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A Municipalização das Medidas Sócio-educativas em Meio Aberto

A atuação dos movimentos populares para o restabelecimento da democracia brasileira teve eco nas conquistas da Constituição de 1988 e, em particular, na aprovação do ECA em 1990. A Carta Magna mostra-se como um grande avanço para as políticas sociais no sentido de mobilização da sociedade civil, bem como numa facilitação no processo de inserção de políticas públicas.

É no município que o cidadão nasce, vive e constrói a sua história. É no município que o cidadão se relaciona, participa. É lá que ele tem nome, rosto, endereço. É é no município, portanto, que ultrapassamos a fria lógica dos números para encontrar cada criança, cada jovem, cada cidadão para restituir-lhes a dignidade de seus direitos (AMENCAR, 1996, p. 62).

A municipalização da oferta de programas sociais, seguida da cessão de verbas para financiá-la e de liberdade para administrá-la, foi então assinalada como o percurso para a edificação de um novo arquétipo de afinidade entre Estado e Sociedade Civil. A retomada de um estado de direito propiciou a construção de um novo paradigma de organização político- institucional, no qual o município é reafirmado enquanto espaço privilegiado para a democracia através da participação política e do exercício da cidadania.

Para Raichelis (1998), este movimento descentralizador foi e tem sido defendido como instrumento de correção das desigualdades sociais, através da busca da universalização do acesso a bens e serviços e da criação de canais de participação e de exercício do controle pela sociedade.

A solidificação dessas propostas tem implicado um movimento complexo de redefinição do papel do Estado e de alteração do padrão de suas relações com a sociedade, envolvendo partilha de poder, seja no âmbito da transferência de competências da esfera federal para estados e municípios, seja no deslocamento de parcelas de poder de decisão do Estado para a sociedade.

Os estados federados não podem se eximir da coordenação dos programas, projetos e ações com vista a políticas estaduais mais amplas, já que os municípios, isoladamente, não possuem demanda suficiente e condições necessárias ao desenvolvimento desta concepção. O ECA, em vigor desde 1990, em consenso com a CF, também redefiniu suas políticas de atendimento, seguindo o princípio da municipalização das políticas, cabendo

a normatização à esfera federal e aos municípios e estados, a sua execução. Tanto o ECA como a CF preconizam a participação da sociedade civil na formulação, execução e fiscalização das políticas de atendimento à infância e juventude, através dos conselhos nacional, estaduais e municipais.

A municipalização do atendimento ao adolescente em conflito com a lei em meio aberto encontra-se previsto no art. 88 do ECA (BRASIL, 2002), recebendo eficácia com o processo de construção do Sistema Nacional de Atendimento Sócio-educativo -SINASE, que envolveu setores do governo e da sociedade nos últimos anos. As novas diretrizes estabelecidas pelo documento prever a primazia da medida sócio-educativa em meio aberto (liberdade assistida e prestação de serviço a comunidade), sendo este comedimento exercido pelos municípios com o suporte financeiro e técnico dos estados e da União.

O governo federal, objetivando organizar o processo de transformação da concepção do tratamento dado à população infanto juvenil que comete atos infracionais, organizou, em 2004, e regulamentou, no ano de 2006, o SINASE. O sistema prioriza a municipalização dos programas de meio aberto, mediante a articulação de políticas intersetoriais em nível local, e a constituição de redes de apoio nas comunidades, e, por outro lado, a regionalização dos programas de privação de liberdade a fim de garantir o direito à convivência familiar e comunitária dos adolescentes internos, bem como as especificidades culturais.

O SINASE é o conjunto ordenado de princípios, regras e critérios, de caráter jurídico, político, pedagógico, financeiro e administrativo, que envolve desde o processo de apuração do ato infracional até a execução da medida sócio-educativa. Esse sistema nacional inclui os sistemas estaduais, distrital e municipais, bem como todas as políticas, planos, e programas específicos de atenção a esse público. O preceito constitui-se em uma política pública destinada à inclusão do adolescente em conflito com a lei que se correlaciona e demanda iniciativas dos diferentes campos das políticas públicas e sociais. Essa política tem interfaces com diferentes sistemas e políticas e exige atuação diferenciada, que coadune responsabilização, com a necessária limitação de direitos determinada por lei e aplicada por sentença, e satisfação de direitos.

O sistema, ao mesmo tempo em que aponta uma positiva articulação de setores, parte de concepções fundamentadas a partir de direitos humanos universais e, por isso, abre um espaço para se pensar em políticas públicas alternativas que conectem tais concepções às particularidades e à diversidade cultural instituída em cada cidade e que pode se aproximar dos diferentes grupos de adolescentes considerando a instituição de territórios.

O sistema propõe diretrizes para uma política pública voltada para a implementação das medidas sócio-educativas previstas no ECA. Estabelece um conjunto de regras e critérios de caráter jurídico, político, pedagógico, financeiro e administrativo, que devem ser seguidos durante o processo de apuração do ato infracional cometido por adolescentes até a execução de medida sócio-educativa.

Ao município cabe coordenar e regular seu próprio sistema, elaborar o Plano Municipal de Atendimento Sócio-educativo, apoiar a fiscalização dos Conselhos Tutelares, além de criar, manter e desenvolver programas de execução das medidas em meio aberto.

A descentralização exige o amadurecimento do poder municipal, quando se considera o município como espaço privilegiado para o reconhecimento das suas potencialidades e enfrentamento dos seus próprios problemas e capaz de assumir, com determinação, a tarefa de investir na dignidade da população excluída, principalmente de crianças e adolescentes.

Conforme Raichelis (1998), o processo de descentralização deve desencadear, assim, uma mudança de natureza das relações entre sujeitos e estruturas, pressupondo a substituição de instâncias administrativas verticais e hierárquicas por relações horizontais e compartilhadas dentro do espaço institucional.

A municipalização das medidas sócio-educativas em meio aberto, direcionadas para adolescentes em conflito com a lei, já é priorizada em cidades brasileiras de médio e grande porte. Adolescentes que cometem atos de infração têm mais chances de serem atendidos por programas de liberdade assistida e prestação de serviços à comunidade.

Para Teixeira (2003), a municipalização é necessária, já que, sem a eficiente participação dos municípios, não há como, diante da amostra vigorante, conceber acolhimento apropriado ao adolescente. A compreensão pelos gestores municipais do modelo de atendimento legalmente proposto pelo ECA é necessária na medida em que irá propiciar subsídios técnicos e motivacionais aos aludidos sujeitos, e a cidadania infanto-juvenil passará a ser atendida com absoluta prioridade. Ainda que a municipalização seja concebida como estratégia fundamental na gestão e no controle das ações públicas, é preciso garantir, no entanto, que esse processo não fique só na mão dos executivos municipais, mas se firme na constituição de um poder local amplo que interaja com as lideranças e coletividades.

Para Seda (1998), as medidas em meio aberto, quando descentralizadas, longe da institucionalização, são mais eficientes na diminuição da violência e na inserção dos jovens na vida social do que as internações em estabelecimentos educacionais, em geral afastadas da comunidade de origem do jovem.

A gestão das medidas sócio-educativas em meio aberto está sendo municipalizada em cidades brasileiras com mais de 100 mil habitantes nas regiões sul e sudeste, e 50 mil habitantes nos municípios das regiões norte, nordeste e centro-oeste. Para Fábio Silvestre (2009), coordenador do SINASE, 301 cidades em todo o Brasil serão beneficiadas ainda este ano com o programa de municipalização, e, até 2010, todas as cidades com mais de 50 mil habitantes serão responsáveis pela aplicação das medidas sócio-educativas em meio aberto.

Conforme Seda (1998), a grande vantagem na municipalização é a adequação da política pública à realidade local. A relação Estado-Cidadão, quando mantida no âmbito municipal, é mais transparente e permeável, ensejando uma mútua cooperação para a solução dos problemas.

A municipalização das medidas sócio-educativas previstas no ECA deve ser entendida no seu caráter geográfico, observando a localização do atendimento ao adolescente nos limites do município a que se destina. Não deve ser concebida como prefeiturização do atendimento, ou seja, levar esse atendimento somente ao custeio do município, até porque o próprio ECA estabelece que o atendimento à criança e ao adolescente deve ser feito dentro de uma ação coordenada entre as entidades de poder público, entidades governamentais e não- governamentais.

A municipalização das medidas sócio-educativas em meio aberto, voltada para jovens em conflito com a lei, já é priorizada nas grandes cidades brasileiras. Adolescentes que cometem atos infracionais de natureza leve têm mais chances de serem atendidos por programas de Liberdade Assistida - medida mais eficiente na diminuição da violência e na reinserção dos jovens na sociedade. (Coordenadora).

Neste aspecto, percebemos que a municipalização das medidas sócio-educativas em meio aberto beneficia expressivamente seu implemento e execução, tanto no que se refere à edificação da concepção de vida do adolescente, que não perderá os liames locais, quanto ao estímulo à responsabilização e participação da comunidade no processo sócio-educativo. No entanto, se o procedimento de municipalização traz sensíveis melhoramentos, implica também em importantes encargos por quem o executa.