• Nenhum resultado encontrado

3 AS RELAÇÕES RACIAIS NO BRASIL

4 OS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE E O SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS

4.1 OS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE NO ORDENAMENTO NORMATIVO BRASILEIRO

4.1.1.3 A não-discriminação no Estatuto da Criança e do Adolescente

O Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8.069 de 13 de julho de 1990 consubstancia-se num moderno instrumento jurídico- político de proteção e promoção aos direitos da infância e adolescência no Brasil. O Estatuto da Criança e do Adolescente surgiu no ordenamento jurídico, principalmente, pela necessidade de regulamentar o dispositivo 227 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e para contemplar numa lei específica a doutrina da proteção integral.

Portando, o Direito da Criança e do Adolescente tem no Estatuto a completa formatação jurídico-protetiva para a infância brasileira. Rompe-se, pelo menos em âmbito formal, com a velha estrutura assistencialista que coisificava a infância e a enquadrava na situação irregular sob o rótulo da menoridade.

E nesse sentido, o Estatuto não pode ser considerado apenas como uma mera evolução legislativa dos Códigos de Menores anteriores, de 1927 e 1979, justamente porque traz uma nova proposta metodológica, jurídico e política para a infância no país. É através do Estatuto da Criança e do Adolescente que pela primeira vez na história cria-se para esse público específico um conjunto de dispositivos legais cuja finalidade seja a promoção e efetivação dos seus direitos fundamentais.

Quando se afirma que o Estatuto da Criança e do Adolescente rompe de vez com o direito menorista, é no sentindo de compreender que ele igualmente rompe com a lógica da situação irregular e da menoridade que permeou o contexto sócio-jurídico da infância durante quase todo o século XX. E pela legislação menorista, como já foi demonstrado nos capítulos anteriores não é difícil perceber quem eram os ―menores‖ clientes ou vítimas que sofriam as coerções jurídico- assistenciais no país. Grande parcela desses ―menores‖ que o sistema menorista capturava sob o manto de uma legalidade assistencialista compreendiam crianças e adolescentes pertencentes a raça negra.

Salienta-se que o Estatuto da Criança e do Adolescente, ao contrário das legislações específicas para infância que vigeram durante o direito menorista não faz distinções em relação a criança ou ao adolescente que devem ter seus direitos protegidos. A proteção sistemática do Estatuto da Criança e do Adolescente contempla igualmente crianças e adolescentes sem distingui-las por raça, sexo, idade, etnia, religião, cultura.

No entanto, o Estatuto da Criança e do Adolescente que está prestes a completar vinte anos ainda não foi incorporado suficientemente na cultura jurídica desse país. A proposta sistemática de concretização de direitos prevista a partir do artigo 88 que trata da política de atendimento63 ainda não foi adequada às práticas sociais, reflexo de que ainda vive-se sob o ranço do menorismo. Na concepção de Faleiros (2009, p. 35) isso acontece atualmente porque

Na cultura e estratégias de poder predominantes, a questão da infância não se tem colocado na perspectiva de uma sociedade e de um Estado de direitos, mas na perspectiva do autoritarismo/ clientelismo, combinando benefícios com repressão, concessões limitadas, pessoais e arbitrárias, com disciplinamento, manutenção da ordem, ao sabor das correlações de forças sociais ao nível da sociedade e do governo. As polêmicas relativas às políticas para a infância demonstram esse conflito de visões e de estratégias, por exemplo, a que se refere à divergência entre os que privilegiam a punição e os que privilegiam o diálogo, a negociação, as medidas educativas.

É assim que, mesmo reconhecendo o avanço legislativo e percebendo que de certo modo a garantia de direitos fundamentais a esses sujeitos de direitos não se concretiza plenamente é importante reconhecer o caráter inovador (CUSTÓDIO; VERONESE, 2009, p. 109) proposto pelo Direito da Criança e do Adolescente. E, no qual o Estatuto da Criança e do Adolescente deve amplamente ou diga-se urgentemente fazer com que seus dispositivos normativos reflitam na realidade social

63 No item 3.3 desta pesquisa será feita uma abordagem mais completa sobre o sistema de

garantia de direitos e a política de atendimento a crianças e adolescentes conforme dispõe a Doutrina da Proteção Integral e conforme previsão normativa prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente.

para verdadeiramente contribuir para melhorar a vida de milhares de crianças e adolescentes que são diariamente afrontados diretamente nos seus direitos de cidadãos.

De acordo com Custódio e Veronese a superação do velho menorismo para o prisma da proteção integral disposta na proteção sistemática do Estatuto da Criança e do Adolescente somente será possível se houver um ―[...] desenlace libertário da criança das amarras institucionais que cultivavam as obrigações de obediência e submissão.‖ (2009, p. 109)

O Direito da Criança e do Adolescente, e mais especificamente sua lei especial consagrada no Estatuto da Criança e do Adolescente reveste-se de um instrumento jurídico-político universalizante, capaz de englobar no seu âmbito de proteção todas as crianças e adolescentes sem fazer distinção. E isso inclui, em termos de normatividade e investimento em políticas sociais que o Estado, a sociedade e a família devem promover juntos os direitos inerentes de todos aqueles pertencentes a uma categoria étnico-racial específica, no caso deste estudo, devem promover a proteção integral de crianças e adolescentes negros.

O art. 5º do Estatuto da Criança e do Adolescente prescreve que ―nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.‖ Entende-se ―[...] por discriminação tudo aquilo que distingue, separa, segrega.‖ (VERONESE, 1999b, p. 657)

O termo ―discriminação‖ conforme está disposto no art. 5º deve ser compreendido como as variadas formas de discriminação que crianças e adolescentes podem sofrer e que venham a prejudicar a garantia dos seus direitos fundamentais. O legislador ao fazer essa previsão normativa no artigo 5º do Estatuto o fez também visando a necessidade de amparar e resguardar os direitos dessa parcela vulnerável da população. E talvez, a importância deste dispositivo seja o reflexo do compromisso que o Estado brasileiro assumiu a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988 e da incorporação da Convenção Internacional dos Direitos da Criança e do Adolescente que contempla uma proteção especial e integral a esses sujeitos de direitos.

E além disso, impõem responsabilidades por ação ou omissão à todos aqueles, aí entendidos a família, a sociedade – organizada ou não –, e o Estado representado principalmente pelo sistema de justiça e pelos

atores responsáveis pelo atendimento de forma direta ou indireta que devem assegurar a plena efetivação dos direitos a crianças e adolescentes.

A partir do Estatuto, crianças e adolescentes brasileiros, sem distinção de raça, cor, classe social, passaram a ser reconhecidos como sujeitos de direitos,considerados em sua condição de pessoas em desenvolvimento e a quem se deve prioridade absoluta, seja na formulação das políticas públicas e destinação privilegiada de recursos das diversas instâncias político- administrativas do país. (2005, p. 7) (grifou-se)

O que vem corroborar com o pacto assumido pelo Brasil na esfera internacional de promover dentro do seu território a proteção integral a todas as crianças e adolescentes, evitando-se principalmente que se incorram nos erros cometidos no passado sob a vigência do menorismo. O Estatuto da Criança e do Adolescente passa então, a partir de sua aprovação, a ressignificar toda a política nacional em prol dos melhores interesses de crianças e adolescentes. Mesmo que efetivamente a mudança ainda esteja mais no âmbito formal do que essencialmente presente nas práticas sociais, entende-se que a própria ruptura com o modelo anterior já representa imenso avanço, ―[...] pois é na práxis política que a teoria se constrói.‖ (CUSTÓDIO, 2009, p. 29)

E assim, é possível constatar que o Estatuto da Criança e do Adolescente inaugura uma nova fase no Direito da Criança e do Adolescente e é um instrumento normativo comprometido em dar efetividade jurídica aos direitos fundamentais inerentes à infância e adolescência. É um instrumento jurídico inovador, como já foi exposto, uma vez que não se limita a ser um mero catálogo de normas. Mas, ao contrário, quando se dispôs a adotar a Doutrina da Proteção Integral contemplada no dispositivo 227 da Constituição Federal de 1988, o Estatuto trouxe avanços, pois criou uma sistematicidade própria e plenamente possível de ser colocada e/ou transformada em prática político-social.

A primeira grande mudança proposta pelo Estatuto da Criança e do Adolescente no que se refere às instituições obrigadas a promover e garantir a proteção integral de crianças e

adolescentes relaciona-se a descentralização, pois a família, a sociedade civil e o Estado são igualmente responsáveis em lhes assegurar o direito à vida e ao desenvolvimento das demais dimensões que envolvem sua personalidade, o que deve ser feito com absoluta prioridade. (SILVA, 2009, p. 44)

Como afirmou Bobbio ―o problema fundamental em relação aos direitos humanos, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê- los. Trata-se de um problema não filosófico, mas político.‖ (2004, p. 23) Aí está o Direito da Criança e do Adolescente posto em vigência no que confere a sua formalidade normativa, é necessário portanto pô-lo em prática e estender seu campo de proteção àquelas crianças e adolescentes que sempre tiveram sonegados os seus direitos, a exemplo do que aconteceu com muitas crianças e adolescentes negros excluídos pelo sistema menorista.

4.2 A PROTEÇÃO INTEGRAL PARA CRIANÇAS E

ADOLESCENTES: UMA ABORDAGEM PRINCIPIOLÓGICA Para a compreensão da sistematicidade jurídico-protetiva transdisciplinar proposta pelo Direito da Criança e do Adolescente é necessário estudar, no que compete a ciência jurídica, o campo normativo e a incidência dos princípios jurídicos como mecanismos que garantam efetividade aos direitos de crianças e adolescentes em consonância com a doutrina da proteção integral. É forçoso, portanto, que este estudo percorra os caminhos construídos pela nova teoria constitucional que se estabeleceu no Brasil a partir da promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

A teoria neoconstitucional ou pós-positivista como abordada adiante nasceu da crise do positivismo jurídico. A mera legalidade formal, em que a lei tinha posição central dentro do ordenameno jurídico – a lei genérica e abstrata – deixou de ser suficiente para atender as demandas sociais. Esse estudo abarca uma breve síntese do momento histórico em que emergiu o neoconstitucionalismo, bem como, a operatividade dos princípios dentro do ordenamento jurídico.

Em seguida abordar-se-á de forma sucinta os princípios jurídicos aplicáveis ao Direito da Criança e do Adolescente e sua importância normativa para a concretização dos direitos à infância e adolescência.