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1 CRITÉRIOS IDENTIFICADORES DO ABUSO SEXUAL INTRAFA-

2.4 A aplicação da lei penal

Refletindo o modo como a sociedade trata o incesto, insistindo em não falar do assunto, fingindo que pais, tios, avôs e até mães são incapazes de cometer esse tipo de atitude tão repugnante, sendo um crime sobre o qual não se ousa nem pronunciar o nome; o incesto, diferentemente do Direito Penal Alemão1 e francês, não está tipificado no Código Penal brasileiro2, podendo, apenas, ser

enquadrado entre os crimes contra a liberdade sexual3.

Quando há conjunção carnal e o abusador utiliza-se de violência ou grave ameaça, o delito é tipificado como estupro. Essa violência pode ser física ou moral. Somente o homem pode ser sujeito ativo no crime de estupro e somente a mulher sujeito passivo, pois somente assim haverá coito normal, que é a conjunção carnal. Pode, entretanto, a mulher figurar como co-autora de estupro, mediante previsão do art. 30 do CP.

1 Segundo o art. 173 do Código Penal alemão, o incesto é somente a cópula (os atos libidinosos não são

considerados incesto). As penas variam de 1 a 5 anos, sendo facultada a perda de direitos civis. Os descendentes são isentos de pena quando menores de 18 anos.

2 Há, inclusive, jurisprudência no TJRS em que o abusador foi absolvido por falta de provas, além de não ser

o delito tipificado no Código Penal. AC 70006847123

ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. CONDUTA DEMONSTRADA QUE NÃO SE INSERE NO TIPO. O INCESTO NÃO CONSTITUI CRIME, AINDA QUE SEJA MORALMENTE REPROVÁVEL. Recurso defensivo provido. Recurso ministerial prejudicado (Sexta Câmara Criminal. Tribunal de Justiça do RS, Relator: João Batista Marques Tovo, Julgado em 16/09/2004)

Em outros atos libidinosos1, tanto homem como mulher podem ser

agentes abusadores e vítimas. Haverá atentado violento ao pudor sempre que alguém constranger outrem, também sob violência ou grave ameaça, a praticar ato libidinoso diverso da conjunção carnal. São os crimes sexuais considerados hediondos, definidos no art. 1º da Lei nº 8.072 (Lei dos Crimes Hediondos), de 25 de julho de 1990.

A grande maioria dos crimes incestuosos são cometidos através de atos libidinosos diversos da conjunção carnal. De acordo com DAMÁSIO DE JESUS:

Ato libidinoso é o que visa ao prazer sexual. É todo aquele que serve de desafogo à concupiscência. É ato lascivo, voluptuoso, dirigido para a satisfação do instinto sexual. Para a caracterização do crime, porém, deve ser diverso da conjunção carnal, ou seja, diferente da cópula normal obtida mediante violência, que está presente no crime de estupro.

Desta forma, no exame médico-legal não há possibilidade para detectar provas materiais do abuso sexual, posto que não há conjunção carnal. É a palavra do agressor contra a da vítima. Somando-se a isto a dificuldade que têm os adultos de dar credibilidade à palavra da criança, a maior parte dos casos resulta em absolvição.

Sendo a vítima menor de 14 anos, alienada ou débil mental e quando não pode, por qualquer outra causa oferecer resistência, independente de o ato ter sido praticado sob violência ou grave ameaça, fica presumida a violência. A

comprovação da violência não é necessária, bastando a comprovação do ato. Veja-se1:

Trata-se de violência presumida, ficta ou indutiva. O legislador presume a violência, tendo em vista as circunstâncias concretas dentro das quais a vítima não pode, validamente, dar seu consentimento. O consentimen- to é nulo.

O legislador entendeu, nos casos previsto no art. 224, alínea “a” do Código Penal, que a vítima não possui condições de compreender e avaliar o ato sexual e suas conseqüências, portanto, o consentimento não importa.

Veja-se o caso no qual o STF negou a extinção da punibilidade a J. A. F. M.2, condenado a sete anos de reclusão pelo Tribunal de Justiça do Mato

Grosso, sob a acusação de estupro contra a sobrinha menor de 14 anos. O réu estuprou a sobrinha dos nove aos doze anos de idade, quando a mesma resultou grávida. Com isso, passou a conviver em “união estável” com a vítima, de acordo com o que o agressor alegou.

No Recurso Extraordinário3 a defesa argumentou que a decisão do TJ

de MT contrariou o parágrafo 3º do art.226 da Constituição Federal, além da aplicação da cláusula de extinção da punibilidade prevista no art.107, VII, do Código Penal. O ministro GILMAR MENDES disse não haver motivo para se extinguir a punibilidade do condenado, tendo em vista a gravidade da conduta de prática de estupro, com violência presumida contra a sobrinha. Além disso, enfatizou que apesar de o parágrafo 3º do art 226 da Constituição Federal

1 DAMÁSIO DE JESUS, Direito Penal, Volume I.

2 Página de notícias do site do Supremo Tribunal Federal (www.stf.gov.br/notícias/imprensa/últimas) 3 RE 418376.

destacar que é reconhecida a união estável entre homem e mulher como entidade familiar, o parágrafo 8º do mesmo artigo assegura assistência à família, criando o Estado mecanismos para coibir qualquer prática de violência no âmbito familiar. Afirmou que “não se pode comparar a situação dos autos a uma união estável, nem muito menos se reconhecer um casamento para os fins de incidência do Código Penal”.

Fica claro, no caso acima mencionado, que não se pode ver consentimento válido em uma pessoa menor de 14 anos que mantenha relações sexuais com um adulto pois, nas palavras de MAGALHÃES NORONHA1, “falta- lhe madureza fisiológica e capacidade psicoética para ter alcance, para estimar com precisão o ato violador dos costumes”.

Ora, no caso em que um pai que abusa sexualmente da filha de 10 anos, independentemente dos conhecimentos que a vítima possa ter sobre sexo, não se pode dizer que tenha havido aceitação, vontade ou até mesmo entendimento por parte da vítima, pois o agressor utiliza-se do poder que tem sobre ela para ameaçá-la e convencê-la a praticar com ele atos de cunho sexual. A presunção de violência é absoluta. As conseqüências para a vítima advindas de uma violência sexual, seja ela real ou presumida, traumatizam, constrangem e podem até destruir uma vida ainda em formação, especialmente quando cometida exatamente no lugar que, teoricamente, deveria ter toda a proteção e amparo de que necessita.

Caracterizado o incesto, pode haver concurso de crimes entre o delito contra liberdade sexual (estupro ou atentado violento ao pudor) e o crime de

maus-tratos2, segundo o qual o agente expõe a perigo de vida ou saúde pessoa

sob sua autoridade, guarda ou vigilância, abusando dos meios de correção ou disciplina.

A ação penal, nos crimes contra os costumes, é privada, sendo procedida mediante queixa. Entretanto, segundo o art. 225, inciso II, Código Penal, assim como o art. 227 do Estatuto da Criança e do Adolescente, procedem-se mediante ação penal pública incondicionada3 os crimes sexuais cometidos mediante abuso do pátrio poder, na qualidade de tutor ou curador. Também a ação é pública incondicionada quando o pai, padrasto, tutor ou curador tiver contribuído para o abuso sexual realizado por outro homem. Essa medida visa à maior proteção da vítima, posto que o representante legal é o próprio autor do crime.

Após o inquérito policial (persecutio criminis), deve o Ministério Público fazer a denúncia do agressor, trazendo o caso ao conhecimento do Poder Judiciário.

No Código Penal, a teor do art. 61, II, “e”, a prática de crime contra ascendente, descendente, irmão ou cônjuge é sempre considerada circunstância agravante, sendo a pena aumentada. A alínea “f” do mesmo artigo prevê maior severidade no trato do crime quando é praticado “com abuso de autoridade ou prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade”.

1 1994, Volume III, pág 223 2 Art.136, CP.

3 “O crime de estupro, quando praticado pelo pai contra a filha, é de ação pública incondicionada,

dispensando, pois, o formalismo da representação e a prova da miserabilidade da vítima” (STF – RE – Rel. Moreira Alves – RT 592/445).

Temos ainda, a teor do art. 226, inciso II, do Código Penal, em caso de crime contra os costumes, a pena é aumentada da metade1 caso o agente tenha cometido o crime na qualidade de ascendente, padrasto ou madrasta, tio, irmão, cônjuge, companheiro, tutor, curador, preceptor ou empregador da vítima ou por qualquer outro título que tenha autoridade sobre ela2.

Essa hipótese viola os princípios morais-familiares, além da ocorrência do abuso de autoridade exercida sobre a vítima. Refere-se a norma a agentes que tenham uma relação de proximidade familiar (ou de ascendência moral).

Feita a denúncia pelo Ministério Público, o primeiro passo é a perda do poder familiar3, sendo este procedimento feito em umas das Varas de Família, caso o agressor seja o pai, a mãe ou avô, ou quem detenha o poder familiar. Esta medida visa à proteção da vítima, pois, obviamente, é necessário que o agressor seja afastado do convívio da criança ou adolescente, perdendo qualquer poder que possa exercer sobre a vítima.

A mãe, caso seja cúmplice do abusador, também pode ser penalmente responsabilizada por meio da sentença judicial, sendo sujeita às mesmas penas que o pai agressor.

1“As agravantes genéricas do art. 61, II, g e h, do CP (criem cometido com abuso de poder e contra criança)

estão compreendidas no art. 226, II, que já prevê, nos crimes contra os costumes, a causa especial de aumento da pena quando cometidos por ascendente, pai adotivo, padrasto, irmão, tutor, curador, preceptor ou empregador da vítima ou por qualquer pessoa que sobre ela tenha autoridade” (TJSP – AC – Rel. Jarás Mazzoni – RT 652/276).

2 Lei nº 11.106/2005 3 AC 700082831722

ECA. DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR. Em atenção ao princípio do melhor interesse da criança, impõe-se a destituição do poder familiar em relação ao pai que abusa sexualmente da filha, infringindo gravemente os deveres previstos no art.22 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Pedido de diligências do Ministério Público acolhido, em parte, e apelo desprovido.

Uma questão preocupante é que a pretensão punitiva nos crimes sexuais prescreve em 16 anos, isto é, decorrido esse tempo, caso não haja denúncia promovida pelo Ministério Público, há a perda do direito de punir do Estado pelo decurso do tempo. O que ocorre é que, em muitos casos, a vítima, por medo, vergonha ou mesmo culpa, não consegue contar para ninguém o abuso sofrido, guardando esse segredo dentro de sua própria alma.

Temos um caso concreto no qual a vítima foi assediada sexualmente pelo tio e pelo irmão quando tinha apenas 5 anos de idade. Conta a vítima que não conseguia reagir aos abusos, “pois não tinha capacidade de discernir”. Já adulta, foi estuprada pelos mesmos abusadores da infância. Nunca contou para ninguém, sentia culpa e vergonha. Devido ao trauma sofrido, a vítima “esqueceu” a violência, vindo esta lembrança a tona quando, tempo depois, participou de um seminário sobre crescimento pessoal. A partir daí, houve um longo período de terapias para enfrentar a depressão e a síndrome do pânico advindas de suas aterrorizantes lembranças. Superado o trauma, tentou fazer queixa contra seus agressores. Descobriu que o crime tinha prescrito, era tarde demais. A acusação não fora aceita, mas a dor durará para sempre, não prescreve.

Assim, é de grande valia a Proposta de Emenda à Constituição nº 276/2004 (anexo A), que dá nova redação ao inciso XLII do art. 5º da Carta Constitucional, estabelecendo que crimes de abuso exploração sexual de crianças e adolescentes sejam inafiançáveis e imprescritíveis.

Essa imprescritibilidade é necessária nos casos de estupro e atentado violento ao pudor incestuosos principalmente quando a vítima é criança, pois quando violentada, apresenta sentimentos confusos, sente-se desprotegida, desamparada, tem medo, culpa e vergonha, não consegue externar todo esse sofrimento. A mãe, que deveria proteger e amparar, muitas vezes não o faz. É necessário garantir para estas crianças que, futuramente, possam, ainda, ter a chance de punir seus agressores. De acordo com pesquisas da Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e Adolescência (ABRAPIA), em apenas 10,47% dos casos de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes houve processo judicial instaurado.

Além da responsabilização criminal do agressor e da mãe, caso tenha sido cúmplice do delito, devem ser aplicadas as medidas constantes no Estatuto da Criança e do Adolescente, com o intuito de tratar, orientar e readequar a família como um todo.

Na sociedade em que vivemos, não é possível ter um Código Penal datado de 1940 como referência. Alguns até utilizam-se da mudança dos tempos para descaracterizar o instituto da presunção da violência, argumentando que a vítima tem discernimento suficiente para entender o que é um ato sexual, com biótipo incompatível com sua idade, levando o agente a erro ou mesmo tenha tido intenção de seduzir o adulto. Por isso é tão necessário o tratamento do qual devem ser somados conhecimentos em Direito, Psicologia, Medicina e outras áreas, com a maior participação possível de uma equipe multidisciplinar para que sejam reunidos os elementos necessários para apurar os fatos. Mas o fato é que

a evolução cultural da sociedade enseja a criação de novos tipos penais que acompanhem as mudanças de paradigmas, sendo outros desconsiderados.

A responsabilização e tratamento referentes à prática de crimes sexuais domésticos devem ser rediscutidos, através da tipificação penal do crime de incesto1, assim como a criação de políticas voltadas ao enfrentamento da questão, face ao aumento das notificações de violência sexual doméstica.

3 A NECESSIDADE DE PREVENÇÃO E ATENDIMENTO ESPECIA-

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