UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ FACULDADE DE DIREITO
O ABUSO SEXUAL INTRAFAMILIAR CONTRA
CRIANÇAS E ADOLESCENTES
FORTALEZA – CEARÁ 2007
Adriana Fernandes Pereira
O ABUSO SEXUAL INTRAFAMILIAR CONTRA
CRIANÇAS E ADOLESCENTES
FORTALEZA – CEARÁ 2007
Monografia submetida à apreciação como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Bacharel em Direito, concedido pela Universidade Federal do Ceará - UFC.
________________________________
Adriana Fernandes Pereira
Monografia apresentada e aprovada em ____/___/_____
Banca Examinadora:
____________________________________
Prof. Ms. Flávio Moreira Gonçalves
Orientador
________________________________
1º Examinador(a)
________________________________
2º Examinador(a)
_________________________________ Prof.:
AGRADECIMENTOS
A DEUS, sem qual não seria possível ter conseguido chegar até aqui.
À minha filha ANA CLARA, por iluminar a minha vida e ser a inspiração para que
consiga alcançar todos os meus objetivos.
Aos meus pais, ALIANA e JOSÉ, por serem os principais responsáveis para que
eu conseguisse trilhar sempre os melhores caminhos.
Ao WAGNER, pelo companheirismo e dedicação.
À amiga ROBERTA, pela amizade e imensa contribuição para o término deste
trabalho e de tantos outros.
Ao mestre FLÁVIO GONÇALVES, pela orientação, paciência e interesse em
RESUMO
Nesta pesquisa monográfica pretendo desenvolver a questão do abuso sexual intrafamiliar a partir da análise das características dos crimes e de seus agentes, da punição dos agressores e das melhores formas de tratamento. É abordada a definição do crime de incesto e a qualificação dos agentes envolvidos. O segundo capítulo versa sobre o ordenamento jurídico brasileiro no que concerne aos direitos da infância e da juventude e à proibição legal do crime de abuso sexual doméstico. O capítulo seguinte analisa as formas de atendimento às vítimas e agressores, promovendo a multidisciplinaridade necessária para o trato de uma questão tão delicada, que causa imensos traumas psicológicos às crianças e adolescentes abusadas.
ABSTRACT
On this monographic research I purpose to develop the question of the sexual inside families abuse with the analysis of the features of the crimes and its agents, the punishment of them and the best ways of treatment. It is studied the definition of the incest crime and the qualification of the involved agents. The second chapter talks about the brazilian legal system in relation to the rights of the infancy and the youthfulness and to the legal prohibition of the crime of sexual domestic abuse. The following chapter analyzes the ways of attendance to the victims and aggressors, promoting the necessary multidisciplinarity for the treatment of a so delicate question, that causes enormous psychological problems to children and teenagers.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ... 7
1 CRITÉRIOS IDENTIFICADORES DO ABUSO SEXUAL INTRAFA-MILIAR ... 10
1.1 As relações incestuosas ao longo da história ... 10
1.2 As teorias sobre a proibição cultural ao incesto ... 12
1.3 Definição do incesto no contexto familiar ... 14
1.4 A mãe como figura essencial nos casos de incesto pai-filho ... 18
1.5 A Síndrome da Alienação Parental ... 24
2 O DIREITO BRASILEIRO EM RELAÇÃO AO ABUSO SEXUAL INTRA-FAMILIAR ... 27
2.1 A Constituição Federal de 88 e os direitos da criança e do adoles-cente ... 27
2.2 A doutrina da proteção integral e a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança ... 29
2.3 As inovações do Estatuto da Criança e do Adolescente ... 31
2.4 A aplicação da lei penal ... 36
3 A NECESSIDADE DE PREVENÇÃO E ATENDIMENTO ESPECIALI-ZADO ... 45
3.1 A multidisciplinaridade no atendimento ... 45
3.2 O projeto “Depoimento sem Dano” ... 55
3.3 O papel do Conselho Tutelar ... 59
CONCLUSÃO ... 61
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ... 63
INTRODUÇÃO
O interesse em desenvolver o presente trabalho partiu da possibilidade
de estudar o Abuso Sexual Intrafamiliar, a mais grave violência cometida no seio
da família, sob o aspecto jurídico, devido à esparsa literatura jurídica que há sobre
o assunto, além da indignação face à violação física e moral a que crianças e
adolescentes podem estar sujeitos nos próprios lares.
O presente estudo abordará o perfil das famílias nas quais ocorrem as
relações incestuosas, explicando como os direitos da criança e do adolescente
são violados e mostrando qual a melhor forma de tratamento para todos os
membros da família envolvidos e responsabilização criminal do agente. Pela
maior quantidade de processos e de relatos que existem em torno do problema,
terá prioridade a análise do incesto de pai e filha, sendo esta criança ou
adolescente.
Segundo dados estatísticos obtidos no CEARAS (Centro de Estudos, e
Atendimento Relativos ao Abuso Sexual) da Faculdade de Medicina da USP,
32,73% dos casos atendidos de incesto são entre pai e filha, seguidos de 18,18%
das relações entre padrasto e enteada.
O Abuso Sexual Intrafamiliar é a mais grave violação ao Princípio
Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana, aos direitos da criança e do
adolescente contidos na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do
justamente aqueles que têm o dever legal de proteger a vítima e promover seu
bem-estar.
O agressor utiliza-se da autoridade que tem sobre a vítima, além do
amor, carinho, confiança e admiração que a criança tem por ele para
aproximar-se, iniciando a relação incestuosa. Por ser um crime que, na maioria das vezes,
não deixa vestígios materiais e testemunhas, é a palavra da vítima contra a do
agressor, que geralmente é pessoa de “boa índole”, um cidadão acima de
qualquer suspeita, a maior parcela dos casos resulta em absolvição.
A principal característica dos crimes incestuosos é a “síndrome do
segredo”. Esta é definida como a não-revelação do fato pela vítima, seja pelas
ameaças sofridas, pelo medo de ser desacreditada e culpabilizada pelo abuso,
pelo sentimento de culpa ou vergonha ou mesmo pela negação do fato. É difícil
para a criança ou adolescente encarar que a figura paterna, vista outrora como
fonte de afeto e admiração, pode estar lhe causando tanto sofrimento.
Tenta-se neste estudo fazer uma crítica à falta de tipificação legal do
incesto no Código Penal Brasileiro, devendo ser inserido dentre os crimes contra
a liberdade sexual ou, a exemplo do Direito Penal Alemão, vislumbrando o incesto
como delito contra a família. Tenta-se também criticar a prescrição dos crimes
contra os costumes cometidos por familiares, pois, é importante que se saiba que
a vítima, muitas vezes, traumatiza o fato ou mesmo não quer revivê-lo durante
muito tempo, sendo que, quando tem a iniciativa de promover a devida
notificação, o crime já prescreveu, não havendo mais nada a ser feito. Há, ainda,
o fato de que os adultos costumam não dar credibilidade à vítima, achando que
As crescentes denúncias de violência sexual doméstica apresentam um
quadro alarmante, aumentando a preocupação social com o tema. Como as
vítimas são, em sua grande maioria, desassistidos pelo pai e pela mãe, que pode
ser omissa ou mesmo cúmplice, é necessário que Estado, sociedade e entidades
protetoras dos direitos da criança e do adolescente sejam responsáveis pela
promoção de suas garantias fundamentais.
É espantoso saber que a grande maioria das mulheres que procura
ajuda psiquiátrica foi vítima de incesto na infância, sendo este crime, também, o
grande responsável pela maior parte dos casos de adolescentes e crianças que
fogem de casa.
Ao estudar o fenômeno do abuso sexual intrafamiliar, é fundamental a
compreensão de que este crime ocorre dentro de uma instituição há séculos
considerada “sagrada” e inviolável, mas que, entretanto, não oferece condições
para um desenvolvimento saudável e com o afeto necessário para a as crianças e
1 CRITÉRIOS IDENTIFICADORES DO ABUSO SEXUAL
INTRAFA-MILIAR
1.1 As relações incestuosas ao longo da história
Tem-se por incesto a relação sexual entre membros de uma mesma
família, com exceção dos cônjuges, sejam eles parentes consangüíneos ou por
afinidade.
No decorrer da história das civilizações, a relação incestuosa foi muitas
vezes repudiada, como pôde ser verificado em diversas tribos pré-históricas
totêmicas1 e no Código de Hamurábi2, um dos mais antigos documentos jurídicos
de que se tem conhecimento, que dizia: “se alguém, depois de seu pai, se deitar
sobre o seio de sua mãe, serão os dois queimados”, demonstrando, assim, o
horror social que a configuração do incesto pode causar em uma sociedade.
Entretanto, até que se estabelecesse a organização das relações
sociais e matrimoniais com vistas a afastar o malefício do incesto houve um longo
percurso, pois nem sempre as famílias foram exogâmicas.
1 Segundo FREUD, as tribos nas quais há o sistema totêmico, isto é, aquele no qual o clã tem um antepassado
comum, o totem, que guarda e protege seus próprios filhos, sendo perigoso para os outros, primam pela exogamia, não podendo as pessoas de um mesmo totem manter relações sexuais e nem casar umas com as
outras, sendo a desobediência punida com a morte.
2 Hamurábi foi um rei babilônico que promoveu a centralização jurídica da Mesopotâmia com a criação de
Na Bíblia, podemos encontrar uma passagem no Livro do Gênesis,
Capítulo 19, versículos 30-38, no qual as duas filhas de Ló deitam-se com o
mesmo com fins de reprodução, para que fosse garantida a perpetuação da
família. Há também, na Bíblia, o exemplo de Abraão, que se casou com sua
meia-irmã Sara. Contraditoriamente, no Livro do Levítico, o incesto era proibido1 e a
pena de morte era aplicada para quem o cometia. Senão, veja-se:
11. O homem que se deitar com a mulher de seu pai, terá descoberto a nudez de seu pai; serão mortos esta e aquele; o seu sangue cairá sobre eles.
14. Se um homem tomar uma mulher e sua mãe, maldade é: a ele e a elas queimarão com fogo, para que não haja maldade no meio de vós.
Na mitologia grega, temos o caso de Zeus, que manteve relações
sexuais com sua mãe Réia (ou Ops) sob disfarce de serpente; e o de Édipo, que
matou seu pai e casou-se com sua mãe, Jocasta, tendo a psicanálise estudado
esse mito para desenvolver a teoria do Complexo de Édipo. Na história egípcia,
há Cleópatra, que se casou com seu irmão Ptolomeus XII.
O Direito Romano punia a celebração do casamento entre parentes, era
o incestus juris gentium. Seguindo esta linha, o direito canônico criou o incesto
juris divini, ou seja, o incesto segundo disposições divinas, ampliando também a
idéia de incesto como crime. O Papa Inocêncio III, em 1215, limitou a proibição de
casamento ao quarto grau na linha de parentesco.
Nestes breves exemplos, podemos notar o horror que a natureza
humana tem ao incesto, tendo sido essa aversão transmitida culturalmente de
sociedade a sociedade, até chegar aos nossos dias. Pode-se notar, também, que
o ser humano, ambiguamente, tem natural atração pela relação incestuosa, mas
se utiliza de vários mecanismos, inconscientemente, para negar esse desejo.
É, desta forma, um verdadeiro tabu1, que se impõe como norma,
estabelecendo limites sociais do que é proibido e do que não pode ser
transgredido, podendo ser o próprio tabu a sanção pela sua violação,
atormentando o violador dele e quem é violado de igual modo.
1.2 As teorias sobre a proibição cultural ao incesto
Segundo Cláudio Cohen (1993), há várias teorias2 para explicar porque
o incesto é proibido, sendo estas biológicas, sociais e psicológicas. As teorias
biológicas repudiam o incesto por promover uma maior chance de doenças
genéticas manifestarem-se. Sabe-se, entretanto, que as relações endogâmicas
propiciam a expressão da recessividade, que pode se manifestar tanto em
doenças hereditárias quanto em características benéficas. Isso, reforçado pelo
fato de a proibição do casamento estender-se aos parentes por afinidade, justifica
a não importância da consangüinidade na proibição ao incesto. Se o fator
biológico fosse essencial para proibir as relações sexuais e afetivas entre
parentes mais próximos, não seria necessária a proibição social.
1“Tabu” é um termo de difícil definição; para nós, pode significar o “sagrado” ou o “proibido”. (in TOTEM
E TABU, Sigmund Freud)
As teorias sociais ditam que a exogamia amplia a família, possibilitando
uma organização mais cooperativa e democrática.
Já as teorias psicológicas dizem que a não-permissão do incesto
permite a diferenciação de papéis dentro da organização familiar, o que ocasiona
um bom desenvolvimento da família e de cada indivíduo. Nas famílias incestuosas
o papel que cada ente deve exercer não está bem delineado. A mãe muitas vezes
não ocupa o seu papel de protetora, é omissa e pode até ser conivente. A filha
ocupa o papel de companheira do pai e rivaliza com a mãe.
De acordo com Freud (1923), a proibição do incesto atua como
organizador mental do indivíduo, pois o aparelho mental se estrutura a partir da
repressão aos desejos incestuosos, que são naturais ao indivíduo.
A dificuldade em se definir o incesto parte dos conceitos de abuso
sexual e família, que variam segundo a época e a cultura, conforme pôde ser
verificado na seção anterior.
Ainda de acordo com Cláudio Cohen, o abuso sexual não é
caracterizado pela gravidade do ato ou pelas marcas físicas deixadas na vítima,
mas sim pela situação emocional que cada indivíduo vive, sendo de maior
importância a duração da relação e o vínculo existente entre a vítima e o
abusador. Quanto à família, esta se caracteriza como o tecido social definido na
existência de laços emocionais diferenciados, justificando o relacionamento entre
seus membros. O incesto caracteriza-se pela relação sexual entre entes de uma
mesma família, com exceção dos cônjuges, sendo esta família definida pela
O abuso sexual intrafamiliar ou incestuoso é, segundo MARIA
BERENICE DIAS1, “o crime mais hediondo que existe, pois tem origem em uma
relação afetiva e gera como conseqüência a morte afetiva da vítima”. É um dos
segredos mais escondidos, as pessoas fingem que não acontece e não são
capazes de denunciar.
1.3 Definição de incesto no contexto familiar
Considera-se abuso sexual como todo tipo de contato sexualizado,
como falas eróticas, exposição da criança a material pornográfico, carícias
íntimas, relações orais, anais e vaginais, exibicionismo, voyerismo ou até o
estupro seguido de morte, como é comum nos casos de crianças muito pequenas,
que não têm estrutura física para suportar tamanha violência.
Contrariando o que se costuma alertar às crianças quantos aos riscos
de contatos com estranhos, a maioria dos casos de abuso sexual contra meninos
e meninas ocorre dentro dos lares, sendo praticado por pessoas próximas e em
quem confiam e pelos quais têm afeto.
Não é um crime que acontece apenas nas camadas mais baixas da
população, podendo ocorrer em qualquer nível social e com maior freqüência do
que se pode imaginar. É extremamente difícil fazer estimativas acerca dos casos
de incesto, mas acredita-se, com base em dados estatísticos das Secretarias de
Segurança dos estados do Brasil, que uma em cada quatro famílias passe por
1 Maria Berenice Dias é desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e é grande defensora
esse tipo de violência. Esse é um número alarmante, já que as denúncias
ocorrem em apenas 10 a 15% dos casos, traduzindo-se, desta forma, a
dificuldade que a sociedade tem de aceitar que a família pode ser destrutiva, nem
sempre cumprindo o seu papel de proteção.
O abusador, que em 69,9%1 dos casos registrados é o pai biológico,
utiliza-se do poder que tem sobre vítima, além da confiança que a mesma
deposita nele, para induzir a criança ou adolescente a ter uma relação libidinosa
com ele, sem recorrer ao uso da ameaça e da violência. Por isso o crime é
silencioso, podendo muitas vezes não deixar marcas físicas nas vítimas, pois
apenas a menor parcela dos casos resulta em conjunção carnal, deixando,
entretanto, danos irreparáveis na mente e na vida das mesmas. Além disso, o
abuso incestuoso se estabelece sobre sentimentos de culpa, medo e
dependência emocional e financeira, fazendo com que se transforme em tabu
familiar, favorecendo a duração da violência por anos.
Na maioria dos casos, a família é rotulada como “bem-estruturada”,
composta por uma mãe submissa, dedicada ao marido e dependente
financeiramente deste, e por um pai que é o provedor, distante da educação dos
filhos e tidos por estes como autoritário. Entretanto, podemos observar nessas
famílias que o que existe é uma pseudo-organização, pois os papéis não estão
tão bem definidos assim, pois se estivessem, o incesto não ocorreria, posto que
este é uma transgressão aos limites delineados pelas funções que cada um
devem exercer dentro de uma família.
1 De acordo com dados estatísticos coletados nos sites das diversa Secretarias de Segurança dos estados
Em uma família incestogênica os papéis tradicionais de pai, mãe e
filhos não estão definidos. A mãe, que deveria ser protetora dos filhos, é omissa
ou conivente; a filha (ou filho) ocupa o lugar de companheira do pai, assumindo
postura de rivalidade com a mãe. Evidentemente, essa distorção nos papéis
familiares não é feita de modo consciente.
A longa duração de uma relação incestuosa, que em 60% dos casos
dura mais de 1 ano, explicita a indefinição de papéis dentro de uma família e a
mudança no tipo de relacionamento entre os membros, além do envolvimento de
todos, pois, muitas vezes, os familiares que mantêm uma relação incestuosa
podem conviver como se cônjuges fossem, resultando até mesmo na procriação,
como pode ser verificado em diversas cidades no interior do nordeste, por
exemplo.
A relação incestuosa inicia-se com gestos de carinho, afeto, toques e
carícias a quem as crianças e adolescentes devem respeito e obediência e em
quem confiam. O agressor não usa da violência, mas “seduz” a vítima, a manipula
e confunde seus sentimentos. A vítima não consegue vislumbrar que há
conotação sexual no gesto do abusador, pois, principalmente as crianças, todos
gostam de carinho e gestos gentis. Aos poucos, os carinhos passam a extrapolar
os limites, estabelecendo-se o abuso, o que passa a incomodar a vítima.
As crianças, especialmente, não sabem diferenciar os gestos de afeto
com os de cunho sexual, o que faz com que o abusador ultrapasse os limites.
Assim, segundo Veleda Dobke1:
1 Veleda Dobke é Promotora de Justiça no Rio Grande do Sul e publicou o livro “Abuso Sexual: A
Na primeira fase, o abusador manipula a dependência e a confiança da criança, incitando-a a participar dos atos abusivos, ao mesmo tempo em que a faz crer que se tratam de brincadeira ou comportamentos normais entre pais e filhos, sob promessa de recompensa; prepara o momento e o lugar para a prática e toma precauções para não ser descoberto.
Quando a vítima percebe, o abuso já se consumou. Pode haver aí, uma
correspondência afetiva ou até excitação por parte da vítima, o que não podem
ser chamados de prazer sexual ou concordância, pois não passam de frutos da
estimulação mecânica, o que causa uma perturbação ainda maior, pois está
sendo traída por quem ama e respeita e pelo próprio corpo.
Com isso, o agressor passa a ameaçar a vítima, colocando toda a
responsabilidade pelo fato sobre ela, cobrando silêncio e dizendo que a
manutenção da família está sob seu manto, que se o fato for descoberto todos a
odiarão e a família irá esfacelar-se, que a mãe não acreditará nela e ficará com
ciúmes, achando que ela seduziu o pai, por exemplo, que será expulsa de casa e
que ele irá manter relação incestuosa com seus irmãos menores, o que provoca
verdadeiro terror psicológico na mente da vítima. Mesmo depois de adulta, é difícil
para a vítima reagir ao abusador, pois o trauma iniciado na infância deixa
conseqüências para a vida toda.
A vítima passa a sentir vergonha de ter “permitido” o abuso, começa a
se cobrar quando tudo começou, vem o sentimento de culpa e o medo de ser
acusada de ter provocado o abuso, de ter seduzido o abusador, de provocar a
desestabilidade da família, o que faz com que se mantenha calada, que esconda
a verdadeira face do abusador, que, geralmente, é homem honesto, trabalhador,
a quem todos respeitam, isto é, fora de qualquer indício de ser um indivíduo
É a palavra do agressor contra a da vítima. Em quem acreditarão? Por
isso, a vítima muitas vezes cala-se e tem de aprender a conviver com o abuso,
que geralmente dura anos e talvez nunca seja descoberto. Em muitos casos, a
criança é realmente acusada de seduzir o adulto, o que a transforma em
verdadeira culpada pelo fato.
De fato, o abusador manipula a vítima de forma a fazê-la acreditar que
é a culpada pelos acontecimentos, utilizando-se, para isso, de todo o poder e
persuasão para que acredite que realmente provocou o abuso e iniciou a relação,
faz ameaças e assim estabelece-se o a violência psicológica e o pacto de
silêncio, que deixam marcas mais profundas que a violência física.
1.4 A mãe como figura essencial nos casos de incesto pai-filha
Nos casos em que há denúncia, normalmente esta ocorre quando
alguém percebe os sinais apresentados pela criança ou adolescente, como
depresssão, apatia, medo exagerado, conhecimento sobre sexo incompatível com
a sua idade, machucados e sangramentos nos genitais ou mesmo flagra o abuso.
Quando o fato não é descoberto pela mãe ou esta descobre, mas finge que nada
está acontecendo, a vítima passa a culpar a mãe por não estar cumprindo o seu
papel de proteção. Raros são os casos nos quais a mãe denuncia o fato.
Nesse contexto, tem-se a mãe como figura incapaz de oferecer a
proteção necessária ao filho, pois na maioria das situações nas quais o incesto foi
àquela. Isso gera um sentimento de raiva e desprezo maior da vítima pela mãe
que pelo próprio agressor, pois seria a mãe quem deveria interferir e impedir o
abuso, cumprindo o seu papel de mãe1.
É inconcebível para a vítima que a própria mãe não possa ter percebido
os sinais ou tenha percebido, mas não tenha acreditado, o que demonstra a total
incapacidade de proteção por parte da mãe. A criança ou o adolescente passa a
hostilizar e desprezar a figura materna, sendo essa raiva tão devastadora quanto
o abuso em si. Além disso, o que geralmente ocorre é que a mãe acusa a vítima
pelo esfacelamento da família, pois provocou o abusador. É como se a filha, nos
casos de incesto pai/filha, fosse a mulher que seduziu seu marido, sendo uma
verdadeira ameaça. Assim, a mãe expulsa a “ameaça” do seu convívio, fazendo
com que a vítima tenha de conviver, além da violação física e psicológica, com o
abandono. A grande punida pelo fato, portanto, pode ser a vítima. As seqüelas de
um abuso sexual intrafamiliar são inimagináveis e irreparáveis.
Por mais absurdo que possa parecer, a maioria dos casos resulta em
absolvição, pois a vítima pode entrar em contradição, em virtude da quantidade
de vezes em que é inquirida e pela falta de provas materiais, já que o exame
médico-legal nem sempre pode atestar que ocorreu o abuso, podendo não haver
vestígios físicos.
Quando a mãe tem contato próximo e afetivo com as filhas a violência
logo é descoberta, pois a própria mãe tem condições de perceber o que está
acontecendo e tomar as medidas necessárias para proteção da vítima. A sua
1 Assim, fica clara a indefinição de papéis dentro de uma família na qual ocorre uma relação incestuosa. A
presença como pessoa de confiança é imprescindível para o rompimento do
abuso. Se a mãe, ou outra pessoa na qual a vítima confie, não for capaz de dar
esse suporte emocional, a criança pode ser revitimizada durante longos períodos.
Quanto mais próximo for o relacionamento entre mãe e filha, maiores
serão as chances da violência doméstica ser descoberta, rompendo o ciclo
abusivo, além de facilitar o tratamento multidisciplinar para recuperação
psicológica da vítima.
Se as relações entre os membros da família forem pautadas no apoio
mútuo, no respeito e na confiança, há um fortalecimento da unidade familiar, o
que a torna resiliente, ou seja, com menor vulnerabilidade aos riscos de qualquer
tipo de violência entre seus membros.
Segundo o psiquiatra Cláudio Cohen1, o abuso sexual provém da
desestrutura familiar, quando os papéis de cada membro não são
desempenhados da forma como deveriam, com responsabilidade e competência.
Quando um pai molesta a própria filha, o abuso perdura por pelo menos quatro
anos seguidos, sendo impossível que ninguém perceba. Quando a mãe não
assume o papel de protetora e defensora dos filhos, ela também está praticando o
abuso, tanto quanto o pai.
De acordo com o promotor de justiça Miguel Velásquez2:
Existem casos de crianças que não conseguem revelar a situação agressiva porque passa, mas também não consegue suportá-la. Existem crianças que pensam ainda, que são elas próprias as culpadas e acabam levando às últimas conseqüências: o suicídio.
1 Cláudio Cohen é psiquiatra e professor da Universidade de São Paulo.
Há uma grande dificuldade por parte da sociedade em dar credibilidade
à palavra da vítima. Quando é criança, costuma-se pensar que está imaginando
ou foi induzida a mentir pela mãe1. Se, acaso, for adolescente, é acusada de
seduzir, de provocar o abusador.
Absurdamente, ao inquirir a vítima, o juiz pode perguntar se houve
excitação sexual e prazer por parte dela, o que é completamente irrelevante e não
importa para a configuração do delito, pois não passa de fruto da precoce
estimulação sexual da criança ou adolescente abusado.
Acredita-se que o que o abusador sinta não seja atração sexual, pois na
maior parcela dos casos a vítima não ultrapassa os quatro anos de idade. É mais
uma relação de dominação mesclada com desejos sexuais doentios. É comum
que o próprio agressor tenha sofrido abuso sexual na infância, não sendo isso,
entretanto, regra para que possa vir a cometê-lo. Estatísticas americanas
mostram que de um em cada oito indivíduos que sofreu abuso sexual na infância
repete o comportamento na fase adulta. A repetição de comportamento pode ser
um fator para a prática do abuso, mas não o único. Desvios de personalidade e
carência afetiva nos primeiros anos de vida também podem causar desvios de
conduta.
Segundo Lucimara Martins Pereira2, os agressores utilizam-se da
sexualidade com a criança muito mais como uma compensação para um
sentimento de impotência e baixa auto-estima do que gratificação sexual.
1 É a chamada Síndrome da Alienação Parental, na qual a mãe implanta “falsas memórias” na mente da
criança, que passa a acreditar que determinado fato realmente ocorreu.
2 Psicóloga, especialista em atendimento à Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes e responde
A vítima, em muitos casos, pode fazer a dissociação entre a figura do
pai e a do abusador, sendo esse um mecanismo de defesa psicológica. Isso
ocorre quando a criança ou adolescente consegue, apesar do abuso, manter
vínculos de afeto com o abusador.
É fácil esse fenômeno ser percebido quando a mãe ignora o abuso ou
culpa a filha pelo fato, pois esta passa a considerar a figura materna como falha,
encontrando o afeto e segurança que necessita justamente em quem a viola. É
como se a figura do abusador não se confundisse com a do pai, que não deixa de
ser quem lhe dá carinho. Isso aumenta o sentimento de culpa da vítima, pois
passa a se sentir cúmplice do agressor. Isso tende a um sentimento de negação
do fato, fazendo com que a criança crie buracos de memória sobre o evento. Daí
a dificuldade que há em falar da violência sofrida, podendo, inclusive, entrar em
contradição. Essas divergências nos depoimentos são usadas para desacreditar a
versão da vítima, que acaba por ser tachada de fantasiosa.
Esse fenômeno, explicado pela psicanálise, não deve ser confundido
com a anuência da vítima, posto que seja uma conseqüência psicológica. Temos
um caso concreto no qual, após longo período de abuso, a vítima concebeu um
filho fruto de uma relação incestuosa com o pai, tendo sido essa a única pessoa
na qual quis se apoiar quando da descoberta do fato.
A síndrome do segredo permeia essas famílias, pois a reprovação
social do incesto e o medo da vítima impedem que a denúncia seja feita, sendo,
desta forma, um crime que ocorre entre quatro paredes, no silêncio dos lares,
mostrando que são poucos os casos que resultam em aplicação de penalidade
Vivemos em uma sociedade injusta, que insiste em não dar real
dimensão aos direitos das crianças e adolescentes, tratando-os como objetos que
devem satisfazer as determinações dos adultos. É emergencial que a sociedade
passe a dar maior visibilidade à questão, não tratando o fato como tabu sobre o
qual não se possa sequer comentar, entendendo que nem sempre a família é
capaz de cumprir seus deveres de proteção impostos.
Acreditamos que, mais importante que aplicar uma pena ao adulto
agressor como forma de punição, é necessário afastar a criança ou adolescente
do seu convívio e submetê-lo a um tratamento psicológico, que, aliás, deve ser
oferecido para toda a família. Quando o indivíduo abusador não é devidamente
tratado, pode chegar a abusar de outras pessoas que não tenham laços de
parentesco com ele. A vítima do incesto, também, quando não é protegida e não
tem chance de ser tratada, tende a reproduzir o comportamento mais tarde,
continuando o ciclo perpetuador do incesto. Quando, entretanto, recebe o
tratamento adequado, sua história de vida poderá ser escrita sob outra ótica,
sendo refeita com base na afetividade e não na violência.
Quando a vítima torna-se adulta e tem a real dimensão do que
aconteceu e cria coragem para denunciar, o crime já prescreveu, posto que isso
ocorre em dezesseis anos. Entretanto, as marcas deixadas pelo abuso perduram
por toda a vida, são impassíveis de prescrição.
De acordo com Maria Cristina Domingues Pinto1:
1 Psicanalista membro do
Instituto Sedes Sapientae, da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, e do
O incesto é comumente uma experiência devastadora porque se insere na constelação das emoções e dos conflitos familiares. Não há por onde escapar! Seu impacto emocional é destruidor em parte devido às nossas reações culturais ao incesto. Mas, principalmente, pelo fato da criança ou adolescente ser colocada numa situação enlouquecedora, onde aquele que deveria ser o primeiro representante da lei, da cultura para ela, o pai, que orienta, que limita seus desejos e suas ações, construindo seu senso ético conforme a cultura maior da sociedade, está totalmente incapacitado para tal.
1.5 A Síndrome da Alienação Parental
O surgimento de novos paradigmas quanto aos direitos de família fez
os profissionais que lidam com conflitos familiares atentarem para um fenômeno
denominado “síndrome da alienação parental” ou “implantação de falsas
memórias”.
Em alguns casos de ruptura dos laços de união, um dos cônjuges (ou
companheiros) pode nutrir sentimentos de ódio e vingança contra o outro. Nesse
terreno, o filho do casal é utilizado como instrumento de agressividade, sendo
levado a desprezar o outro genitor. A criança é levava a afastar-se de quem ama,
o que provoca sentimentos contraditórios, passando, então a identificar-se com o
genitor com o qual convive. Isso faz com que aceite como verdadeiro tudo que lhe
é contado.
Na tentativa de manipular os sentimentos dos filhos todas as armas são
utilizadas, especialmente a afirmação de que o outro cometeu abuso sexual
contra o próprio filho. A criança é induzida a acreditar que os gestos de carinho
vindos da pessoa que tanto ama eram na verdade gestos de cunho sexual, sendo
passa a acreditar que o fato realmente aconteceu, não distinguindo mais a
diferença entre fatos verdadeiros e mentira. Nem a própria mãe (ou pai) consegue
distinguir a diferença entre verdade e mentira. Assim, são implantadas falsas
memórias na mente da criança, que passa apresentar os mesmos sentimentos de
medo, dúvida e vergonha que permeiam a vida das vítimas de abuso sexual
incestuoso.
Desta forma, quando um processo de destituição do poder familiar ou
mesmo responsabilização criminal do agente abusador é levado ao Poder
Judiciário1, é necessário que o juiz tenha muita cautela e sensibilidade ao
determinar certos atos, pois poderá causar danos ainda maiores à criança se esta
for privada do convívio com o genitor que, eventualmente, não lhe causou mal
algum.
É importante que o juiz identifique a existência de sintomas que
permitam reconhecer a presença da síndrome da alienação parental. Para isso, é
necessária a participação de psicólogos, assistentes sociais e psiquiatras para
que o juiz possa distinguir se o caso é de abuso real ou de falsas denúncias com
o intuito de punir o outro genitor afastando-o do filho.
Segundo Maria Berenice Dias2:
1 AC 70015224140
DESTITUIÇAO DO PODER FAMILIAR. ABUSO SEXUAL. SÍNDROME DA ALIENAÇÃO PARENTAL. Estando as visitas do genitor à filha sendo realizadas junto a serviço especializado, não há justificativa para que se proceda à destituição do poder familiar. A denúncia de abuso sexual, levada a efeito pela genitora não está evidenciada, havendo a possibilidade de se estar a frente à hipótese da chamada síndrome da alienação parental. Negado provimento (7ª Câmara Cível, Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Relator: Maria Berenice Dias)
2 Artigo publicado na revista do Instituto Brasileiro de Direito de Família, nº 39, Ano 6 (Julho/Agosto de
2 O DIREITO BRASILEIRO EM RELAÇÃO AO ABUSO SEXUAL
INTRAFAMILIAR
2.1 A Constituição Federal de 1988 e os direitos da criança e do adolescente
Segundo a Constituição Federal brasileira, a família é a base da
sociedade, tendo especial proteção do Estado. Tem-se por família, em sentido
amplo, como o conjunto de pessoas unidas por laços parentesco e ascendência
comum. Em sentido estrito, a família é composta pelos pais e filhos, apenas pelos
irmãos, por um dos pais e os filhos, etc. É nesse sentido de família, estrito, que
está descrito no § 4º do art. 2261 da Constituição Federal, que iremos nos ater
para desenvolver o presente estudo. Reza, assim, o art.227, caput, da CF/88:
É dever da família, da sociedade, e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
É a primeira vez, em uma Carta Magna brasileira, que consta capítulo
dedicado especificadamente à criança e ao adolescente, considerando o dever de
proteção ao menor sob a responsabilidade da família, da sociedade e do Estado.
1 Art. 226,§ 4º, CF. - Entende-se como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus
Está, ainda, consubstanciado no art. 227 da CF/88 o princípio da
igualdade, posto que universaliza os direitos da criança e do adolescente, sem
qualquer distinção de faixa etária ou de situação.
Contém este artigo os princípios básicos enunciados na Convenção
Internacional dos Direitos da Criança, aprovada em 1989, sucessora da
Declaração Universal dos Direitos da Criança, de 1959, da qual o Brasil é
signatário. Objetivou o constituinte, ao inserir a garantia de direitos da criança e
do adolescente, à proteção integral, assegurando direitos fundamentais
independentemente de classe social.
De acordo com José Afonso da Silva1, a Carta Constitucional vigente
não mais restringe a família à comunidade entre pais e filhos, incluindo-se a
comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, além da
formada pela união estável entre homem e mulher.
Dentre os filhos, estão incluídos havidos ou não do casamento, os
adotados e os incestuosos, sendo proibida qualquer discriminação. Além disso, o
exercício do poder familiar é exercido de igual modo por homem e mulher.
No que se refere ao abuso e exploração sexual contra crianças e
adolescentes, a Constituição Federal2 prevê séria punição, posto que é dever da
família, sociedade e Estado protegê-los.
1 SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 1992.
2 Art. 227,§ 4º, CF - A lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do
O abuso sexual intrafamiliar constitui, ainda, grave atentado ao
Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana, estabelecido segundo
o direito de igualdade e liberdade.
Podemos, todavia, notar que não há preocupação do legislador com a
proteção das crianças e dos adolescentes contra o abuso sexual intrafamiliar,
mas com a proteção da família, que utopicamente ainda é considerada como
instituição que ampara e protege, nunca sendo vista como destruidora e
desestruturadora.
2.2 A doutrina da proteção integral e a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança
É de grande relevância o estudo do ordenamento jurídico pátrio relativo
aos direitos da criança e do adolescente, além dos acordos internacionais que
influenciam a legislação brasileira.
A Declaração Universal dos Direitos da Criança (DUDC), adotada pela
Assembléia Geral das Nações Unidas em 1959, representou um conjunto de
intenções para a defesa e a promoção dos direitos da criança e do adolescente,
pois, por ser uma declaração, não permitia que houvesse fiscalização do seu
cumprimento. Entretanto, foi de grande valia, pois já colocava alguns aspectos
relevantes para a infância e adolescência em discussão, como a universalização
Princípio 2º - A criança gozará proteção especial e ser-lhe-ão proporcionadas oportunidades e facilidades, por lei e por outros meios, a fim de lhe facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, de forma sadia e normal e em condições de liberdade e dignidade. Na instituição de leis visando este objetivo levar-se-ão em conta, sobretudo, os melhores interesses da criança.
Em 20 de novembro de 1989, a Assembléia Geral das Nações Unidas
proclamou a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança
(CNUDC)1, sistematizando a Doutrina da Proteção Integral, que, segundo Ângela
Pinheiro2, é “um conjunto de cuidados voltados para proteção e a assistência à
criança, de forma que possa ela assumir plenamente suas responsabilidades na
comunidade”. Assim, a criança deve desenvolver sua personalidade, crescendo
em ambiente de amor e compreensão no seio da família.
Esta convenção, ratificada pelo Brasil em 24 de setembro de 1990, é o
mais completo tratado internacional sobre os direitos da infância e da juventude,
colocando-os em posição de absoluta prioridade na formação de políticas sociais
e destinação dos recursos públicos dos países signatários. A CNUDC sistematiza
princípios que devem ser seguidos por cada Estado-membro, orientando a
legislação relacionada à criança e ao adolescente à defesa de seus direitos.
Diferentemente da Declaração Universal dos Direitos da Criança, a
CNUDC implica no verdadeiro comprometimento, por parte dos países que a ela
aderirem, a promoção dos direitos da criança e do adolescente. A criança, a partir
1Art. 1º. “Para efeitos da presente Convenção considera-se como criança todo ser humano com menos de
dezoito anos de idade, a não ser que, em conformidade com a lei aplicável à criança, a maioridade seja alcançada antes”. Na legislação brasileira(art.2º, ECA) adolescente corresponde à pessoa com idade entre 12 e 18 anos, está incluído, portanto, na definição de criança da CNUDC.
2 Professora do Departamento de Psicologia da UFC, doutora em Sociologia e integrante do Núcleo Cearense
de então, é conhecida como sujeito de direitos, como pessoa em especial
condição de desenvolvimento, cabendo à sociedade zelar por ela.
Verifica-se neste tratado a vedação a qualquer política discriminatória,
seja em razão de sexo, raça, língua, religião, cor, classe social, nascimento ou
sob qualquer outra condição da criança, de seus pais ou responsáveis, a teor do
art.2º1.
A doutrina da proteção integral, isto é, o compromisso especial do
Estado de garantir os direitos das crianças em razão de sua especial condição de
desenvolvimento, foi anunciada em vários documentos da Organização das
Nações Unidas, além dos acima mencionados, como a Declaração de Genebra
sobre os Direitos da Criança (1924), sendo reconhecida, ainda, na Declaração
Universal dos Direitos Humanos e em outros documentos internacionais que
incluem dentre seus interesses a defesa e o bem-estar da criança e do
adolescente. Foi também alicerce para a defesa dos interesses da criança no
Ordenamento Jurídico brasileiro, reforçada na Carta Magna brasileira e no
Estatuto da Criança e do Adolescente.
2.3 As inovações do Estatuto da Criança e do Adolescente
A legislação pertinente aos direitos da criança e do adolescente, até a
promulgação da Constituição de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente,
1“Art. 2º - Os Estados Partes respeitarão os direitos enunciados na presente Convenção e assegurarão sua
não levava em conta a proteção integral da criança como ser em
desenvolvimento. De acordo com o Código de Menores de 1927, a criança e o
adolescente eram taxados coma utilização de termos pejorativos, como “vadios”
(que viviam nas ruas), “mendigos” (que pediam esmolas ou vendiam produtos nas
ruas) e “libertinos” (os prostituídos).
O Estatuto da Criança e do Adolescente, de 13 de julho de 1990,
regulamentou o art.227 da CF/88, procurando garantir os direitos fundamentais
aos seus tutelados sem qualquer distinção de origem ou condição social. Com o
advento do ECA, uma nova visão sobre a criança e o adolescente foi
estabelecida, sendo, agora, sujeito de direitos, em especial condição de
desenvolvimento e merecedores de proteção integral.
O ECA tutela a prevenção da ocorrência de ameaça ou concreta
violação dos direitos da criança e do adolescente, responsabilizando pais,
responsáveis legais, sociedade e Estado pela não observância destas garantias.
A partir de então, o trato com a questão do abuso sexual doméstico deu nova
dimensão ao processo judicial.
No Título I constam as disposições sobre a política de atendimento dos
direitos da criança e do adolescente, estabelecendo quais são eles, assim como
os deveres da família, da sociedade e do Estado e a proibição a qualquer forma
de violação dos seus direitos fundamentais. Assim, de acordo com o artigo 3º do
ECA:
A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.
Estabelece também o ECA, a teor do art.5º, que nenhuma criança
poderá ser alvo de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração,
violência, crueldade e opressão ou qualquer tipo de violação aos seus direitos
fundamentais.
O Título II determina quais as medidas de proteção a serem aplicadas
sempre que os direitos da criança e do adolescente estabelecidos nesta lei forem
ameaçados ou violados, seja por ação ou omissão da sociedade, Poder Público
ou por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsáveis.
A violência sexual intrafamiliar deixa de ser apenas um crime contra a
liberdade sexual para assumir a postura de atentado à vida, à saúde, ao respeito,
dignidade e liberdade, à boa convivência familiar e ao desenvolvimento físico,
moral, mental e sexual, ultrapassando os limites de poder e direito sobre a vítima.
O legislador pretendeu, assegurando direito à liberdade às crianças e
adolescentes, impedir que sofram constrangimentos de autoridades públicas, de
terceiros ou de familiares, responsabilizando a negligência ou abuso no exercício
do poder familiar.
Caso haja suspeita ou confirmação de maus-tratos (art.136, CP) contra
crianças ou adolescentes, o fato será obrigatoriamente comunicado ao Conselho
ECA, sem prejuízo de outras providências, como o registro em delegacia de
Boletim de Ocorrência.
É vedado, ainda, qualquer tratamento desumano, violento, vexatório,
aterrorizante ou constrangedor contra a infância e juventude. A transgressão a
este preceito torna-se ainda mais grave quando cometido no seio da família, pois
deveria ser esta instituição quem deveria colocá-los a salvo de qualquer forma de
violação aos seus direitos fundamentais. Sempre que um pai abusa de sua
autoridade para estimular precocemente a sexualidade da criança, com
erotização do afeto e deturpação das relações familiares, é configurado a violação
dos arts. 17 e 18 do ECA.
No Título IV, estão determinadas as medidas aplicáveis aos pais ou
responsáveis, como por exemplo, o encaminhamento a tratamento psicológico ou
psiquiátrico – extremamente necessário em casos de abuso sexual incestuoso – a
perda da guarda, a destituição da tutela ou suspensão ou destituição do poder
familiar.
Consoante o art. 130, há a possibilidade jurídica do afastamento
cautelar do agressor da moradia comum em casos de abuso sexual contra
crianças e adolescentes.Veja-se:
Art. 130. Verificada a hipótese de maus-tratos, opressão ou abuso sexual impostos pelos pais ou responsável, a autoridade judiciária poderá determinar, como medida cautelar, o afastamento do agressor da moradia comum.
Esse afastamento poderá ter maior resultado se determinado pela
de gestos gentis e de pressão psicológica e social sobre todos os membros da
família, que passam a achar que pode ter havido mudança de comportamento.
O Título V do ECA dispõe sobre a competência da Justiça da Infância e
da Juventude, para conhecer de pedidos de guarda e tutela e ações de
destituição do pátrio poder1 nas hipóteses de ação ou omissão da sociedade ou
Estado ou por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsáveis.
O Título VII dispõe sobre os crimes praticados contra a criança e o
adolescente, em harmonia com as disposições do Código Penal. De acordo como
art. 227, tais crimes são de ação penal pública incondicionada, não sendo
necessária a apresentação de queixa.
Mesmo com o reconhecimento de que a legislação brasileira é uma das
melhores do mundo, é importante que se saiba que o respeito concreto aos
direitos da infância e adolescência ainda é algo a ser conquistado, principalmente
em casos de abuso sexual incestuoso, que são envoltos no manto do silêncio.
Não se pode confundir a Lei com a sua execução. Esta depende da consciência
da família, da sociedade e do Estado de que são as crianças e adolescentes
seres em desenvolvimento que merecem especial atenção, da destinação certa
para os recursos e de gente competente para o trato com estes meninos e
meninas.
É notório que o Estatuto da Criança e do Adolescente ainda é muito
tímido em relação da violência sexual doméstica, pois muitas das pessoas
responsáveis pela defesa dos direitos da criança e do adolescente, especialmente
1 Hoje denominado poder familiar, na medida em que é exercido em condições de igualdade pelo pai, mãe ou
os profissionais do direito, não levam em consideração elementos que constituem
o conceito de infância e adolescência trazido pelo ECA, que os reconhece
plenamente como sujeitos de direitos merecedores de proteção integral.
2.4 A aplicação da Lei Penal
Refletindo o modo como a sociedade trata o incesto, insistindo em não
falar do assunto, fingindo que pais, tios, avôs e até mães são incapazes de
cometer esse tipo de atitude tão repugnante, sendo um crime sobre o qual não se
ousa nem pronunciar o nome; o incesto, diferentemente do Direito Penal Alemão1
e francês, não está tipificado no Código Penal brasileiro2, podendo, apenas, ser
enquadrado entre os crimes contra a liberdade sexual3.
Quando há conjunção carnal e o abusador utiliza-se de violência ou
grave ameaça, o delito é tipificado como estupro. Essa violência pode ser física
ou moral. Somente o homem pode ser sujeito ativo no crime de estupro e
somente a mulher sujeito passivo, pois somente assim haverá coito normal, que é
a conjunção carnal. Pode, entretanto, a mulher figurar como co-autora de estupro,
mediante previsão do art. 30 do CP.
1 Segundo o art. 173 do Código Penal alemão, o incesto é somente a cópula (os atos libidinosos não são
considerados incesto). As penas variam de 1 a 5 anos, sendo facultada a perda de direitos civis. Os descendentes são isentos de pena quando menores de 18 anos.
2 Há, inclusive, jurisprudência no TJRS em que o abusador foi absolvido por falta de provas, além de não ser
o delito tipificado no Código Penal. AC 70006847123
ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. CONDUTA DEMONSTRADA QUE NÃO SE INSERE NO TIPO. O INCESTO NÃO CONSTITUI CRIME, AINDA QUE SEJA MORALMENTE REPROVÁVEL. Recurso defensivo provido. Recurso ministerial prejudicado (Sexta Câmara Criminal. Tribunal de Justiça do RS, Relator: João Batista Marques Tovo, Julgado em 16/09/2004)
Em outros atos libidinosos1, tanto homem como mulher podem ser
agentes abusadores e vítimas. Haverá atentado violento ao pudor sempre que
alguém constranger outrem, também sob violência ou grave ameaça, a praticar
ato libidinoso diverso da conjunção carnal. São os crimes sexuais considerados
hediondos, definidos no art. 1º da Lei nº 8.072 (Lei dos Crimes Hediondos), de 25
de julho de 1990.
A grande maioria dos crimes incestuosos são cometidos através de
atos libidinosos diversos da conjunção carnal. De acordo com DAMÁSIO DE
JESUS:
Ato libidinoso é o que visa ao prazer sexual. É todo aquele que serve de desafogo à concupiscência. É ato lascivo, voluptuoso, dirigido para a satisfação do instinto sexual. Para a caracterização do crime, porém, deve ser diverso da conjunção carnal, ou seja, diferente da cópula normal obtida mediante violência, que está presente no crime de estupro.
Desta forma, no exame médico-legal não há possibilidade para detectar
provas materiais do abuso sexual, posto que não há conjunção carnal. É a
palavra do agressor contra a da vítima. Somando-se a isto a dificuldade que têm
os adultos de dar credibilidade à palavra da criança, a maior parte dos casos
resulta em absolvição.
Sendo a vítima menor de 14 anos, alienada ou débil mental e quando
não pode, por qualquer outra causa oferecer resistência, independente de o ato
ter sido praticado sob violência ou grave ameaça, fica presumida a violência. A
comprovação da violência não é necessária, bastando a comprovação do ato.
Veja-se1:
Trata-se de violência presumida, ficta ou indutiva. O legislador presume a violência, tendo em vista as circunstâncias concretas dentro das quais a vítima não pode, validamente, dar seu consentimento. O consentimen-to é nulo.
O legislador entendeu, nos casos previsto no art. 224, alínea “a” do
Código Penal, que a vítima não possui condições de compreender e avaliar o ato
sexual e suas conseqüências, portanto, o consentimento não importa.
Veja-se o caso no qual o STF negou a extinção da punibilidade a J. A.
F. M.2, condenado a sete anos de reclusão pelo Tribunal de Justiça do Mato
Grosso, sob a acusação de estupro contra a sobrinha menor de 14 anos. O réu
estuprou a sobrinha dos nove aos doze anos de idade, quando a mesma resultou
grávida. Com isso, passou a conviver em “união estável” com a vítima, de acordo
com o que o agressor alegou.
No Recurso Extraordinário3 a defesa argumentou que a decisão do TJ
de MT contrariou o parágrafo 3º do art.226 da Constituição Federal, além da
aplicação da cláusula de extinção da punibilidade prevista no art.107, VII, do
Código Penal. O ministro GILMAR MENDES disse não haver motivo para se
extinguir a punibilidade do condenado, tendo em vista a gravidade da conduta de
prática de estupro, com violência presumida contra a sobrinha. Além disso,
enfatizou que apesar de o parágrafo 3º do art 226 da Constituição Federal
1 DAMÁSIO DE JESUS, Direito Penal, Volume I. 2 Página de notícias do
site do Supremo Tribunal Federal (www.stf.gov.br/notícias/imprensa/últimas)
destacar que é reconhecida a união estável entre homem e mulher como entidade
familiar, o parágrafo 8º do mesmo artigo assegura assistência à família, criando o
Estado mecanismos para coibir qualquer prática de violência no âmbito familiar.
Afirmou que “não se pode comparar a situação dos autos a uma união estável,
nem muito menos se reconhecer um casamento para os fins de incidência do
Código Penal”.
Fica claro, no caso acima mencionado, que não se pode ver
consentimento válido em uma pessoa menor de 14 anos que mantenha relações
sexuais com um adulto pois, nas palavras de MAGALHÃES NORONHA1,
“falta-lhe madureza fisiológica e capacidade psicoética para ter alcance, para estimar
com precisão o ato violador dos costumes”.
Ora, no caso em que um pai que abusa sexualmente da filha de 10
anos, independentemente dos conhecimentos que a vítima possa ter sobre sexo,
não se pode dizer que tenha havido aceitação, vontade ou até mesmo
entendimento por parte da vítima, pois o agressor utiliza-se do poder que tem
sobre ela para ameaçá-la e convencê-la a praticar com ele atos de cunho sexual.
A presunção de violência é absoluta. As conseqüências para a vítima advindas de
uma violência sexual, seja ela real ou presumida, traumatizam, constrangem e
podem até destruir uma vida ainda em formação, especialmente quando cometida
exatamente no lugar que, teoricamente, deveria ter toda a proteção e amparo de
que necessita.
Caracterizado o incesto, pode haver concurso de crimes entre o delito
maus-tratos2, segundo o qual o agente expõe a perigo de vida ou saúde pessoa
sob sua autoridade, guarda ou vigilância, abusando dos meios de correção ou
disciplina.
A ação penal, nos crimes contra os costumes, é privada, sendo
procedida mediante queixa. Entretanto, segundo o art. 225, inciso II, Código
Penal, assim como o art. 227 do Estatuto da Criança e do Adolescente,
procedem-se mediante ação penal pública incondicionada3 os crimes sexuais
cometidos mediante abuso do pátrio poder, na qualidade de tutor ou curador.
Também a ação é pública incondicionada quando o pai, padrasto, tutor ou curador
tiver contribuído para o abuso sexual realizado por outro homem. Essa medida
visa à maior proteção da vítima, posto que o representante legal é o próprio autor
do crime.
Após o inquérito policial (persecutio criminis), deve o Ministério Público
fazer a denúncia do agressor, trazendo o caso ao conhecimento do Poder
Judiciário.
No Código Penal, a teor do art. 61, II, “e”, a prática de crime contra
ascendente, descendente, irmão ou cônjuge é sempre considerada circunstância
agravante, sendo a pena aumentada. A alínea “f” do mesmo artigo prevê maior
severidade no trato do crime quando é praticado “com abuso de autoridade ou
prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade”.
1 1994, Volume III, pág 223 2 Art.136, CP.
3 “O crime de estupro, quando praticado pelo pai contra a filha, é de ação pública incondicionada,
Temos ainda, a teor do art. 226, inciso II, do Código Penal, em caso de
crime contra os costumes, a pena é aumentada da metade1 caso o agente tenha
cometido o crime na qualidade de ascendente, padrasto ou madrasta, tio, irmão,
cônjuge, companheiro, tutor, curador, preceptor ou empregador da vítima ou por
qualquer outro título que tenha autoridade sobre ela2.
Essa hipótese viola os princípios morais-familiares, além da ocorrência
do abuso de autoridade exercida sobre a vítima. Refere-se a norma a agentes
que tenham uma relação de proximidade familiar (ou de ascendência moral).
Feita a denúncia pelo Ministério Público, o primeiro passo é a perda do
poder familiar3, sendo este procedimento feito em umas das Varas de Família,
caso o agressor seja o pai, a mãe ou avô, ou quem detenha o poder familiar. Esta
medida visa à proteção da vítima, pois, obviamente, é necessário que o agressor
seja afastado do convívio da criança ou adolescente, perdendo qualquer poder
que possa exercer sobre a vítima.
A mãe, caso seja cúmplice do abusador, também pode ser penalmente
responsabilizada por meio da sentença judicial, sendo sujeita às mesmas penas
que o pai agressor.
1“As agravantes genéricas do art. 61, II, g e h, do CP (criem cometido com abuso de poder e contra criança)
estão compreendidas no art. 226, II, que já prevê, nos crimes contra os costumes, a causa especial de aumento da pena quando cometidos por ascendente, pai adotivo, padrasto, irmão, tutor, curador, preceptor ou empregador da vítima ou por qualquer pessoa que sobre ela tenha autoridade” (TJSP – AC – Rel. Jarás Mazzoni – RT 652/276).
2 Lei nº 11.106/2005 3 AC 700082831722
Uma questão preocupante é que a pretensão punitiva nos crimes
sexuais prescreve em 16 anos, isto é, decorrido esse tempo, caso não haja
denúncia promovida pelo Ministério Público, há a perda do direito de punir do
Estado pelo decurso do tempo. O que ocorre é que, em muitos casos, a vítima,
por medo, vergonha ou mesmo culpa, não consegue contar para ninguém o
abuso sofrido, guardando esse segredo dentro de sua própria alma.
Temos um caso concreto no qual a vítima foi assediada sexualmente
pelo tio e pelo irmão quando tinha apenas 5 anos de idade. Conta a vítima que
não conseguia reagir aos abusos, “pois não tinha capacidade de discernir”. Já
adulta, foi estuprada pelos mesmos abusadores da infância. Nunca contou para
ninguém, sentia culpa e vergonha. Devido ao trauma sofrido, a vítima “esqueceu”
a violência, vindo esta lembrança a tona quando, tempo depois, participou de um
seminário sobre crescimento pessoal. A partir daí, houve um longo período de
terapias para enfrentar a depressão e a síndrome do pânico advindas de suas
aterrorizantes lembranças. Superado o trauma, tentou fazer queixa contra seus
agressores. Descobriu que o crime tinha prescrito, era tarde demais. A acusação
não fora aceita, mas a dor durará para sempre, não prescreve.
Assim, é de grande valia a Proposta de Emenda à Constituição nº
276/2004 (anexo A), que dá nova redação ao inciso XLII do art. 5º da Carta
Constitucional, estabelecendo que crimes de abuso exploração sexual de
Essa imprescritibilidade é necessária nos casos de estupro e atentado
violento ao pudor incestuosos principalmente quando a vítima é criança, pois
quando violentada, apresenta sentimentos confusos, sente-se desprotegida,
desamparada, tem medo, culpa e vergonha, não consegue externar todo esse
sofrimento. A mãe, que deveria proteger e amparar, muitas vezes não o faz. É
necessário garantir para estas crianças que, futuramente, possam, ainda, ter a
chance de punir seus agressores. De acordo com pesquisas da Associação
Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e Adolescência (ABRAPIA), em
apenas 10,47% dos casos de abuso e exploração sexual de crianças e
adolescentes houve processo judicial instaurado.
Além da responsabilização criminal do agressor e da mãe, caso tenha
sido cúmplice do delito, devem ser aplicadas as medidas constantes no Estatuto
da Criança e do Adolescente, com o intuito de tratar, orientar e readequar a
família como um todo.
Na sociedade em que vivemos, não é possível ter um Código Penal
datado de 1940 como referência. Alguns até utilizam-se da mudança dos tempos
para descaracterizar o instituto da presunção da violência, argumentando que a
vítima tem discernimento suficiente para entender o que é um ato sexual, com
biótipo incompatível com sua idade, levando o agente a erro ou mesmo tenha tido
intenção de seduzir o adulto. Por isso é tão necessário o tratamento do qual
devem ser somados conhecimentos em Direito, Psicologia, Medicina e outras
áreas, com a maior participação possível de uma equipe multidisciplinar para que
a evolução cultural da sociedade enseja a criação de novos tipos penais que
acompanhem as mudanças de paradigmas, sendo outros desconsiderados.
A responsabilização e tratamento referentes à prática de crimes sexuais
domésticos devem ser rediscutidos, através da tipificação penal do crime de
incesto1, assim como a criação de políticas voltadas ao enfrentamento da
questão, face ao aumento das notificações de violência sexual doméstica.