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3 AS RELAÇÕES RACIAIS NO BRASIL

3.3 MOVIMENTOS SOCIAIS NEGROS: UMA TRAJETÓRIA NA LUTA ANTI-RACISTA

3.3.3 O Movimento Negro Unificado

A partir do golpe de Estado em 1964 viveu-se no país sobre intensa pressão do regime ditatorial. A mobilização dos vários movimentos sociais, incluindo os movimentos sociais negros, foi intensificada no cenário brasileiro no final da década de 1970, que reivindicavam entre suas lutas particulares a redemocratização45ao país e a promulgação de uma Constituição de base democrática.

Assim, no final da década de 1970 e início dos anos 1980 marcaram o momento de abertura política vivenciada no país, o que permitiu que as lideranças negras se reorganizassem politicamente e rediscutissem novas bases para uma luta anti-racista no país. A criação do Movimento Negro Unificado (MNU) em 18 de junho de 1978 ―[...] pôs na ordem do dia as desigualdades e as discriminações raciais vigentes no Brasil [...]‖ (GUIMARÃES, 2008, p. 62), denunciando-as para o resto do mundo, tendo em vista a visibilidade internacional que conquistou o Movimento Negro Unificado.

O Movimento Negro Unificado foi fundado em bases ideológicas bem diferentes dos antigos movimentos sociais. Segundo Guimarães o MNU,

Politicamente, alinha-se à esquerda revolucionária; ideologicamente, assume, pela primeira vez no país, um racialismo radical. Suas influências mais evidentes e reconhecidas são: primeiro, a crítica de Florestan Fernandes à ordem racial de origem escravocrata, que a burguesia brasileira mantivera intacta e que transformara a democracia racial em mito; segundo, o

45Bonavides (2000, p. 174) enfatiza que ―As comoções políticas de raiz social fizeram-na

desembocar, por obra da corrupção do regime presidencial, na segunda ditadura do século, a mais longa e perniciosa por haver mantido aberto um Congresso fantoche, debaixo de uma Constituição de fachada outorgada pelo sistema autoritário, que ao mesmo tempo censurava a imprensa e reprimia a formação, pelo debate livre, de novas lideranças, sacrificando assim toda uma geração. Tal aconteceu em 1964 quando o país atravessou durante duas décadas a mais sombria ditadura militar de sua história‖.

movimento dos negros americanos pelos direitos civis e o desenvolvimento de um nacionalismo negro nos Estados Unidos; terceiro, a luta de libertação dos povos da África meridional (Moçambique, Angola, Rodésia, África do Sul). Mas, a esses se deve juntar pelo menos mais três: o movimento das mulheres, no plano internacional, que possibilita a militância de mulheres negras; o novo sindicalismo brasileiro que, apoiados nos chãos-de-fábrica, retira as lideranças sindicais da órbita dos partidos políticos tradicionais; e os novos movimentos sociais urbanos, que mantêm a sociedade civil mobilizada, durante toda a década de 1980. (2002, p. 90)

Assim, pode-se dizer que o Movimento Negro Unificado ressignificou a luta anti-racista no Brasil, na medida em que combate os ideais integracionistas e assimilacionistas ancorados na concepção de ―democracia racial‖, para pela primeira vez, agregar aos ideais do movimento uma ideologia racializante, no sentido de resgatar a cultura africana e afro-brasileira. Passa-se a partir de então a perceber e valorizar o multiculturalismo na sociedade brasileira, na qual a luta anti- racista deveria se apoiar.

O Movimento Negro Unificado, se estendeu por vários estados brasileiros, e portanto, ao contrário dos movimentos sociais negros anteriores, é considerado um movimento esquerdista e desafiador da ordem política e social estabelecida no país até então. Por isso, o movimento sofreu diversas resistências, tanto na camada dominante como entre grande parte da população negra que não se sentia representada por esse movimento. Hofbauer (2006, p. 378) atesta que um dos fatores determinantes pela resistência ao movimento esteve relacionado com o ideário de branqueamento que em consonância com o mito da democracia racial formaram correntes ideológicas hegemônicas, que não reconheciam a discriminação racial, e portanto, tais ideologias foram impregnadas como verdadeiras no imaginário social.

O Movimento Negro Unificado, junto com outras entidades negras, a exemplo do Centro de Cultura e Arte Negra (CECAN), Federação das Entidades Afro-brasileiras do Estado de São Paulo (FEABESP) e outros jornais promovidos por lideranças negras foram responsáveis pela denúncia contra o forte racismo, o preconceito e a

discriminação racial sofrida pelos grupos sociais negros no Brasil. Junto ao Movimento Negro Unificado, essas entidades e outras se juntaram num processo de intensa mobilização social contra os ideais até então considerados hegemônicos. Para a divulgação de seus ideais o Movimento Negro Unificado também editou revistas e jornais, como a Revista do MNU, Nêgo e o Jornal Nacional do MNU, que foram os veículos de comunicação mais expressivos desse movimento. (HOFBAUER, 2006, p. 382)

As pesquisas quantitativas e os novos estudos acadêmicos foram fundamentais para o diagnóstico da exclusão social dos grupos sociais negros no país. A discriminação racial, longe de ser apenas uma herança cultural do regime escravocrata como acreditavam Florestan Fernandes de Roger Bastide, é na atual sociedade de classes, verdadeiro empecilho para a mobilidade social dos grupos negros, de tal modo, que a discriminação racial sobrevive nessa sociedade ancorada por novos preceitos ideológicos.

Não nega-se a escravidão como ponto de partida determinante para o estudo das relações de discriminação racial na sociedade, mas não é mais possível afirmar que a superação da discriminação racial seja alcançada simplesmente quando se superar os aspectos históricos- culturais embutidos nesse conceito. Reafirma-se a urgência em esclarecer que, mesmo como herança do antigo regime, a discriminação racial assume na sociedade atual, novas funções e significados.

E esse é um dos argumentos de Hasenbalg, quando a partir de pesquisas quantitativas verifica a posição social do negro na pirâmide econômica e percebe o quanto o simples crescimento da economia é incapaz de conceder a mobilidade vertical aos negros. De acordo com o autor,

Para atingir uma situação de completa igualdade racial é necessário que os dois grupos raciais estejam igualmente distribuídos ao longo da hierarquia sócio-econômica. Numa situação de recursos constantes, isto é, quando as posições na estrutura de classes – e seus correlatos nas esferas de estratificação e distribuição – permanecem as mesmas, ao movimento ascendente de pessoas de cor, necessário para chegar à igualdade racial perfeita, corresponderia um movimento equivalente ao descenso de brancos. Quando os recursos crescem, ou seja, as posições aumentam e a estrutura das mesmas se modifica, o

movimento ascendente de pessoas de cor não precisa ter como contrapartida o descenso equivalente de brancos, aproximando-se a situação do que os economistas gostam de chamar de ótimo de Pareto. A diferença entre as duas situações – recursos constantes versus recursos em expansão – pode ser vista como o dado fundamental para as estratégias alternativas de demanda pela diminuição das desigualdades raciais. (HASENBALG, 1988, p. 140)

Por isso, na pauta de luta do Movimento Negro Unificado esteve realmente implícito o desejo de transformar a sociedade brasileira numa verdadeira democracia racial. Essa militância tem como principais objetivos denunciar que as desigualdades sociais entre negros e brancos no Brasil não eram apenas o reflexo da disputa de classes (LIMA, 2005, p. 42), mas colocou o preconceito e a discriminação racial como fatores determinantes da situação marginal do negro.

Para a sociologia, o preconceito racial decorre de um modo específico de construir as fronteiras de um grupo social a partir de marcas que são entendidas como raciais (o pertencimento a tal grupo deriva de origem biológica comum, transmitida hereditariamente, e demarcada por características fisionômicas, físicas, cognitivas e morais). Trata-se de explicar, portanto, a construção e reprodução de certos grupos sociais, referidos como ‗raças‘, ‗cores‘, ‗imigrantes‘ ou ‗etnias‘, que utilizam tais marcadores para identificar quem pertence ou não a um grupo. (GUIMARÃES, 2008, p. 47)

Importante acrescentar que o dia 20 de novembro – data da morte de Zumbi – foi considerada a data nacional da consciência negra pelo Grupo Palmares da capital gaúcha no ano de 1971. (SILVEIRA, 2003, p. 23) Somente no dia 4 de novembro de 1978 durante a Segunda Assembléia Nacional realizada em Salvador é que o Movimento Negro Unificado formalizou a data como o Dia Nacional da Consciência Negra e acabou se distanciando cada vez mais dos festejos que comemoravam a abolição, no dia 13 de maio. (HOFBAUER, 2006, p. 384)

A cerca do centenário da abolição da escravidão no ano de 1988, Gorender conclui que não havia o que comemorar, em vez de festejo, o que houve foi um verdadeiro repúdio, desde mobilizações na rua, até congressos acadêmicos relacionaram a data como algo que nunca houve para os negros: a abolição. E o autor identifica essa consciência social graças as mobilizações de vários seguimentos da sociedade, incluindo a atuação do Movimento Negro Unificado e da situação de desigualdade e exclusão social que permeiam os grupos negros. A ―discriminação racial e pobreza dos dias de hoje se constituíram em critérios historiográficos e conduziram a concluir: a Abolição não se realizou. Mero engodo, a Lei Áurea proclamou o que não houve.‖ (GORENDER, 1991, p. 6)

Enquanto processo de luta e mobilização social, Gomes acredita que de uma forma particular os movimentos negros são capazes de redefinir e redimensionar

[...] a questão social e racial na sociedade brasileira, dando-lhe uma dimensão e interpretação políticas. Nesse processo os movimentos sociais cumprem uma importante tarefa não só de denúncia e reinterpretação da realidade social e racial brasileira como, também, de reeducação da população, dos meios políticos e acadêmicos. (2005a, p. 39)

Os trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte no ano de 1987 foi realizado mediante a participação da sociedade civil organizada. Os movimentos negros colocaram em pauta as suas principais reivindicações, dentre as quais destacam-se: denunciar o racismo e a discriminação racial pelo qual sofrem os negros no país; denunciar a democracia racial como um mito e como forma de impedir o investimento em políticas públicas de ações afirmativas na luta anti- racista; resgatar a cultura afro-brasileira através do reconhecimento das identidades, da valorização da diversidade e do reconhecimento de uma sociedade multirracial e multicultural. (GUIMARÃES, 1999, p. 228)

E essa luta do movimento negro, cabe frisar, não cessa com a simples aquisição de direitos em âmbito formal é necessário que se

criem mecanismos ou diretrizes políticas específicas que

verdadeiramente contemplem as necessidades sociais dos grupos negros, contribuindo para a concretização dos seus direitos fundamentais enquanto sujeitos de direitos.

3.4 A LUTA ANTI-RACISTA DO INÍCIO DO SÉCULO XXI: