituições universitárias ainda nas primeiras décadas do século XIX:

Em 1837 inicia-se a coeducação no estado de Ohio, e funda-se o primeiro

women’s college, a primeira Universidade feminina: Mount Holoyoke, em

South Hadley, Massachussetts, em New Englad.[...] na Europa há instituições universitárias femininas na Inglaterra , desde 1848, Queen’s; em 1849, Bedford ( Londres). Na França, o Collège de Sévigné é de 1880; o primeiro

lycée feminino é de Montpellier, 1881. Na Alemanha, desde 1894, há höhere Mädchenschulen (escolas superiores para moças); em 1983-94 as mulheres

entram nas Universidades. Tudo isso, porém, muito lentamente, de modo extremamente minoritário: segundo uma estatística de 1910, havia 3.830 mulheres nas Universidades francesas; em 1914, ao começo da primeira Guerra Mundial, 4.057 nas alemãs. Na Espanha, as primeiras mulheres que cursaram a Universidade são, creio eu, da geração de 98; uma delas Maria Goyri, que se casou com Dom Ramón Menédez Pidal. As Universidades inglesas abrem-se às mulheres em fins do século passado, e não as principais: Oxford e Cambridge, já bem dentro de nosso século, e com conta- gotas. Na Europa, a presença normal da mulher nas Universidades é um fenômeno posterior à primeira Guerra. (MARÍAS, 1981, p. 55).

O cenário da universidade como espaço de saber científico nem sempre esteve aberto para a entrada das mulheres. A demonstração acima mencionada representa um movimento que compõe a segregação das instituições por sexo, citando como exemplo, a menção feita pela jornalista Cecília Malan ao Jornal Bom dia Brasil, onde noticiava em janeiro de 2018, que a universidade de Oxford apresentou pela primeira vez em mil anos, número de matrículas de mulheres maior do que de homens, já que até 1974 existiam cursos separados para homens e mulheres.

2.2 A EXCLUSÃO DAS MULHERES DA PRODUÇÃO SOCIAL E DO SABER