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A multidisciplinaridade no atendimento

3 A NECESSIDADE DE PREVENÇÃO E ATENDIMENTO ESPECIALI-

3.1 A multidisciplinaridade no atendimento

Tendo em conta a situação das vítimas e de todos os familiares envolvidos em casos de abuso sexual intrafamiliar, além da sensibilidade necessária para o trato do problema, faz-se urgente o atendimento multidisciplinar para o enfrentamento desta realidade. Barreiras têm de ser rompidas e todos os profissionais envolvidos na dinâmica de defesa dos direitos da criança e do adolescente têm de atuar.

Feita a notificação de violência sexual doméstica, que deve ser feita primordialmente no Conselho Tutelar, é necessário que, além de um processo judicial, seja feito um acompanhamento psicológico e social da família. A priori, deve ser feita uma análise estrutural da família e de seus membros, na tentativa de estabelecer as relações existentes entre o adulto agressor, o adulto não agressor e a vítima.

Geralmente, a família tem a tradicional estrutura paternalista, na qual a mãe é omissa e dependente do pai, que é o provedor e chefe da família. As manifestações de carinho são raras, pois quando existem, têm caráter erótico. A obediência à autoridade paterna é incontestável, a comunicação é fechada e a mãe é submissa à vontade do pai, tornando o ambiente propício para que a vítima se cale. O agressor, que geralmente é o próprio pai ou padrasto, utiliza-se da relação de poder, dominação, opressão e até de confiança que tem com a vítima para ultrapassar os limites. Inicialmente, usa de gestos de afeto e atenção, que

logo criam conotação sexual. Quando a vítima percebe, passa a não aceitar os “carinhos”. É a partir daí que o abusador começa as ameaças físicas e psicológicas.

É comum encontrar, ao analisar o histórico de vida de um adulto que pratica o abuso sexual incestuoso, situações nas quais tenha sido vítima de violência física ou sexual. O adulto não agressor pode também ter sido vítima de abusos na infância, sendo, por isso, mesmo que inconscientemente, omisso ou conivente com o fato. Pode, entretanto, acontecer de a mãe ser carinhosa, protetora e presente na educação dos filhos. Quando isso ocorre, rapidamente a violência é descoberta e, assim, a mãe é capaz de tomar as medidas necessárias de proteção à vítima.

As crianças e adolescentes violados têm medo, culpa, dúvida e grande dificuldade para falar de um assunto que tanto as atormenta, por isso, no atendimento da vítima e dos parentes envolvidos é preciso que haja sensibilidade, cautela e respeito. Esse acompanhamento psicológico e social deve ser feito por técnicos com formação em Psicologia e Serviço Social, pois é necessário muito cuidado com a abordagem a ser feita a cada membro da família. É preciso esclarecer o que realmente aconteceu, quando aconteceu e com que freqüência, além dos danos emocionais que já se instalaram nos entes envolvidos. O profissional deve entender o fato, respeitando o sentimento dos envolvidos e com controle emocional para ouvir um possível relato de abuso sexual, para que seu envolvimento sentimental não prejudique o acompanhamento.

A notificação do abuso sexual incestuoso deve ser feita no Conselho Tutelar ou na delegacia especializada na defesa dos direitos da criança e do

adolescente ou, se não houver, na delegacia da mulher. Caso tenha havido estupro, o exame médico-legal é necessário para comprovação material do delito. O Instituto Médico Legal (IML) é, portanto, um dos primeiros locais por onde a vítima passa, sendo necessário que este órgão tenha profissionais capacitados e sensibilizados para acolhê-la, respeitando a sua situação emocional e tomando todas as precauções para que o exame de corpo de delito não seja uma experiência revitimizadora1.

Quando algum médico, ao fazer o exame de corpo de delito expõe a vítima de alguma forma, realizando o exame sem a privacidade e discrição necessária ou não se utilizando de linguagem adequada, a experiência poderá provocar uma seqüela psicológica ainda maior. Seria de grande importância que o médico responsável pelo exame fosse preparado para explicar com a maior clareza e delicadeza possível o que é o exame, como é feito, qual a sua importância para a responsabilização do agressor, para que esta não seja mais uma experiência traumatizante.

Quando há ato libidinoso diverso da conjunção carnal, a violência não deixa marcas físicas nem testemunhas, não havendo por que realizar o exame. É exatamente nesses casos em que a palavra da vítima é a principal prova do delito, devendo ser cuidadosamente analisada por quem tem técnica e habilidade para tal procedimento. Por isso é grande contribuição, tanto para a vítima e os outros envolvidos quanto para o processo judicial, que haja um estudo social e psicológico da família, assim como o tratamento necessário para cada membro.

1 Entende-se por revitimização toda abordagem feita em torno da problemática que possa gerar mais

sofrimento á vítima, como uma entrevista sem os cuidados necessários, exames médicos ou a simples menção à violência.

Durante a fase do inquérito policial, a vítima deve depor na delegacia de polícia. Erroneamente, muitas vezes a criança é ouvida na presença dos pais, o que as inibe a falar sobre um assunto tão delicado e até então considerado íntimo e proibido. Sente-se, então, amedrontada e ameaçada pelo agressor e pela própria mãe, que pode ser conivente com o abuso sexual. Soma-se a isto o fato de que a criança é ouvida em ambiente inadequado por pessoa não habilitada no trato de violência sexual doméstica. Ocorre também de a criança ser inquirida diversas vezes, o que pode agravar ainda mais o estado emocional da vítima e prejudicar o seu depoimento.

Nas delegacias não-especializadas na defesa dos direitos da criança e do adolescente é comum que haja uma recepção negativa aos casos de abuso sexual incestuoso por parte dos profissionais desses estabelecimentos. Normalmente, acham que a criança está fantasiando e que o abusador é “pessoa acima de qualquer suspeita”, além de outros comentários infundados.

É necessário que a criança seja inquirida de forma privada por pessoa que tenha técnica e sensibilidade necessária para entender o problema1, evitar

que os traumas sejam ainda maiores e facilitar o acolhimento da única prova existente nos casos em que não há violência física.

Perguntas diretas, comentário reprovadores e preconceituosos, expressões de susto e asco devem ser evitados, pois podem provocar na criança um sentimento de negação e contradição quanto ao fato.

Os profissionais que trabalham em delegacias devem ter consciência do quanto é difícil e doloroso para a vítima revelar o abuso sofrido, assim, é de grande relevância que criem um ambiente acolhedor, agindo com simpatia, paciência e sensibilidade para que colham um depoimento com o máximo de coerência, face à sua extrema necessidade na fase processual. Por isso, é de grande importância a existência de delegacias especializadas no atendimento das vítimas e dos agressores.

Em algumas capitais dos estados brasileiros há delegacias especializa- das, a exemplo de Fortaleza, que conta com a Delegacia da Criança e do Adolescente (DCA), que apura a prática de ato infracional por adolescente, e a Delegacia de Combate à Exploração da Criança e do Adolescente (DECECA), que investiga crimes cometidos contra crianças e adolescentes. As notificações de violência sexual contra esses meninos e meninas devem ser encaminhadas para a DECECA, para que o inquérito policial possa ser instaurado.

Uma das maiores características das famílias incestogênicas é a Síndrome do Silêncio, ou seja, a vítima se cala e os demais membros da família tendem a negar a realidade. As crianças e adolescentes vítimas são incapazes de se auto protegerem, seja pelo fato de normalmente serem muito pequenas, por não conseguirem entender a situação vivenciada, por não conseguirem se expressar ou por não serem ouvidas ou mesmo pelo fato de o silêncio ser regra entre os componentes da relações familiares. Elas têm medo e insegurança, sofrem ameaças caso quebrem o silêncio e isso dificulta a revelação do fato.

O tratamento psicológico deve ser feito não só na esfera individual, devendo ser estimulados também diferentes modos de terapia: terapia em grupo,

familiar e do casal. Essas terapias têm o objetivo de reconstruir a estrutura emocional de cada um, orientando um exercício saudável da sexualidade, possibilitando que cada um seja escutado com privacidade e que o abusador possa admitir a violência sexual e não reincidir contra os filhos ou outras crianças. É possível, ainda, dependendo da gravidade do abuso e do perfil psicológico da família, que os vínculos familiares possam ser reconstruídos sob uma perspectiva mais saudável e com afeto materno e paterno.

Um fator preocupante é a demora nos julgamentos dos processos, que faz com que a ferida permaneça aberta e conhecida publicamente. Esse longo período faz com que o abusador tenha a chance de modificar o seu comportamento perante a família e a sociedade, na tentativa de passar de agressor a vítima por meio de condutas irrepreensíveis e questionamentos quanto à veracidade dos fatos. Aos poucos, o agressor tenta reaproximar-se da família. Com o passar do tempo, pode questionar a sinceridade do depoimento da criança ou adolescente vítima, gerando nestas um sentimento de negação do abuso. A família sente-se seduzida nesta falsa realidade e acaba permitindo a reconstrução da figura do agressor. Somando-se a isto as dificuldades financeiras advindas da separação dos cônjuges, o abusador encontra terreno fértil para que possa ser reinserido no seio da família.

É de grande importância para a reconstrução psicológica da vítima que a sentença judicial lhe seja favorável, pois é uma forma de sentir-se recompensada depois de tanto sofrimento e sentimento de culpa pela desestruturação familiar, mostrando para a sociedade que era realmente vítima de toda essa situação degradante que lhe foi imposta pelos próprios pais.

Há necessidade, ainda, do apoio de profissionais da área de saúde como médicos clínicos, pediatras, ginecologistas, psiquiatras e enfermeiros para atendimento das famílias incestogênicas, não se resumindo o tratamento familiar a sessões de psicoterapia. Todos esses profissionais devem trabalhar em conjunto com o objetivo de amenizar os danos físicos e emocionais causados pela violência. Devem também ter sensibilidade e preparo para lidar com crianças e adolescentes em caso de doenças sexualmente transmissíveis, gravidez ou sua possível interrupção em ocasião de estupro, além de prevenir danos futuros relativos aos traumas advindos da violência sexual.

É preciso também que os profissionais saibam lidar com todos os danos que o abuso possa causar, como transtornos de relacionamento afetivo e sexual, baixa auto-estima, doenças psicossomáticas ou psiquiátricas ou mesmo tentativas de suicídio.

A escola ou creche e seus profissionais da pedagogia são importantes aliados para que alguns distúrbios possam ser avaliados como identificadores de um possível abuso sexual, como comportamento agressivo, desenhos e história que remetam à violência sexual baixo rendimento escolar, mau relacionamento, medo excessivo, depressão, tendências suicidas, regressão ao estado anterior de desenvolvimento, alcoolismo, comportamento sexual incompatível para a idade, inchaços, sangramentos e secreções nos genitais, dores de cabeça sem qualquer explicação médica, vômitos, gravidez precoce, dentre outros. Todos os equipamentos sociais nos quais a vítima está inserida, como é o caso da escola, devem ser envolvidos para que esses sinais sejam percebidos e diagnosticados como abuso sexual doméstico, facilitando a sua denúncia.

O comprometimento em relação ao sigilo por parte de todos os profissionais envolvidos é essencial para a família tenha garantia de privacidade. É necessário que todos eles tenham postura para lidar com a situação, tentando compreender e entender o comportamento da criança e do adolescente para que possam ajudá-los.

Veremos na seção seguinte que também no julgamento é essencial uma equipe multidisciplinar para que a inquirição da criança seja feita da melhor forma possível, sem causar danos psicológicos ainda maiores e protegendo a maior de todas as provas, a palavra da vítima.

Quando do julgamento e conseqüente condenação do réu, é necessário que o acompanhamento psicológico se estenda ao condenado, pois sabemos que o sistema prisional brasileiro não é apto a promover a recuperação do preso, especialmente em casos de abuso sexual, pois os outros condenados por outros crimes não aceitam que comete delitos de ordem sexual. Por isso o tratamento psicológico, além da respectiva responsabilização criminal, torna-se instrumento eficaz para a possível “cura” do abusador, para que não venha a cometer abusos sexuais contra outras crianças.

Para os profissionais envolvidos todo esse trabalho, desde a revelação do abuso até o tratamento adequado para cada ente da família, também é difícil lidar com toda a problemática, seja pelo tabu cultural que existe em torno do incesto, ou pelo fato de que alguns desses profissionais possam ter vivido experiências semelhantes no passado, sendo extremamente difícil reviver o fato. Outros, entretanto, realmente apresentam despreparo técnico, sem o olhar adequado para entendimento da realidade das vítimas ou têm preparo, mas não

sabem lidar com a situação. Podem sentir medo de represálias por parte da família, principalmente vindas do adulto abusador.

É comum, ainda, que certos profissionais – como é o caso de alguns policiais1 ou mesmo magistrados que julgam os processos – assumam uma postura adultocêntrica, não dando credibilidade à palavra da vítima, pois, quando é criança, costuma-se achar que tem a imaginação fantasiosa; quando adolescente, podem ter seduzido o agressor e “provocado” a violência. Acham que todos os sinais e comportamentos da vítima não passam de fantasia e de tentativa de chamar a atenção dos adultos para si. É exatamente por pensamentos distorcidos como esses que a maioria dos casos de abuso sexual doméstico resulta em absolvição.

À margem de todas essas dificuldades, há profissionais dedicados e sensibilizados, comprometidos e competentes para ouvir, respeitar, acreditar e ajudar vítima e família a contornar todo o sofrimento. Estes, sim, podem facilitar a identificação do delito e dinamizar todo o trabalho.

Conforme descrito no capítulo anterior, o art. 245 do Estatuto da Criança e do Adolescente atribui a responsabilidade pela proteção integral e notificação dos casos de maus-tratos contra criança e adolescente para todos os profissionais que tenham conhecimento da violência, seja ele responsável por estabelecimento de atenção à saúde ou de educação, estabelecendo multa pecuniária em caso de desobediência.

1 Segundo relato de algumas vítimas, nas delegacias não-especializadas no atendimento e defesa da criança e

É necessário que cada município crie uma rede de atendimento público para as famílias incestogênicas, interligando vários serviços em áreas como saúde, lazer e cultura, educação, assistência social, psicologia e de defesa dos direitos da criança e do adolescente. Deve ser estabelecido um fluxo de atendimento com as atribuições, as funções de cada área e os limites de cada papel na medida que o trato para com as vítimas e familiares envolvidos impõe.

A prevenção aos abusos sexuais também deve ser uma linha de trabalho importante, através da conscientização da comunidade por meio de palestras e oficinas na tentativa de quebrar o segredo, facilitando a atenção aos sinais emitidos pela vítima, a posterior denúncia do caso e conseqüente responsabilização e tratamento do agressor.

O Centro Regional de Atenção aos Maus-tratos na Infância de Campinas (CRAMI) já atua nesse sentido de promover uma multidisciplinaridade no atendimento às vítimas de violência sexual incestuosa, além de desenvolver ações preventivas através do projeto “Trilhas” e discutir estratégias de implantação da rede de atendimento público com Universidades, Conselho Tutelar, Conselho Regional de Serviço Social, Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente, Conselho Regional de Psicologia, entre outros.

Seguindo a linha de estados como o Ceará1, Pará, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Sul, é importante a criação, também, de Varas Criminais Privativas contra crimes contra a Infância e Adolescência, que deve ser o juízo competente para instrução e julgamento dos crimes cometidos contra crianças e adolescentes. Essa medida é necessária no sentido de oferecer maior

oportunidade de conhecimento desta realidade, prioridade absoluta no atendimento e garantia de proteção integral às vítimas.

Todo esse envolvimento de diversas áreas de estudo para tratamento da criança e adolescente vítimas de incesto, desde a recuperação psicológica até a sentença judicial condenatória, é de extrema importância tanto para esses meninos e meninas quanto para a sociedade. É uma forma de desmistificar as relações de poder impostas pela família, quebrando o pacto de silêncio que existe nas relações incestogênicas, além de fazer com que a vítima comprove que estava sob uma situação reprovável moral, social e legalmente. Isso a ajuda a não reproduzir futuramente os abusos sofridos, seja nos próprios filhos ou em outras crianças.

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