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3 AS RELAÇÕES RACIAIS NO BRASIL

4 OS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE E O SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS

4.1 OS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE NO ORDENAMENTO NORMATIVO BRASILEIRO

4.1.1.2 A não-discriminação na Constituição da República Federativa do Brasil de

A Constituição da República Federativa do Brasil promulgada em 5 de outubro de 1988 é representativa da garantia dos direitos fundamentais inerentes a todas as pessoas que estão em seu território de vigência. A atual Carta Magna reconhece no preâmbulo o seu compromisso em instituir no país um Estado Democrático de Direito comprometido em ―[...] assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social [...]‖. (BRASIL, 1988)

A Constituição Federal, também conhecida como a Constituição Cidadã, incorporou no seu rol de direitos a preocupação em normatizar

direitos sociais e políticos à população, estando em plena consonância com as normativas internacionais de direitos humanos. Cabe enfatizar que seu processo de elaboração via Assembléia Nacional Constituinte durante o ano de 1987 contou com a participação da sociedade civil e dos vários movimentos sociais, incluindo o Movimento Negro, o Movimento Criança Constituinte, o Movimento Feminista, entre outros, que na singularidade de suas lutas tentaram por fim ao autoritarismo que permeou as duas últimas constituições, a de 1967 e 1969.

De acordo com Wolkmer essas duas cartas políticas anteriores

[...] representaram sempre um Constitucionalismo de base não-democrática (no sentido popular), sem a plenitude da participação do povo, utilizado muito mais como instrumental retórico oficializante de uma legalidade individualista, formalista e programática. (2008, p. 142)

A Constituição brasileira foi responsável pela redemocratização e apresentou muitos avanços – em termos políticos e na perspectiva de direitos –, na vida social do país. Conseguiu consagrar novas formas de democracia direta, com atuação/ participação popular, garantiu autonomia aos municípios e reconheceu novos sujeitos de direitos.

Mesmo com alguns avanços a Constituição Federal de 1988 vive momentos de crise, suscitados principalmente na década de 1990 ―[...] quando forças conservadoras da elite nacional – apoiada na onda neoliberal de prevalência absoluta do mercado e nas mudanças mundiais configuradas pela globalização da economia – desencadearam ações privatistas/reformistas [...]‖ (WOLKMER, 2008, p. 146)enfraquecendo a seara dos direitos de cidadania.

Wolkmer assinala que

[...] a falta de tradição verdadeiramente democrática nos liames do que se convencionou chamar de ‗liberalismo burguês‘ fez com que inexistisse – na evolução das instituições jurídicas do país – a consolidação e a constância de um Constitucionalismo de base popular-burguesa, pois, tanto o político quanto o social foram sempre construções momentâneas e inacabadas de facções societárias expressas nas oligarquias agrárias. [...] o Constitucionalismo brasileiro

nunca deixou de ser, na trajetória de nosso republicanismo, o contínuo produto da ‗conciliação-compromisso‘ entre o patrimonialismo autoritário modernizante e o liberalismo burguês conservador. (2008, p. 148)

A Teoria Neoconstitucional, ou Pós-positivista que surgiu a partir da Constituição de Weimar na Alemanha em 1919, adequou o campo de incidência das normas (aí compreendidas entre regras e princípios) às realidades sociais. E nesse caso, o direito se desnuda da sua antiga roupagem jurídica liberal para atender as reais necessidades da sociedade mediante a criação de modernos mecanismos jurídicos destinados a satisfação real desses interesses.

Para Veronese e Silva (1998, p. 31), a promulgação da Constituição Federal de 1988 propiciou a criação de uma nova sociedade política, assim como alargou o âmbito da proteção dos direitos sociais, tais como o direito a educação, a cultura, ao trabalho, ao lazer, a assistência social, a defesa do Meio Ambiente, o direito da família, da criança e do adolescente, o acesso a justiça, e outros.

A história social de formação do Estado brasileiro, desde o período colonial é reveladora das profundas desigualdades sociais vivenciadas entre o seu povo. De outro modo o direito sempre esteve a serviço (quem sabe ainda esteja), e sempre foi elaborado por uma elite social burguesa sedenta de poder. A produção normativa teve como uma de suas funções o exercício do controle social das camadas empobrecidas da população, escamoteada por interesses políticos e econômicos.

Por isso a atual Carta Constitucional mesmo revestida desses velhos interesses, ainda assim, representa um progresso enquanto instrumento normativo para a garantia de direitos, além de criar mecanismos que auxiliem na transformação da sociedade atual. E assim, a Constituição Federal de 1988, com todo seu viés democrático inaugura um novo tempo no direito e reconhece como princípio basilar a Dignidade da Pessoa Humana, além de fazer prevalecer o interesse da coletividade sobre o individual.

A Constituição Federal de 1988 assegura a igualdade de todos perante a lei, mas não se deve interpretar este dispositivo normativo apenas no seu aspecto formal, para casos em que há verdadeira desigualdade material, aplica-se à igualdade material.

No campo das relações raciais a Constituição Federal de 1988 trouxe alguns artigos importantes e contribuidores da luta anti-racista, assegurando os direitos e garantias individuais e igualitárias a todas as pessoas sem distinção de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (artigo 1º, IV e art. 5º caput da Constituição Federal de 1988). O combate a todas as formas de discriminações incluindo, discriminação racial é um dos objetivos fundamentais da República conforme a redação do art. 3º:

Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional;

III – erradicar a pobreza e marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. (grifou-se)

Cabe, portanto, ao Estado o dever de assegurar os direitos e garantias individuais e igualitárias a todas as pessoas sem distinção. É vedada qualquer manifestação discriminatória ou racista fundada na cor da pele e na raça. Essa foi uma conquista importante dos movimentos negros, eis que denunciaram as discrepâncias sociais existentes entre os diversos grupos sociais que compõem a sociedade brasileira.

O artigo 5º da Constituição Federal refere-se as garantias individuais inerentes a pessoa humana, além de conferir a igualdade de todas as pessoas perante a lei:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...] (grifou-se)

Cabe reforçar que numa sociedade desigual como é a sociedade brasileira o que se pretende é alcançar a igualdade material e não meramente formal. Numa sociedade pluriétnica e multicultural o Direito

tem o dever de amparar as adversidades jurídicas e contribuir para a resolução efetiva das distorções sociais existentes.

Por isso, o investimento em políticas de ações afirmativas para os grupos sociais negros deve ter o pleno respaldo da norma constitucional, pois serve como medida para alcançar a igualdade material dos mesmos na sociedade. De acordo com Gomes ―as ações afirmativas se definem como políticas públicas (e privadas) voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material à neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física‖. (2003, p. 21)

O surgimento de propostas de ação afirmativa assenta-se em uma crítica ao ideal de igualdade de direitos como instrumento eficaz para a promoção da igualdade. O reconhecimento de que a igualdade formal não garante aos que são socialmente desfavorecidos o acesso às mesmas oportunidades que têm aqueles que são socialmente privilegiados promoveu um esforço de ampliação não apenas do conteúdo jurídico e moral da idéia de igualdade, mas das próprias possibilidades jurídicas de concretizá-las. (JACCOUD; BEGHIN, 2002, p. 45)

O investimento em políticas de ações afirmativas em diversas áreas: como saúde, educação, cultura, esporte, lazer, e outras é fundamental para que se oportunize aos negros uma melhora na sua condição de vida. A situação social dos negros hoje é decorrente ainda do preconceito e da discriminação que sofrem e não apenas reflexo da hierarquização das classes sociais.

A naturalização da desigualdade, por sua vez, engendra, no seio da sociedade brasileira, resistências teóricas, ideológicas e políticas para identificar o combate à desigualdade como prioridade das políticas públicas. A desigualdade racial, em particular, é desconsiderada ou ocultada pelo confortável manto do silêncio. Silêncio enraizado no senso comum de uma sociedade convencida, talvez, da pretensa cordialidade nacional e do mito da ―democracia racial‖. Silêncio que oculta a enorme desigualdade racial a

que estão submetidos os brasileiros. Nega-se, assim, no cotidiano, a desigualdade e o racismo. (HENRIQUES, 2002, p. 14)

O investimento em ações afirmativas permite que haja verdadeira valorização da identidade e da cultura afro-brasileira, a partir do momento em que o negro se sinta valorizado enquanto tal, para que ao ascender socialmente não precise ―embraquecer‖. As ações afirmativas são imprescindíveis porque atuam diretamente como instrumento na luta anti-racista no Brasil.

A Constituição Federal de 1988, portanto, é representativa da conquista de direitos e garantias fundamentais a toda população. Elege novos sujeitos direitos, como crianças e adolescentes (artigo 227), que antes da edição desse importante instrumento normativo eram considerados meros objetos a mercê da tutela estatal. Para esses novos sujeitos de direitos, a Constituição Federal de 1988 rompe de vez com o direito menorista e abre para essa parcela vulnerável da população uma importante conquista histórica, qual seja, o reconhecimento de que crianças e adolescentes estão em fase especial de desenvolvimento e que precisam de uma proteção conjunta, que impõe responsabilidades compartilhadas entre a família, a sociedade e o Estado.

E é essa responsabilidade compartilhada, cabe frisar, que culminará na proposta sistemática de proteção a esses novos sujeitos a partir da aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990. A Constituição Federal de 1988 abriu caminhos rumo a esse novo olhar que se deve ter para a infância e adolescência nesse país. Um novo olhar de zelo, de carinho, de atenção e principalmente de proteção aos seus direitos fundamentais.

Assim, no que cabe neste estudo, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 consubstanciou-se num importante instrumento de luta em favor de uma sociedade mais justa, mais igualitária e mais democrática. O Estado brasileiro que intitula-se como ―democrático‖ e de ―direito‖ tem a responsabilidade de verdadeiramente promover justiça social. E nesse sentido, as crianças e adolescentes pertencentes a raça negra também tem amparo constitucional para a promoção e concretização dos seus direitos.

A Constituição Federal de 1988 é também um importante instrumento normativo, eis que é hierarquicamente superior as demais legislações, compromete-se com a luta anti-racista, impondo em atenção aos seus princípios basilares – da dignidade da pessoa humana, da

equidade e da justiça social – o investimento em políticas públicas que dêem conta de atender a população marginalizada nesse país, o que engloba diretamente grande parcela da população negra e mais especificamente crianças e adolescentes negros.

4.1.1.3 A não-discriminação no Estatuto da Criança e do