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A não simultaneidade e exclusão frente ao direito à cidade lefebvriano

5. O CENTRO PULSA, O CENTRO EXPULSA

5.3. A não simultaneidade e exclusão frente ao direito à cidade lefebvriano

destes jovens em situação de rua como uma expressão social urbana agrega a discussão sobre a cidade e suas formas de viver, a serem pensadas desde a perspectiva da região central de São Paulo, aqui observada diretamente, a outras mais abrangentes, que pautem problemáticas estruturais da sociedade contemporânea capitalista urbana. Com base nesta perspectiva, retomamos algumas referências quanto à discussão do elemento urbano e de questões estruturais da lógica da vida nas cidades, e discutimos a seguir sobre a produção de desigualdades e segregações socioterritoriais, em um diálogo com a perspectiva de aproximar análises micro e macrossociais.

Partindo do campo de contribuições da Psicologia, Sawaia (2011) defende que uma perspectiva sócio histórica é fundamental para abarcar o fenômeno da exclusão social com a complexidade que lhe compete. Não é do campo individual, nem do coletivo, não é por si nem subjetivo nem objetivo, tampouco segmentado em racional ou emocional. Ainda, é em relação ao seu antônimo – a inclusão. A autora começa com uma provocação: seria o fenômeno da exclusão o azar dos excluídos, e quiçá, algo a ser combatido enquanto tal, ou um processo de carácter estrutural, mais próximo de uma “inclusão perversa”?

Devemos conceber os excluídos como uma classe não à margem da sociedade, mas como um pilar de sua sustentação. Cabe esclarecer, exclusão não diz direta e unicamente à pobreza material se adotarmos tal perspectiva. A exclusão social é ausência de renda, inserção precária no mercado de trabalho, acesso precário a serviços públicos e ausência de poder, poder este de ação e de ser representado (WANDERLEY, 2011). Portanto, exclusão é a condição de desigualdade quanto a bens materiais e simbólicos, de não garantia de direitos humanos, de não participação efetiva no âmbito político.

87 A segregação de Lefèbvre, como a não continuidade e simultaneidade que uma cidade deve ter, e exclusão, como aqui usado, não são sinônimos. No entanto, para utilizar um raciocínio proposto pelo próprio autor, conhecimento precisa ser reunido acerca da exclusão, e uma prática precisa ser proposta enquanto tática para que se vislumbre uma estratégia de construção de uma cidade com simultaneidade, para que se alcance o ideal do homem urbano.

Poderia dizer-se que o direito lefebvriano não diz respeito à defesa dos direitos humanos como condições básicas de humanidade. Sua proposta, em breves palavras, vai além e vislumbra um estágio mais avançado de sociedade, em que todos exerçam o modo de vida que desejam; que possuam poder de decisão sobre as iniciativas de carácter comunitário; que um planejamento sempre por se realizar, que contemple a existência simultânea de infinitas possibilidades esteja no horizonte da sociedade urbana, enfim, que permita a forma prático-sensível da existência urbana enquanto apropriação – condição oposta ao da alienação descrita por Marx. A segregação neste arcabouço representaria, em última instância, a privação dos segregados da cidade, e a impossibilidade da verdadeira existência de uma.

Contudo, não parece contradizer a luta por direitos humanos, esta que de certa forma está mais comprometida com as barbaridades contundentes às quais milhões de seres humanos estão submetidos em pleno século XXI, apontam diretrizes mais objetivas e mais simplistas – sem deixarem ser fundamentais. A defesa do direito à vida, ao bem-estar, à realização das necessidades que configuram a vida hoje, como o direito à trabalho, habitação, participação democrática etc., vislumbra também a possibilidade de autonomia dos indivíduos, de equidade social, de acesso às vias de efetivação e do sentimento de apropriação. Na verdade, ambos os conceitos de direito aqui referidos guardam uma semelhança: precisam ser exercidos – não se realizam os direitos humanos apenas como tratados e Constituições escritas em papeis, e nem o direito à cidade apenas no campo conceitual: são um exercício.

Partindo então da ideia de que a segregação a que se refere Lefebvre não é justaposta à de exclusão aqui invocada, mas que o enfrentamento à primeira não é possível sem a dissolução da segunda, é imperativo ter como horizonte em ambas as perspectivas que o direito a ser defendido é acima de ser uma questão de propriedade, é uma questão de apropriação.

88 Refletindo sobre os diálogos possíveis entre a obra do autor francês e o contexto brasileiro, por meio de um olhar da Psicologia Social, é preciso contextuar sua produção. O autor sustenta sua teoria alicerçado em uma formação histórica, cultural e econômica bastante específica, a dos países europeus, ao tratar da Cidade que propõe. O cenário é um continente que reconhece seu passado na antiguidade grega, em modelos de cidade que remetem a esta civilização, e que acompanha suas transformações, e se transforma conjuntamente, ao longo dos séculos. Fala, mais especificamente, de um dos países pioneiros no processo de industrialização e da formação de centros e metrópoles urbanas, que por muito tempo sustentaram, se ainda não sustentam, as vanguardas tecnológicas e os ideais civilizatórios do mundo ocidental.

De certa maneira, mostra-se ciente disto, e ao longo de sua obra, descreve algumas dissemelhanças nos processos de urbanização e formação das cidades em outros continentes, como nos Estados Unidos, e a singularidade ainda de países de histórico de colonização e industrialização tardia, como o Brasil. Para além disso, no entanto, é nosso dever atualizar as discussões próprias de nosso território.

A necessidade de se pensar as especificidades da América Latina é um campo de discussão que vem ganhando força em diversas disciplinas. Por seu passado extremamente violento, não muito distante, em que todo seu território sofreu sob um regime de colonização e que, por exemplo no caso do Brasil, sustentou por mais de 300 anos o sistema de escravidão de povos nativos e povos africanos, uma desigualdade material e simbólica foi forjada desde o início de sua assimilação à civilização ocidental europeia.

Enquanto nosso contexto exige que pensemos em melhor distribuição de renda, das terras, e em garantir saneamento básico, enquanto lutamos contra elevadas taxas de mortalidade infantil em regiões desprivilegiadas do país, ou ainda em garantir que a população não viva abaixo da linha da miséria, esse já não era o contexto da Paris de 1960. Ainda hoje vivemos em uma sociedade de mentalidade racista e elitista, pautada em princípios como o da meritocracia, sem a compreensão apropriada da dívida histórica formada para com alguns segmentos da população. A luta por direitos trabalhistas, ações afirmativas, direitos de minorias, e por tantas outras reformas, como a agrária, são entendidas como buscas por “privilégios” destas

89 classes, uma vez que provocam o sistema, esse sim de privilégio, de uma outra bastante menor.

A questão do campo e da cidade, a extensão de nosso território, as desigualdades e diferenças entre suas regiões, a profusão cultural que bebe de fontes muito diversas das europeias, a formação da sociedade brasileira, as formas de participação social e política, questões relacionadas ao público e privado, entre muitas outras, fazem de nosso país um caso muito dissemelhante de outros, e exigem uma compreensão específica. Esta é uma necessidade inclusive para que não corramos o risco de almejar ideais não coerentes com nossas realidades social, histórica e política, e assim ficarmos presos na armadilha de uma busca inalcançável.

Um exemplo mais atual e palpável é tratado por Melo (2011), de como a exploração da população de crianças e jovens através do trabalho, dada desde os tempos coloniais, se agrava no contexto das cidades, mantendo um ciclo de exclusão inclusive pela não garantia do acesso à educação. Tal desigualdade, contudo, sobrepesa em segmentos da população específicos, diretamente ligada a questões de classe, raça e gênero: é nas favelas e periferias que ocorrem as maiores violações de direito, enfatizando aqui o próprio direito à vida. Segundo o Atlas da Violência, divulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (CERQUEIRA et al., 2016), jovens pretos e pardos, na faixa dos 21 anos, tem 147% a mais de chances de serem assassinados, comparados à população em geral – assassinados, diga-se de passagem, em larga escala pelo braço armado do próprio Estado.

A autora aponta uma direção basilar para nossa compreensão da questão urbana no Brasil – a desigualdade é parte do modo de perceber do sujeito urbano brasileiro. A fragmentação dos espaços está posta geográfica e funcionalmente, e correspondem a uma fragmentação social. Neste curso, já se adianta a impossibilidade de abstrair o sentido cidade enquanto obra.

Devemos nos questionar o quanto a academia e os discursos de saber também não operam de forma fragmentada, e qual o esforço para romper com as visões parcelares, buscando compreender o fenômeno dos vários prismas possíveis. Questões de segurança pública, de mobilidade e acesso a serviços e espaços da cidade, ambientais, de saúde e educação, lazer, de assistência social, habitação, entre outras, devem todas compor a resposta (ou respostas) à pergunta “Que cidade queremos? ”.

90 Neste sentido, com todas as ressalvas e em constante postura crítica, ainda é possível, e preciso, recorrer ao pensamento de Lefebvre, pois o raciocínio que propõe é de natureza prático-sensível, e se baseia em um elemento que permite a continuidade de seu pensamento em qualquer território – a práxis.

Com a pretensão de contribuir a partir de um olhar do polo “periférico”, e das profundas problemáticas que encontramos em países forjados em relação de subalternidade pela colonização, Haesbaert retoma a ideia de ‘amor por tudo o que existe”, emprestadas do pensamento de Spinoza e Deleuze. Alerta para a necessária ampliação de nosso olhar para além das dimensões sociais e humanas como abortadas pelas tradições nas Ciências Humanas, invariavelmente sob epistemes antropocêntricas. É urgente abranger nossa perspectiva sobre nossos processos de existência para os demais elementos presentes no globo, e arraigar nossa postura em uma relação de mutualidade com a natureza - no sentido ecológico e dos demais elementos presentes no mundo físico-simbólico:

Sem dúvida, seria redundante lembrar, para poder “amar tudo que existe” e construir territórios efetivamente – o que significa, sobretudo, “afetivamente” – apropriados, é necessário, primeiro, acabar com toda a exploração e indiferença dos homens entre si e dos homens para com a própria “natureza”. (HAESBAERT, 2007, p.370)

Sintetizando de maneira integrativa os pensamentos aqui entrelaçados:

Precisamos assim lutar concretamente para construir uma sociedade onde não só esteja muito mais democratizado o acesso à mais ampla multiterritorialidade – e a convivência de múltiplas territorialidades, mas onde estejam sempre abertas, também, as possibilidades para uma reavaliação de nossas escolhas e a consequente criação de outras, territorialidade ainda mais igualitárias e respeitadoras da diferença humana. (HAESBAERT, 2007, p.371)

Partindo de reflexões que ampliam a compreensão sobre as relações pessoa- ambiente, mais especificamente sobre relações que se dão no espaço urbano, pretendemos seguir dimensionando o fenômeno da situação de rua frente aspectos sociais, culturais e históricos da sociedade urbana brasileira, mais especificamente na cidade de São Paulo, e em relação à população infanto-juvenil. Esperamos que fique evidente o diálogo complementar que se dá entre os olhares histórico e urbanístico

91 que apresentamos anteriormente, e os mais próximos da sociologia e do campo dos direitos humanos, e como o elemento do espaço urbano exige um enfoque transdisciplinar. Todos em diálogo próximo e cotidiano com as experiências na rua.